sábado, 20 de julho de 2024

Um conto do fim do mundo com jeito de crônica

 

Man at the Window, Gustave Caillebotte, 1875


Acontece que um jornal, daqueles do tipo sério, um dos tais que costumam inventar notícia sempre que o caixa vai a zero (e dizem que o caixa sempre está sempre no zero), decidiu publicar que Dom Pepe, gerente fofucho do Circo Mequetrefe deu na louca de fugir com a bilheteria do espetáculo do último final de semana e, graças aos recursos do photoshop, ilustrou a matéria com fotografias do queridinho das balzaquianas frenéticas (exímias frequentadoras dos bailes da melhor idade e saudosistas contumazes dos festivais de MPB nos anos 60), que adoram cultivar canteiros de antúrios numa chácara na periferia de uma grande cidade, lá pras bandas da caixa-prego, pertinho donde o vento faz a curva, feliz da vida tal qual pinto ciscando em terra molhada…

Escândalo como este não se criava a anos. Todos os operadores do direito, notadamente aqueles na bica de serem nomeados, sem embargos de qualquer natureza, para gozarem de sinecuras nos tribunais superiores, mostraram suas indignações em comentários nas páginas dos leitores dos periódicos de maior prestígio nas altas esferas, além de textões repletos das mais supimpas citações jurídicas do tempo do onça nas redes sociais.

Temi um tsunami, mas a marola foi logo contida com a intervenção providencial da turma que continua p*ta da vida com rumo da política e, principalmente, o preço das coisas e não encontra alternativa senão apelar para pelancas e pés de galinha que, diga-se de passagem, andam custando os olhos da cara.

As avós e mães solteiras (que carregam nas costas uma penca de buchudinhos catarrentos a título de investimento no futuro do país), foram às ruas gritar sua indignação diante da desfaçatez das patroas que somem com aquele anel de diamante e, perante a companhia de seguro acusam a doméstica de roubo de propriedade e vão à justiça solicitar o encarceramento da serviçal enquanto aumentam o valor das apólices sobre o preço futuro dos alimentos criando uma espiral de inflação que destrói a economia, precariza o trabalho e, ainda por cima, mantém a sustentabilidade de uma política econômica austera ditada pelo capital internacional que precisa investir os tubos na colonização de Marte – única saída para o aquecimento global.

Houve uma reação da ala que torce pela terceira guerra mundial, a turma que não tem dúvida de que o Cristo só retornará para levar os seus 144 mil para sentarem à direita do Todo Poderoso após a queda do sistema que usa vacina para implantar chip nas pessoas; que rotula os indivíduos com a marca da besta através do código de barras; que produz discos para serem escutados ao contrário; e aposta todos os dízimos de que o Estado de Israel é a ponta de lança deste processo de fim e recomeço do povo de Deus. Tais pregações, mesmo extrapolando as paredes do armazém de número 100 na Rua dos Aflitos (que, por sinal, deve o aluguel a mais de seis meses e, portanto, já recebeu ordem de despejo expedida pela Vara das Execuções da Capital), não conseguiu qualquer comunicação com a civilização alfacenturiana através do celular o que só fez aumentar as imprecações contra deus e todo mundo, e a adoção desesperada de um pneu a quem pudessem dirigir suas preces tal qual os fugitivos do Egito inconformados com a falta de pulso e tino do guia Moisés.

Eu, que estava desassossegado diante de tanta desinformação decidi fazer de conta que nada disso me dizia respeito e fui molhar os pés nas areias do Abaeté, na esperança de que Iemanjá desse o ar da graça e lançasse, em minha direção, os desejosos ohos da daquela morena de cabelo acastanhado que saracoteia diante do meu tesão já faz uma cara.


 

sábado, 13 de julho de 2024

buraco nosso de cada dia

 

William Heath Robinson (Inglaterra 1892-1944)



tantas foram as promessas

pressentidas

que voltaste… os pés na areia

são outros

sumidos rastros

na chuva e no vento

desnotados antes e

hoje assuntam o coração consertado


e dizem mais, os elementos -

lembranças perdidas

em desconhecidos rostos

que o cumprimentam

pelas vielas banhadas e carrancudas

salvas pelos inocentes

que lastreiam o futuro

de antemão povoado

de coisas, posses, posição

casas de um, dois, três andares

numa desastrosa vontade de estar acima

por cima…


tudo é tão velho e no entanto

a natureza se exibe,

farfalha e cobra nossa falha

enquanto a semente

persiste e brota

nas moças bonitas

cheias de festas e mimos

e amores instintivos

abençoados por velhas mães

interesseiras

encarquilhadas

pelo projeto de um dia sentarem à porta

e sem qualquer brasão assinalado

receberem os cumprimentos

dos passantes

que saúdam a força dum bom dia…


daí a volta e o respeito

o religioso gesto

e o amor da retribuição da volta escolhida

apenas pra se sentir parte da conversa

entre parentes que amam uma história

uma confissão, um testemunho, um causo…

o que lhes permite

fugir do desprezo como o diabo da cruz…


(somos todos iguais mas, no final,

cada um na sua casa

e até amanhã -

aguardemos a piada próxima

o caso de trancoso

a lenda que virá

porque tudo é tão precário

frágil o nosso instante

e pouco nos diverte

alguma perspectiva

além é pura morte

e a gente faz de conta

se tudo fosse se…)


hoje, ninguém foi ao médico

ou se automedicou

todos são filhos

altos, fortes e irados trabalham

e se xingam, esbofeteiam com pau armado

na cara dura sem qualquer contrição

e rezam e temem a deus

e por isso o diabo deita e rola

nos gritos, nos berros de cultos

espetacularmente desassossegados

consequências líquidas num mundo sólido,

todos estáticos.


vejo, sinto e sei da presença fáustica…

eis o humano:

cava mais fundo, cada dia

seu próprio buraco

na esperança de emergir na China.


 

sábado, 6 de julho de 2024

Consulta

 

The Doctor and The Doll, Norman Rockwell, 1926


– E aí, vamos dar um mudadinha?… Tá na hora!

– Estou inseguro.

– E o meu trabalho é evitar que o pior aconteça…

– Sei…

– Infarto… derrame… Essas coisas acontecem sem aviso…

– Compreendo. Médico algum quer encontrar seu paciente no hospital.

– Se podermos prevenir com recomendações e medicamentos, porque descuidar…?

– Temo ficar engessado…

– Tudo bem, o senhor é que nos diz: estás disposto a começar?

– Tenho vivido apenas de pequenos prazeres…

– Quem sou eu para fazê-lo ir contra a vontade?!

– Gosto de comer, beber, encontrar amigos…

– Que tipo de bebida?

– Cerveja.

– Quantas por dia?

- Uma ou duas latinhas.

– Namorada?

– Levo a vida de um monge honesto.

– Vou acrescentar na receita algo contra depressão.

– Deprimido, eu?

– Pense adiante…

– Reclamo apenas das minhas pernas inchadas…

– Cuidaremos disto.

– É muito difícil caminhar…

– Repor cálcio… dois copos de leite por dia… desnatado… consegues?

– Éééé...

– (Após alguns minutos, em silêncio, a digitar) Ótimo… um passo de cada vez… Nos veremos em três meses, está bem?

- (No ponto de ônibus) “Acho que faz mal misturar cerveja com leite… mas leite pode ser um bom remédio pra combater ressaca”.