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sábado, 25 de janeiro de 2020

Um bom dia para desenterrar tesouro


Ilustração de N.C.Wyeth 
para o livro A Ilha do Tesouro
de Robert Louis Stevenson



Thomas Clement Douglas era um pastor batista, nascido na Escócia, que tornou-se um proeminente político social-democrata no Canadá. Como primeiro-ministro da província de Saskatchewan, de 1944 a 1961, pelo partido CCF (Cooperative Commonwealth Federation), liderou o primeiro governo socialista da América do Norte e introduziu o modelo de saúde pública universal, o Medicare. Morreu em 1986. Lembrado por sua sagacidade e atuação destemida em favor dos direitos constitucionais, em 2004 foi eleito o maior canadense de todos os tempos. A Carta dos Direitos de Saskatchewan precedeu, em 18 meses, a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU. Seu idealismo pode ser reconhecido neste conto político conhecida como Mouseland, contada por ele num discurso proferido no ano de 1944. Vamos à fábula:

Esta é a história de Ratolância, uma país semelhante em tudo aos demais. Ali, os ratos viviam e brincavam, nasciam e morriam. Da mesma maneira que eu e você. Em Ratolândia tem casa, tem rua, tem praça, tem fábrica, igreja, escola, hospital… tem também Parlamento. Por isso, a cada quatro anos os ratos faziam uma eleição. Iam às urnas e votavam. Como você e eu. E todas as vezes, os ratos, os camundongos e as ratazanas elegiam um governo. Um governo composto de grandes e gordos... gatos pretos.
Se você acha estranho que ratos escolham um governo composto de gatos, basta olhar para a história do Canadá nos últimos 90 anos e talvez você perceba que eles não são mais idiotas do que nós.
Não tenho nada contra os gatos, acho até que são boa gente… Conduzem o governo com dignidade. Aprovam boas leis - isto é, leis que são boas para os gatos. Mas as leis que são boas para os gatos não são muito boas para os ratos. Uma das leis diziam que os buracos de ratos têm que ser grandes o suficiente para que um gato possa colocar a pata. Outra, obrigava os ratos a viajarem em certas velocidades - de modo que um gato possa tomar seu café da manhã sem pressa. Todas as leis são boas leis…. para gatos.
A vida era dura para os ratos. E foi ficando cada vez mais difícil. Cansados desse estado de coisas, os ratos decidiram que precisavam fazer algo a respeito. Chegaram à conclusão de que deveriam votar, em massa, nos gatos brancos porque eles tinham feito uma campanha fantástica, cujo slogan era: “Abra seu olho”. Em todos os meios de comunicação apareciam os candidatos brancos afirmando: “O problema de Ratolância são esses buracos de rato redondos que temos. Vote em nós que criaremos buracos de ratos quadrados."
E fizeram. Só que os buracos de rato quadrados eram duas vezes maiores do que os buracos de rato redondos, e agora um gato conseguia colocar não uma, mas as duas patas. E a vida foi ficando mais dura do que nunca. Quando os ratos não aguentaram mais, votaram e trocaram o governo dos gatos brancos por… gatos pretos.
E a cada eleição votavam ora nos brancos ora nos pretos. E houve uma eleição, que pra variar, votaram em gatos meio pretos e gatos meio brancos. E chamaram isso de coalizão. E na eleição seguinte votaram nos gatos com manchas. Como podem ver, meus amigos, o problema não é com a cor do gato. O problema é que eles eram gatos. E porque são gatos, naturalmente cuidam de gatos em vez de ratos.
E aí surgiu um ratinho com uma ideia. E disse aos outros ratos: "Por que continuamos a eleger um governo composto de gatos? Por que não elegemos um governo composto de ratos?"…
- Oh, disseram, ele é um comunista. E o colocaram na cadeia. Mas esta é uma atitude inútil, de nada adianta. Afinal, os carcereiros jamais conseguem prender uma ideia e basta que ela consiga entrar na maioria das cabeças para, finalmente, tornar-se realidade”.


sábado, 21 de setembro de 2019

Fábula com notas


O Futuro chegou faz pouco, Fede Biagioli, Argentina



Como se ocorresse num conto futurista (no velho e mundialmente consagrado estilo science-fiction opera), meia dúzia de cópias piratas de personagens mal-ajambrados e toscos invadem a cidade e causam um tremendo estrago com sua linguagem chula, injúrias e insultos pornograficamente inaceitáveis.

Através de edital, o chefe da polícia convoca o Homem “Branquinho” - super-herói pau-para-toda-obra e professor particular de gramática, para dar um jeito naquelas monstruosidades atentatórias aos costumes talentosamente criativos do povo do lugar.

Pintada como o combate do século, pelas forças de segurança(1), a porrada come solta em cada canto, cada beco, cada brecha da lei, sem nunca se atrever disputar audiência com a novela das nove por justa e legítima reivindicação da primeira e única rede de mídia nacional.

E tal qual nos conflitos épicos típicos, o herói apanha pra chuchu no começo para somente no final conseguir realizar seu objetivo que, coincidentemente (2), devido a providencial ajuda das mais requintadas agências de propaganda, é o mesmo da população que o assiste e acompanha através das redes sociais e dos costumeiros noticiários e comerciais.

Chegado neste ponto, imediatamente após o estupro da liberdade de expressão pela intolerância, o herói oficial consegue finalmente apagar do sistema, um a um, as esdrúxulas criaturas – não sem deixar um rastro de más recordações e péssimas lembranças, o que é perfeitamente normal e aceitável, já que, diz o adágio popular, não se faz omelete sem quebrar alguns ovos.

Com o tempo ficamos sabendo que tudo não passou de uma cortina de fumaça. Tinha sido o prefeito, dono de empreiteira, o cérebro por trás daquelas criaturas. Tudo fizera para destruir a cidade, com o propósito de pressionar a população na aprovação de novas e vultosas verbas para a construção de um novo empreendimento que atraísse turistas do mundo inteiro para a sua rede de hotéis temáticos arrendados a preço vil para um conglomerado de mídia internacional, exatamente o mesmo encarregado de transmitir ao vivo, através de sua cadeia de televisão, toda a movimentação de tropas pela libertação da rua de baixo das garras sangrentas e ignóbeis dos autonomistas prejudicados que atuam em conluio com uma legião de multifacetados criadores de trovas e quadrinhas.

Em meio aquela confusão, o alcaide não só embolsou a grana como, pê da vida, ateou fogo em tudo e foi curtir a boa vida, de braços dados com Madame (aquele caso perdido que não vale a pena discutir), no paraíso fiscal conhecido como La House of Nooca, longe e a salvo dos mosquitos, saúvas e cucarachas.
E todos – uma fauna e flora exuberantes e com alta taxa de diversidade – viveriam infelizes para sempre, sem nunca encontrarem o rumo de casa, não fosse o pessoal de Bacurau chegar a tempo de impedir que aquela lambança continuasse.

No apagar das luzes, quando já estávamos prontos para a subida dos créditos, a comunidade serenamente irritada, de saco mui cheio e com uma peixeira nos dentes, pegaram o prefeito, sua curriola e cupinchas dos naipes executivo, legislativo e judiciário, botaram pra pentear macacos, catar coquinho, chupar pregos até virar tachinhas e foram aplaudir o pôr do sol porque o amanhã, entre nós, reza a lenda, fica pra depois e nada é tão urgente que não possa esperar uns cinco minutinhos.


Notas
(1) As mesmas que, na ausência de um inimigo externo, faz com que seus generais, visando manter as tropas em prontidão, insistam na velha e surrada manobra de inventar um saco de pancada local no qual - tais cachorros loucos - possam descarregar seu ódio na porção mais fraca da raça humana. Dizem os mais proeminentes psicanalistas, tratar-se de uma profunda negação do self, misturado com um alto teor de vergonha pequeno-burguesa, pelo fato de serem todos filhos da tia do cafezinho com o motorista do patrão.

(2) Na tenra idade, talvez anterior ao útero, aprendemos que privilégios são inatos. Desta forma, certos uns (segundo a teoria da meritocracia e chancelada pelo personagem mítico conhecido pela alcunha de meupapai) não têm o que temer quando se trata de disputar o filé na Colina dos Recursos Escassos.



sábado, 10 de agosto de 2019

Finalmente, respeito


Fantasia de Soldado Romano, Nicolaes Maes, 1675



Ele avisou e nós ficamos naquela… Estávamos todos acostumados a tratar as coisas na base da galhofa, do deboche. A verdade é que ninguém acreditava mais na palavra de ninguém. A vida continuaria a de sempre, não fosse ele falar a vera e ganhar a eleição.
No primeiro dia de governo, baixou um decreto, terceirizando as forças armadas. No final do ano, com o maciço investimento da indústria de armas (nacional e estrangeira), exército, marinha e aeronáutica – conduzidos com a eficiência da iniciativa privada – apresentaram índices de desenvolvimento surpreendentes.
A medida foi tão eficaz que zerou a taxa de desemprego. Os militares ofereciam agora emprego bem remunerado, em todos os níveis da hierarquia, para quem quisesse trabalho e aventura. Baseados em campanhas publicitárias agressivas, apenas os covardes não foram transformados em fardados. Todo e qualquer cidadão agora tinha a possibilidade de ostentar uma farda elegantíssima e uma reluzente Glock .40 na cintura.
Nunca na história do mundo, viu-se um poderio surgir assim do nada, em tão pouco tempo. O país transformou-se, da noite pro dia, numa potência guerreira. E para testar a capacidade de combate fizemos logo a nossa guerra civil: sul contra o norte. Em meia hora liquidamos a fatura. O sul dividiu a terra em capitanias, colocou grandes empreiteiras no comando e foi curtir a vitória com a sensação de dever cumprido e muito futuro pela frente.
Evidente que vinha mais coisa por aí. Sabíamos que ele tinha em mente algo maior, que não pararia por ali. Sonhava alto e parecia que nada o impediria de colocar a máquina a serviço de um objetivo realmente digno da nossa vocação de país grande.
A maioria do empresariado estava com ele… Os grandes bancos, a grande imprensa, a totalidade do Poder Judiciário, Polícia Federal, Ministério Público… No Congresso foi barbada aprovar a Nova Lei Maior - inteiramente redigida por seu vice, um general a serviço da moral, dos bons costumes e do embranquecimento da raça. Em questão de dias (parece que já a tinha pronta) nos entregou a mais enxuta e severa de todas as nossas Constituições.
Mas e o grande lance? Quando seria dada a ordem? Eram estas as grandes perguntas percorrendo todos os corredores, becos e ruas sem saída. Não foi preciso esperar muito, a ordem veio… Para romper com velhos hábitos, o dia Z chegou.
Invadimos primeiro os vizinhos com forças mais bem armadas e treinadas. Depois, fomos avançando um a um até que, finalmente, todos ruíram. Ninguém conseguiu impedir o banho de sangue e a limpeza étnica que se seguiu para nunca mais haver fronteiras ou oposições. O continente fora unificado e toda a riqueza passou a ter um único dono.
Consolidada a nova potência militar, a história agora seria outra. O mundo finalmente nos respeitaria. Foi aí que a Grande Liga Setentrional nos chamou para conversar...


sábado, 13 de julho de 2019

O Aleph de Matías


Ilustração de Diego Alterleib 
para o livro O Segredo de Borges




Um dia alguém lê que certa feita um garoto ouve de um velho escritor o segredo para se viver tanto.
Conta o menino, agora homem feito, em livro, muitos anos depois, que a tarde caía sobre o mestre enquanto ele improvisava:
Eu costumava beber água numa fonte onde viviam tartarugas. Depois de algum tempo percebi que a água que eu tomava quando era criança na fonte onde viviam as tartarugas não era água, era água de tartaruga. E como as tartarugas vivem muito, vivo muito desde então”.
E conta mais, conta que, na hora que a estrela das letras argentinas inventa a história “olha para cima mas não vê que a cortina atrás da poltrona verde é muito branca e muito bonita por causa da luz do sol”.
De tanto revisitar a história, Matías Alinovi descobre que havia sido enfeitiçado aos nove anos, naquele momento mesmo em que Jorge Luis Borges, aquele que para ele, antes daquela tarde, no ano de 1981, cinco anos antes de morrer, era um completo vazio de significado. 




sábado, 10 de novembro de 2018

O gosto da vingança


Ilustração de KPG Ivary



Nunca dá para prever quando Carlos Rigot irá aparecer. Mas que trará consigo um comentário, uma história, um dilema… às vezes uma pegadinha, isso posso ter certeza. E eu, que nunca o aguardo, sou sempre surpreendido com suas revelações.
Rigot é aquele mestre que não é… Dele, penso não possuir qualquer intenção que não seja me surpreender. Assim, cada encontro com essa figura é uma experiência a ser vivida com e em todos os sentidos.
Não foi diferente, naquele terça, 15:30 de uma tarde nublada, na esquina, um quarteirão antes da minha casa…
Senti uma mão segurar meu braço direito e, envolvido por uma enxurrada de palavras, fui obrigado a realizar um esforço para começar a registrar aquele relato que, ao reproduzí-lo aqui o faço a partir do momento em que consegui isolá-lo do restante do mundo e passei a unicamente escutá-lo.
Após me servir, olhei para a mesa costumeira, ao lado do refrigerador: estava vaga.
Melhor lugar do restaurante, longe dos aparelhos de televisão que, naquela hora, todos os dias, estavam sintonizados no canal de sempre.
Verdade que ninguém prestava atenção, preocupados em devorar a comida e voltar logo pro trabalho.
Mesmo sabendo disto, o dono do boteco, não sei por qual razão, insiste em manter tal inutilidade, num mundo repleto de celulares. Talvez ele saiba que pode fazer diferente mas, não está disposto a pagar o preço… prefere agarrar-se ao fácil, seguro e rotineiro – é bem mais barato.
Após me servir, olhei e vi que a mesa costumeira estava vaga, corri para o meu canto. Ali, pelo menos, ficava a salvo do som e, principalmente, das imagens que saíam daquelas duas máquina de fazer doidos.
Porém, naquele meio dia, à minha frente, na mesa adiante, alguém falava ao celular num tom acima do tolerável.
Baixei a cabeça, comecei a comer tentando esquecer daquela demonstração de incivilidade. Mas o som da voz daquele estranho começou a penetrar no meu cérebro e aquilo me irritou.
Fiz sinal ao vizinho... apontei o dedo indicador para o ouvido direito.
O sujeito nem aí e até aumentou a voz mencionando qualquer coisa relativa a polícia federal… foi o que ouvi.
Olhei fixo para o inconveniente e insisti: amigo, não preciso ouvir a sua conversa.
Quê? Zangou-se o outro. Então pare de escutar.
Não desejo ser convidado para tua festa...
Otário, foi a resposta dele. Levantou-se e foi na direção do caixa.
Abaixei a vista e encarei a salada - estava gostosa… saudável, fresquinha… e ao levar um bocado de cenoura à boca, ouvi ao pé do ouvido, novamente a voz desagrádavel do desconhecido, replicando a palavra otário.
Não vacilei: acertei a jugular do indivíduo com o garfo e, ato contínuo, apliquei-lhe um chute bem colocado nas caixas dos peitos. O bicho despencou dois degraus e acabou estatelado na calçada enquanto me ouvia gritar: está bem assim, cidadão de bem, está bem assim?
- Você fez isso, mesmo?
- Não. Claro que não. Se eu tivesse feito, sentiria o gosto da vingança apenas uma única vez. No entanto, o fato de não ter cedido ao impulso me permite elaborar, a cada lembrança do fato, uma nova forma de acabar com aquela coisinha ordinária fantasiado de pequeno burguês bem sucedido... e as possibilidades são infinitas.
Convidei-o para tomar um café. Ele disse que não, largou do meu braço e perdeu-se em meio aos passantes.



sábado, 6 de outubro de 2018

Fábula Estúpida


Personagens do Mamulengo Presepada, Brasília-DF



No Reino do Bafafá, era uma vez, um capetão da cavernas (também conhecido como o inominável) que um belo dia, na padaria da esquina, onde toda tarde tomava um sisudo cafezinho, encontrou uma viúva (conhecida na vizinhança como a baranga histérica) e logo deram de trocar umas ideias. Conversa vai, conversa vem, decidiram (para espanto geral) que era hora de juntarem armas.
Feitos os acordos, emendaram os fios dos bigodes e após tomarem posse da vaquinha arrecadada pela seita que os uniu, foram passar a lua de mel na Casa de Noca - reduto de uma massa destra e bastante fashion, a crème de la crème de uma seleta brava gente de patrióticos e brancos corações.
Quando chegou a hora do onça beber água, quer dizer, na hora de botar a rotina pra funcionar, ela, dona de uma rede de mercadinhos, louca de pedra pelo retorno da dita-dura (que a tempos não curtia) começou a perceber que dois e dois não resultavam quatro e tratou de botar olheiros para monitorar as escapadelas do varão.
E não é que o belo saía para se encontrar ora com uma loira recatada e do lar, ora com uma ruiva limpinha e cheirosa… e houve vezes até que foi filmado, gravado e fotografado dentro de uma quitinete (devidamente preparada para abater incautos de qualquer sexo) com um halterofilista desempregado conhecidíssimo na baixada pela alcunha de prepúcio glande.
A bocca chiusa comenta-se que, o musculoso levantador de pesos mortos, após acalentar a baioneta, por várias e repetidas vezes, diante de um público ávido por emoções baratas, conseguira do capetão (agora presidente da cadeia varejista de secos e molhados da mulher) uma boquinha como gerente de marketing encarregado de criar frases de efeitos para serem esculpidas em letras de fogo logo acima das tabelas de preços.
Na hora, sem pensar, o bruto e serelepe prepúcio cuspiu algo que vivia guardado a sete chaves em seu caderno de notas com jeitão de diário: “Literatura, Filosofia, Sociologia e Arte são ótimas para libertar a mente mas quem precisa de liberdade se a boa e velha Sacanagem nos mantém com os pés no chão”.
Encantado com a perspicácia e charme do seu tonitruante auxiliar o capetão se riu tanto que estourou-lhe as pregas. Estimulado, prepúcio aproveitou a oportunidade para tecer elogio ao seu tripé macroeconômico, declarando-se pronto para desenvolver, para gáudio da indústria nacional, uma potente e monumentosa produtora de filmes educativos sexualmente, totalmente customizados e ao gosto do cliente.
Fula da vida (porque puta ela não podia ficar, sob pena de pisotear seus próprios princípios) a baranga histérica, que tudo vira e ouvira, sem pestanejar, em sua tela de plasma e agora, absoluta e definitivamente recalcada, vendo que seus encantos de fêmea de nada lhe valiam, resolveu enfiar o dedo nas fuças do marido, chamando-o, na cara dura de, nada mais nada menos, um tremendo viado boiola e baitola desmunhecado da silva, logo que ele lhe pedisse para servir o jantar. Vixe, praquê! Suas amídalas foram parar do outro lado do Atlântico, vítimas de um cirúrgico pescoção nos cornos.
Decidida a buscar justissa a qualquer preço, deu uma chegada no quartel mais próximo de casa e registrou queixa, em nome da moral e dos bons costumes. Porém, a cúpula judiciária-midiática-militar, sorteada para julgar o caso, baseada da teoria da dependência, decidiu pela nulidade do processo sob a alegação de que o principio “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, supera todas as disposições em contrário.
A baranga histérica ainda cogitou buscar outros meios de reparação mas, como haviam sido revogados todos os outros meios, engendrou derramar água quente no ouvido do cônjuge. E foi assim que viveram infelizes para sempre.
Moral da história: em terra dos tais homens de bem, ninguém vale um vintém.



sábado, 17 de março de 2018

quantos você matou hoje, senhor homem de bem?


Google Imagens, tratada por Silvio Nunes



bota as cartas na mesa: - ele não mudará...
… continuará levantando às cinco, levando o filho à escola e chegando sempre quinze minutos adiantados na sua estação de trabalho.
… continuará tomando seu cafezinho, trocando meia duzia de palavras com seus vizinhos de baia... produzirá relatórios, participará de reuniões e ouvirá do chefe severas recomendações para que cumpra as metas senão já sabe, né.
… continuará sentido a pressão, engolindo seco e perguntando-se pra que metas, pra quê, se o que vive é uma eterna emergência… pra que planejar, gastar horas a fio produzindo cálculos, elaborando planilhas, cronograma se se passa todas as jornadas resolvendo pepinos e criando outros.
… mesmo tendo pensamentos fora da curva, não mudará porque continuará almoçando em míseros sete minutos, tempo suficiente para empurrar os bocados goela abaixo sob goles nervosos de refrigerante com 5,1% de suco natural da fruta, ele que acredita em tudo que a propaganda e a mídia diz.
… e sairá depois da hora, hoje, amanhã, sempre e apesar de não ter pela sogra nenhuma estima, sabe que sem ela para pegar a criança na escola a vida seria um inferno, afinal a a patroa age igualzinho a ele… aliás os dois fazem bem estarem casados, tamanha identidade de propósitos e nenhuma vocação para serem felizes.
… e olhará para o tablet com a esperança de algum contentamento em páginas pornôs mas o sexo e a culpa o fará pensar no filho… sabe que mesmo que ligue para a criança pedindo desculpas, no final irá perguntar qual joguinho o filhão quer que o papai leve de noite para casa… sabe que o mino não evitará rancores pelas inúmeras ausências e incapacidade de ser pai.
… porque sente-se culpado por ter vendido a alma por um preço muito além do que realmente vale… ele que não vale o que ganha, não vale, sabe que não vale e o pior é que não consegue dar finalidade ao dinheiro porque simplesmente não tem tempo para pensar no que fazer com todo aquele dinheiro que ganha a mais… então, poupa, poupa para talvez, no futuro comprar… comprar… comprar qualquer coisa… dar um carro do ano para o filho, mandá-lo pra melhor faculdade estrangeira… dar voltas ao mundo… viajar… ir para a puta que o pariu, para a porra de qualquer lugar… chegar pro agente de viagem e dizer: me vê aí uma passagem para paris que eu estou afim de comer um croissant de merda na beirada daquela bosta do rio sena.
… não ele, filho de ninguém que chegou onde chegou graças a luta da mãe ignorante, malamada, desprezada, maltratada, fudida e mal paga, que teve que fazer das tripas coração pra dar-lhe de comer, vesti-lo, aguentar seus calundus, suas manhas, seus desejos idiotas, suas lambanças… fazendo todos os seus gostos e depois se culpando pela merda de vida que não soube viver.
… não mudará porque a realidadezinha que o diabo criou para ele é a cópia cuspida e escarrada do paraíso que sua mãe sonhou… pena que ela não tenha aguentado o tranco e morrido antes de ver o que ele conseguiu… de ver o que ele ainda pode conseguir, mais adiante, se continuar engolindo seco e disfarçando como faz todo santo dia.
… porque sente-se parte de uma maioria… sente-se como um dente de uma engrenagem… sabe que iguais a ele existem milhões e todo dia milhares são fabricados e jogados nesses mundinhos particulares, onde trabalharão, terão filhos, ganharão mais que precisam, não saberão bem o que fazer com a riqueza que possuem, temerão o mundo em volta, gastarão por impulso, acumularão, acumularão e se esvairão num imenso poço de nada, mau hálito e canceres, onde nem a mais ácida das drogas conseguirá livrar a cara do sujeito… pelo contrário, tudo parece aguçar o sentimento de inutilidade, de coisa nenhuma… tudo contribui para potencializar o desejo de sair atirando por aí com uma arma letal, a mais letal que o dinheiro possa comprar… mas, como é um merda, o cocô do cavalo manco do bandido escroto, vai deixando por isso mesmo e dando esporro na empregada, no rapaz do almoxarifado, na moça do supermercado… censurando e punindo o diferente, o gay, a feminista, o gordo, o feio, o miserável que pede esmola no farol, a puta preta e pobre que faz ponto naquela praça onde sonha um dia plantar uma estátua sua comendo a bunda de uma estrela de cinema… como mudar tudo isso?… essa doença… como curar?… como tolerar essa sombra que cobriu a casa, senão pelo prazer de cometer atrocidades com o homem de bem que ele ostenta toda manhã quando ao entrar e sair do escritório?



sábado, 24 de fevereiro de 2018

Um Grão de Montanha


Montanhas, Omar Rayo, 1955








O que não tem conserto, consertado está”
Ibraim Al’Xazira de Saragoça
Mestre Cervejeiro, século XI




Um filho tinha pais bastantes idosos. Embora o peso fosse considerável, carregava-os nos ombros para onde quer que fosse. Para complicar, os velhos levavam, cada um, uma montanha sobre a cabeça. Andar daquele jeito tornara-se insuportável.

O filho pediu aos pais que abandonassem aquele excesso. Os velhos responderam que não, que estavam acostumados; que as montanhas eram tudo que herdaram de seus antepassados e que, sem aquele peso, ficariam tão leves a ponto de saírem à deriva pelo espaço, igual um balão desgovernado, indo aonde o vento os levasse.

O filho, então, procurou um homem engenhoso e falou-lhe do problema. O perito perguntou ao velho o que mais gostaria de aproveitar na vida. Recebeu como resposta: admirar uma bela paisagem. Ao perguntar à velha, ela não hesitou: cuidar de um belo jardim.

O homem habilidoso trouxe suas ferramentas e esculpiu sobre a cabeça do velho uma linda paisagem; sobre a cabeça da velha, um primoroso jardim. Ao fim, os dois ficaram ansiosos para contemplarem o resultado da obra.

O homem astuto disse que, pra isso, precisava retirá-las de sobre suas cabeças… Os velhos relutaram mas acabaram concordando. E ficaram tão encantados com o que viram que desceram dos ombros do filho e, como um último favor, pediram ao artista que colocasse sobre suas cabeças um grão da montanha correspondente, para que seus antepassados não se sentissem ultrajados.

E o filho daí então podia fazer suas caminhadas aliviado, afinal seu velho pai, até o último dos seus dias, dedicou-se a admirar a linda paisagem enquanto a velha mãe não se cansava de cuidar do belo jardim. 




sábado, 17 de fevereiro de 2018

um conto dialógico


Indoor dialogue, Wojciech Siudmak, 1998


- abre a porta
- me deixa
- estou preocupado
- com o quê
- com a tua saúde
- me esquece
- me deixa entrar
- não, não há mais nada entre nós
- dá mais uma chance
- sem volta
- verdade
- nunca menti pra você
- e eu nunca dissimulei
- é você é verdadeiro eu que não percebi
- a vida só tem graça quando estamos juntos
- não posso impedir tuas fantasias
- não quero ficar sozinho
- é tão dificil
- o quê
- isso
- o que nos impede
- teu desatino meu medo
- você é muito mais forte que eu
- quero ficar sozinha
- podemos ser amigos?
- melhor não
- então é isso adeus
- adeus
- quando te conheci durante aquela caminhada já havia desistido mas o teu olhar me mostrou que ainda havia possibilidade foi isso que me fez voltar no dia seguinte e te procurar pelo caminho quando te encontrei sentada debaixo daquela figueira foi como se o universo nascesse em mim
- chega te imploro não me tortures mais


- aquele ali o que fez?
- muita manguaça… pintou e bordou...
- dê uns tabefes e bota na rua… o magrelo?
- ladrão mixuruca
- trabalha pra quem?
- independente
- bota na limpeza… e esse, agarrado às grades?
- agrediu a mulher
- ela enfeitou tua cabeça, foi?… é mudo, é?
- está catatônico desde que chegou… deve ter tomado droga pesada
- a mulher deu queixa?
- deu
- não tô afim de preencher papelada… bota na cela com o “mãe de todos”…
- “mãe de todos” já passou da hora pra ser solto...
- alguém intercedeu por ele?
- até agora não...
- taí… deixa o psicopata brincar
- o senhor é o delegado
- qualquer coisa me chama no celular...


sábado, 30 de dezembro de 2017

Eram os deuses nanos-filósofos-cirurgiões?

Never, never land, Leonard McGurr, 2003



Diferentemente de outras anomalias que costumam preferir o espaço sideral e/ou privado, essa se deu, em público, numa das avenidas mais movimentadas da capital. A boa notícia é que não ocorreram maiores consequências que alguns para-lamas amassados, tropeções, encontrões e esbarrões entre transeuntes. Infortúnio mesmo, sofreu um ambulante: sua banca de bijuterias encontrava-se nas mesmas coordenadas onde a rachadura espaço-temporal aconteceu, num corte que ultrapassou os limites do asfalto. Em meio ao alvoroço, ninguém percebeu um filete gelatinoso esgueirar-se da fenda e escorrer direto para boca de lobo mais próxima. Noticiários noturnos foram unânimes em redundâncias: os mesmos especialistas, as mesmas platitudes. Enfadado, deixei-os falando sozinhos e fui abrir um envelope pardo, que me foi deixado à porta, sem qualquer sobrescrito. Como costumo enviar originais, cogitei tratar-se de resposta de algum editor aos meus insistentes pedidos de consideração mas, para minha renovada decepção, não havia missiva alguma, apenas um pendrive.
Deseja que tudo seja transcrito de modo que você entenda? Essa foi a mensagem logo que dei o enter. Sim, claro… Óbvio. Mas não era óbvio que surgisse uma animação (bem elaborada, por sinal). O pequeno conto era sobre um sujeito que fugia da dimensão n e vinha atazanar a nossa. Causou-me espécie o nome do personagem. Se fosse tentar explicar diria tratar-se de um extenso vocábulo formado de consoantes entrelaçadas por onomatopeias explosivas. Impronunciável. Bagunça pra mais de metro. Pensei no meu vizinho sabichão. Talvez fosse ele a brincar com minhas idiossincrasias... Mas logo mudei o foco e intuí que aquilo poderia ser uma espécie de vírus. Alguma má consciência estava tentando tornar-se senhor do meu sistema nervoso central e essa suspeição me fez coçar mais ainda minhas perebas.
Todos os canais continuavam a repetir os mesmos informes sobre o estranho fenômeno, ocorrido no centro da cidade, em pleno horário de pico. A essa altura eu já estava bastante arrependido por ter autorizado o download, pois de nada adiantava passar e repassar um antivírus free, o pobre não dava conta do recado. A animação restava indelével no meu computador. Quando senti chamas consumirem meu estomago, lembrei da Caixa de Pandora, ajeitei a bunda na cadeira, respirei fundo e… Apertei o play. Decidi ver até onde aquilo me levaria. E tal qual na realidade, tudo começou com um rasgo no tecido espacial e uma criatura, com poderes extraordinários, comparece disposto a barbarizar. Conflito em estado bruto.
Desse ponto em diante, tudo pareceu correr simultaneamente: animação e realidade se abraçaram num ponto quântico qualquer, tornando difícil dizer quem era a bola e quem era o pé. Tanto lá quanto cá, a gelatina que ninguém viu escorrer direto para a boca de lobo mais próxima, misturou-se às porcarias que todo bom e velho esgoto nutre e cultiva e logo estava plenamente adaptada ao nosso ambiente, tendo nesse meio tempo, escrutinado o mais fundo da alma humana e selecionado, para seu uso privado, o nosso mais pavoroso medo. Confortavelmente integrado ao papel, ele enfiou-se num terno de grife, botou alguns diplomas na parede, ensopou o cabelo de gel, amaciou a voz e largou-se a promover, pra quem quisesse ouvir, preleções performáticas sobre a-arte-de-empreender-qualquer-coisa-sem-jamais-ter-empreendido-coisa-alguma. Ao término das palestras, fogos de artifícios ululavam dentro das nossas cabeças. Tudo muito fácil, sem exigir prática ou qualquer habilidade. Mas como dizia minha mãe, no começo tudo são rosas. E aí, quando o pessoal se deu conta, o diabo não era mais como sempre fora pintado. Conquistado corações e mentes de deus e todo mundo, chegou a hora da fatura. E não foi difícil perceber onde tínhamos nos metido. Estávamos totalmente imersos num mundo que nos excluía. Um mundo cujo único propósito era a manutenção, a ferro e a fogo, de uma senhora maldade. Ele tinha usado contra nós nossos próprios demônios e, após nos seduzir, tal qual Fausto, agora nos consumia, delicada e civilizadamente.
A animação deu um salto no tempo, distanciou-se da realidade o suficiente para que eu compreendesse umas coisinhas. Convencido do diagnóstico, demorei para aceitar o tratamento. Embora tenha sido alertado quanto a possibilidade da solução deus ex-machina, posso lhes garantir que o final não se baseou no que assisti pelo computador, mas naquilo que senti com esses nervos que um dia a terra há de comer.
Enquanto ele traçava melífluos arabescos no especto sonoro, deitando falação sobre os efeitos deletérios da separação igreja-estado e acólitos ministravam oficinas da célebre terapia do banho-frio para educar tentações e rebeldias, as aranhas apareceram. Metálicas e sibilantes, voaram de lá pra cá e de cá pra lá, como cães farejadores. De repente, cintilaram faíscas dos seus múltiplos olhos, deram meia volta e, céleres, reuniram-se em torno d’ele, envolvendo-o numa teia líquida esférica e perfeita. Brados de protestos se elevaram aos céus mas não impediram que um cilindro prateado, interminavelmente comprido, de mais ou menos uns cinco centímetros de diâmetro, descesse sobre o casulo transparente e, de uma única aspirada, sugá-lo inteirinho sabe-se--pra-onde-pra-fazer-o-quê, no mesmo instante em que descobri, tatuada em mim, a pergunta crucial: eram os deuses nanos-filósofos-cirurgiões?
No dia seguinte, ao receber o salário semanal de um contrato intermitente que mantenho como deliveryman numa boutique de coxinhas, consegui pagar a primeira prestação de um antivírus que cumpriu com o papel. A animação foi finalmente deletada da minha máquina mas, fiquei com a sensação de que o ontem jamais existiu. Parece que o ontem sumiu do mapa. Em vista disso, decidi que o melhor era dar sequência à corrente. Conseguiu de um parça meu - guerrilheiro urbano - que trabalha no almoxarifado de uma multinacional, o fornecimento de quantos envelopes pardos eu precise para a empreitada de fazer chegar a cada casa dessa cidade, um pendrive de presente. Espero que, quanto mais gente interagir com a mensagem, mais próximo ficarei da verdade: preciso saber se ontem, com toda aquela teia estranha de acontecimentos, pode constar, como fiel e verídico, no meu banco de memória. 


sábado, 23 de dezembro de 2017

O sorteio

The State Lottery, Vincent Van Gogh, 1882



Batista foi pego com a mão na botija. Sentindo-se protegido pelo moletom de segunda doado pela patroa da mulher e pelo par de tênis, quase novo, encontrado no bazar da caridade do centro espírita siriús de nazaré, partiu para o hiper disposto a fazer seu menino se lambuzar de iogurte com mel. Vinha de olho, não era de hoje, naquela embalagem familiar exibida no panfleto promocional.

Para simular familiaridade foi logo cumprimentando o vigilante. Pegou um carrinho e rumou, sem pressa, para área das delícias. O moletom (um número maior que o seu) daria uma boa cobertura. Após demonstrar interesse em vários produtos, conferir-lhes o preço no verificador, balançar a cabeça várias vezes em sinal de reprovação, enfiou no bolso o litro e meio da gostosura, a repetir, pra si, que aquela atitude era legítima, mesmo sua apropriação ter sido considerada indébita pelo alarme tonitruante da loja. Detectada a falha, todo o aparato de segurança foi acionado. Um senhor que assistiu a cena comentou, orgulhoso, ao repórter da noite, que presenciara uma demonstração eficaz e imprescindível do sistema de repressão ao crime, logo interrompido pelo âncora que acrescentou: mesmo sendo o segundo maior consumidor dos recursos da empresa, perdendo apenas para a diretoria, a existência do departamento de prevenção ao crime encontrava-se plenamente justificada.

Algemado, amordaçado, encapuzado e bastante machucado, Batista foi levado aos fundos da loja. Lá, uma cela, com grossas grades de titânio, paredes de cimento armado com vinte centímetros de largura, ambiente blindado e totalmente fora de controle, o aguardava imersa numa penumbra estéril e fria.

Vivíamos sob vigilância de inúmeros exércitos particulares, todos com poder de polícia decretados logo após as últimas privatizações, a da água e do ar. Ao Estado, denunciado como o grande mal da civilização, cabia apenas implementar sua própria extinção. Dos antigos poderes, restava um quase nada do judiciário, o mínimo para fazer cumprir sentenças. Para essa justiça, fora criado um algoritmo que sorteava juiz, júri, promotores, advogados e meirinhos, todos remunerados com verbas exorbitantes destinadas a cada julgamento - que era único, espetacular e com vários níveis de apelações (o que ensejava um sem fim de recursos, possibilitando aos sortudos sorteados encomendarem suas casas de praia, a viagem dos sonhos ou funeral na lua). Absolvições existiam mas, somente nos casos de cleptomania devidamente atestados por uma dezena de psiquiatras forenses, todos particulares. Tudo corria dentro da mais estrita legalidade. A Constituição era bastante clara, os pais-legisladores foram econômicos e enfáticos: a inveja é pecado e toda cobiça será castigada. Acreditavam que quanto maior o ruído provocado pelos homens de bem, menos delinquentes e transgressores haveriam na praça. E, numa sociedade onde todos aguardam recompensa, alguém tem que pagar o pato, pois não existe almoço grátis. E naquela tarde, Batista caíra na malha fina.

O público esfregou as mãos; a bolsa deu um up; o dólar disparou, imediatamente estabilizado por uma alta significativa nas comódites; o desempenho satisfatório das aplicações em letras do tesouro baseada nas oscilações dos preços no varejo, elevaram o euro a patamares nunca vistos. Feitos os cálculos, computados os prejuízos futuros daquela nefanda ação e realizada uma ponderação entre as projeções dos diversos institutos quanto ao comportamento futuro dos mercados, foi em vão a luta dos desenvolvimentistas. Mais uma vez se viram derrotados pela pertinácia dos neocon’s (ala majoritária dos cabeças pretas do partido liberal conservador). Na quebra de braço secular entre a produção e o rentismo, mais uma vez, os progressistas levaram a pior. Especialistas alinhados vieram a público garantir que, levada em consideração premissas históricas da newsociology (doutrina científica baseada exclusivamente no senso comum) ao final tudo se ajeitaria em torno de uns 40% de valorização nas ações dos dois mais prestigiados laboratórios de dramaturgia, exatamente aqueles encarregados da educação de massa, presencial e à distância, nos três níveis básicos.

Apostadores soltaram na rede um vídeo-boato atestando a irrelevância do caso nº 10987B856/17, instruído na segunda vara de direito penal da capital. Colocavam todas suas fichas na hipótese de que tudo seria esquecido por volta da quarta ou quinta instância. Mas, tiveram que morder a língua e se, ainda estivesse na moda o uso de chapéu, teriam sido obrigados e comê-los. Aquele foi um espetáculo ímpar, durou década e meia para ser concluído. Gerou um volume assustador de apostas, milhares de petições, manchetes, artigos, teses, filmes, peças de teatro e uma infinidade de comentários na rede social, além de generosas e polpudas contribuições da indústria alimentícia para a construção de novos presídios.

Finalmente, às cinco da tarde daquela sexta-feira, ninguém voltou pra casa. Todos se prostraram diante de aparelhos televisivos - acontecia o julgamento da última apelação feita pela equipe de advogados da defesa. Sob escolta armada, vigiado por câmeras estrategicamente colocadas nos pontos nevrálgicos, acompanhado com baraço e pregação, o réu foi conduzido sob os olhares silenciosos da população até a presença do juiz- superior-e-supremo encarregado da leitura da decisão unânime do vigésimo quinto júri. Ninguém duvidava, Batista seria, em definitivo, declarado culpado. Como era de praxe, o magistrado nem chegou a desdobrar a folha de papel com a decisão. Tão logo, a sessão foi aberta com a pompa tradicional, ele anunciou a sentença: duzentos anos de trabalhos forçados, cumpridos em confecções de roupas masculinas.

A sociedade respirou aliviada. O crime fora punido, a justiça realizada e a vida seguiu. Porém, daí a poucos dias, já era visível o estado deplorável das pessoas. Possuídos por aquela melancolia característica, aquele ar blasé tomando conta das fisionomias… Continuar assim, tudo iria por água abaixo. O sistema não aguentaria tamanha apatia. Algo precisava ser feito. Alguém tinha que ser induzido ao crime. E, na calada da noite, o algoritmo sorteou.




sábado, 17 de junho de 2017

Piéta

Piéta, Bernard Buffet, 1948



No ano de 2050, os padres passaram a controlar todo o mercado negro dos costumes. Sexo, drogas, armas… Todos os vícios e pecados finalmente encontraram a legalidade através da Igreja. “Foi a maneira encontrada para conter a bestialidade humana”, disse o porta-voz da Santa Cúpula, em entrevista recente.
Ao assumir a tutela dessa economia, a Igreja extinguiu a violência entre os indivíduos e garantiu para si o monopólio da crueldade. Com isso, o assassinato teve sua prática ritualizada e ninguém mais precisaria desafiar a lei para conseguir um baseado, uma carreira de cocaína ou uma AK47: bastava passar no confessionário mais próximo e fazer sua solicitação. O clérigo de plantão lhe aviaria uma receita devidamente autenticada. Sexo gostoso? Apresente-se num dos muitos mosteiros, pague a taxa regular, submeta-se a alguns exames médicos e a um intensivo de preliminares que uma noviça ou noviço se colocará à sua disposição. Taras? Esse serviço especial, cheio de novidades, possui um extenso cardápio que contempla desde canibalismo até zoofilia. Quem passar dos limites é castigado e pronto.
Mas, o que significa agora passar dos limites? Se o indivíduo pode tudo (desde que pague é claro) e conta com uma organização milenar capaz de satisfazer todo e qualquer desejo, o que configura uma transgressão? Aqui entra o arbítrio do controlador. O eclesiástico ao abençoar sua perversão, o faz conclamando-o a se manter dentro de certos parâmetros. Isto é, você pode ser ateu, iconoclasta, professar outras fés ou até mesmo adorar o demo, porém, nunca, jamais, em hipótese alguma, menospreze, deprecie, macule, zombe ou destrua símbolos religiosos. De tal infração não cabe recurso: é morte certa, longa e dolorosamente, como só o Igreja se autoriza fazer.
...

Às 16:18 do junho 17 de 2052, Maciel, após semanas procurando uma maneira de chegar junto, finalmente encontrou uma brecha para aproximar-se da moça. Nenhum conhecido por perto… Um carro lá no fim da rua, todas as janelas fechadas naquele entardecer calorento… Se até as câmeras pareciam focadas em outros ângulos, ele, não sem alguma timidez, finalmente, enxergou a possibilidade de afogar o ganso.
– Posso ver a licença?
Era importante. A prova de que a prestadora de serviço havia sido aprovada pela Santa Vigilância Sanitária para exercer a atividade autonomamente. A moça abriu a bolsa e quase esfregou na cara dele a carteirinha devidamente autenticada pela Diocese. Após as consultas de praxe sobre preço, local e duração, pigarreou e quis saber se havia espaço para algo, digamos, diferenciado.
- Depende, arregalou a moça o seu olho esquerdo. - Se estás pensando em estacionar seu carrinho na garagem dos fundos pode tirar seu periquito do poleiro. Sou uma profissional juramentada, transo apenas para fins de procriação. Essa é a minha obra.
“Tem mérito”. Não era nenhuma porra louca, se via. Sentiu que faria um sexo seguro e produtivo. Mas não era tudo. Havia aquilo… o danado do algo mais. Como explicar à moça?
- Faço um boquete que é uma beleza. Mas, aviso que não engulo, recolho para depósito no banco de sêmen da paróquia… Em troca você tem direito a um cupom de desconto.
- Claro.
- Então… Vamos fazer neném?
- Só uma coisinha…
- O sexímetro está ligado…
- Não quero propriamente algo convencional…
- Não tenho nenhum problema em lhe bater uma com os pés, com os peitos ou com a língua… Se desejar, deixo gozar no meu orifício auditivo...
"Pobrezinha, tão contraditória", pensou buscando coragem para se expressar. - Tudo bem... Quero que você me bata uma, aconchegada no meu colo, enquanto chupa meu peitinho e eu enfio o dedo no seu… Você sabe.
- Pera aí, tinha esquecido que esse negócio de masturbação tem lá suas especificidades... Preciso consultar o vigário online…
- Não. Esquece…
E desapareceu. Pelo resto da vida continuou seu sexo seguro consigo mesmo, visualizando a Piéta e suando bicas de pavor de ser flagrado pela vigilância.




sábado, 3 de junho de 2017

A Parede

The Wall, Abbas Kiorostami, 2010

Quando acordou, espichou o olho para o lado e desolado, constatou que, mais uma vez, não teria com quem brigar: a mulher não estava, partira em mais das suas viagens de turismo cultural.
A caminho da piscina, deu um pescoção na empregada e encontrou alívio ao exigir que ela engolisse o choro e parasse de praguejar.
Durante o café, diante da tela de plasma, o âncora de dentes alvíssimos levou-o a chafurdar em assassinatos, assaltos, perseguições policiais, rebeliões em presídio, acidentes a dar com pau, brigas domésticas etc., etc., etc… E para coroar a mundiça, vidrou uma mesa redonda com especialistas que discutiam leis mais severas, pena de morte e a decretação do juízo final.
– Vê só, Mercedes, assim funciona a coisa: cria-se medo pra que compremos segurança. Adoro esse sistema.
Saiu cantarolando em direção ao arsenal. Primeiro vestiu o hauberk, um lorigão ou simplesmente cota de malha (macacão de aço apto a resistir a qualquer petardo). Por cima, uma camisa de cambraia de linho egípcio, na cor neve. Em seguida, escolheu um retilíneo terno pós-flandriano cinza capital e gravata sedosa Sancler du Mont na cor azul ianque – um luxo. Para coroar tamanha elegância, colocou na cintura um eficiente Colt 45; na axila, a amada Glock – invisível a detectores de metal; no bolso interno do paletó, uma PPK – pra se sentir James Bond; e, na virilha, a Armatix iP1, cuja trava eletrônica permite apenas ao dono empunhar e disparar. Finalmente, checou a Uzi na valise e conferiu a trava de segurança do imprescindível rifle de assalto F2000.
Ao dirigir-se à garagem, socou as costelas da lacaia que, dramaticamente, deixou-se cair, feito saco velho de batatas, no piso de marmóre de Estremoz da cozinha decorada com o melhor que o mogno amazônico e o aço alemão podem oferecer a uma dona de casa.
Fazendo juz à sua reputação de macho alfa, solicitou, energicamente, que a doméstica parasse com aquele piti e desse um brilho adicional no seu Testoni confeccionado com os melhores couros de jacarés, forrado com pele de cabra marroquina, encimado por uma fivela de ouro 24 quilates.
O Land Rover blindado, motor V-8, 503 cavalos de potência já o aguardava urrando tal qual um grizzly no cio. O sistema de defesa e ataque (devidamente importado de Israel), imediatamente foi colocado em estado de alerta, pronto para ser acionado assim que necessário.
Ao parar no semáforo, o segurança eletrônico avisou da presença de um indesejável e famélico malabarista. Ato contínuo, a mira foi travada e sem que houvesse contagem regressiva, bum… Mais um zé-ninguém, devida e eficazmente, pulverizado para todo o sempre, amém.
Após ouvir o adagio da New World Symphony de Dvorak e, alcançada a paz, colocou pra cantar seus Pirelli 235/40R19 Pzero XL NeroGT 96Y compradas no black de um mecânico dissidente da Fórmula 1. Porém, logo teve que frear bruscamente: uma manifestação monstro de prejudicados barrou-lhe o caminho. Sem titubear, ligou o automático, passou por cima de uma centena de pessoas e continuaria seu trajeto não fosse um policial, montado numa 950 cilindradas o alcançar.
– Sim, senhor… Que bagunça, hein?
– Presumo que saiba com quem está falando?
– Saber eu sei. Mas tudo tem lá seu limite: não se pode simplesmente sair por aí espalhando merda na nossa cidade linda e limpa… Sinto muito mas, tenho que multá-lo…
– Sabemos que existe um remédio para isso, pois não?
– Depende…
– Alguma sugestão?
– Se me permite… Por acaso, tenho um primo… Um minutinho… Nabuco, sou eu… Olha só, um conhecido meu, gente fina, fez uma cagada homérica na Juvenal Peixoto… Dá pra mandar uma equipe?… Beleza… Você é o cara… Outro… Um cheiro no sovaco…
Deixou um cartão com o guarda e seguiu sem perceber que a felicidade tem prazo de validade. Ao sair do elevador no 45º andar da sede da empresa, foi recepcionado, aos gritos, pelo presidente do maior conglomerado da paróquia no ramo das coisas que todo mundo deseja, ou desejará um dia, caso continue a aparecer na mídia e consiga manter patrocínio de todos os eventos esportivos capazes de juntar multidões. O pobre homem tinha os fiscais do governo em seus calcanhares e temia que aquelas canetas caprichosas e desprovidas de civilidade pudesse macular o honrado nome da empresa… Onde estava a lista dos políticos alugados? Quem são os juízes e procuradores a soldo? E mais: queria, agora mesmo em sua mesa, um arrojado plano de marketing que fulminasse a concorrência e otimizasse os lucros. Foi quando ele solicitou cinco minutos, para chutar alguns traseiros e, ato contínuo, trouxe a solução na ponta da língua: vincular todos os produtos, fossem quais fossem, à lógica infantil…
– Nos dias de hoje, explicou, por falta de espaço e hiperatividade das crianças, os pais fazem de tudo para mantê-las quietas… O negócio é oferecer tudo como se fosse doce ou brinquedo.
– Genial, aplaudiu o chefe. - Agora vamos até a varanda do 2º andar, mijar na cabeça de alguns transeuntes.
– Adoraria mas, infelizmente, tenho ainda que apalpar umas buzanfas...
Até a hora do almoço, ainda encontrou tempo para sussurrar obscenidades no ouvido de duas secretárias e, na saída, sem perder o bom humor, passou uma rasteira no porteiro e saiu assobiando Singin' in the Rain, certo de que vivia no melhor dos mundos.
No majestoso clube (edifício neocolonial com fachada neoclássica decorada com imensos painéis concretistas acima de qualquer suspeita, devidamente planejado para disfarçar as fissuras oblíquas que lhe atacavam os pilares de baixo para cima) alojou-se, na sua poltrona predileta e logo uma generosa dose do velho Macallan (single malt de 64 anos) achegou-se à sua mão esquerda, enquanto seus olhos ávidos de entertenimento, repousaram na tela de 75 polegadas exatamente no instante em que o “aquele canal” dava inicio ao leilão do dia: 72 virgens, 450 kg de coca, 200 fuzis metralhadora com 10000 cartuchos cada um, 30 misseis terra-ar, 25 terra-terra e duas belezuras de 100 megatons, cada uma, novinhas em folha.
Após saborear testículos de antílope indianos marinados no leite de onça-parda e arrematar algumas coisinhas, bateu soninho. No caminho de casa, esforçando-se para não cochilar, abateu, sem misericórdia, cinco travestis e uma puta balzaca.
Na segurança do lar, encontrou a família reunida.
– Quanto tempo ainda pra você chegar à presidência? Não aguento mais a Liliexbeth agindo como se fosse madre superiora. Ela é mulher muito cruel, sabia?
– E as minhas gracinhas… Não vão apresentar os convidados?
– Pai, este é o meu marido. Estamos de partida para o Paraguai, disse o pimpolho.
– E esta é a minha noiva, falou a caçula. Mas ainda não é nada definitivo.
– Mas assim não terei posteridade!
Uma sonora gargalhada preencheu o espaço. Comportamento incomum naquele ambiente no melhor estilo “ostenta que te fa bene”.
– O que há contigo, Jêninho? Sempre vivemos no agora, sentenciou a esposa.
Diante da janela blindada com vidro SR 5096, soube que deveria pensar um pouco mais naquelas palavras, porém seus olhos não conseguiam desgrudar do impávido colosso que cercava sua propriedade.
– Alguma alteração?
– Nenhuma, doutor. Continua fitando a parede.
– Vamos introduzir, então, a Clozapina de 100.