Juvêncio
morava direito: tinha roça, casebre com varanda; pai, mãe; irmãos
e irmãs; uma penca de parentes: tios, tias, primos e primas em
diversos graus; todos a incensarem o fato dele ser o esteio da
família, lá nas brenhas do sertão, sob o olhar vigilante dos avós
que vaticinaram um futuro auspicioso para o neto que dava vida e
glória à terra onde nasceram.
Mas
ele, molecão, falador, altivo, confiante e sobretudo pau pra toda
obra, se sentia só. Queria uma família que fosse só sua: mulher,
filhos e filhas para levar o seu nome por onde até a vista não
alcança. Só não podia ser qualquer uma, queria uma mulher que
fosse do seu talo, que tivesse a força que ele tinha, que quisesse a
mesma coisas que ele.
Um
dia (era São João), Juvêncio inventou de chegar até a vila para
alegrar os olhos e o estômago com coisas que não lhe eram comuns no
dia a dia. E foi aí que os castanhos de seus olhos se achegaram das
funduras azuis-celestes dos olhos de Lia – morena, alta, corpuda,
sorriso largo, dentes a ofuscar a vista e um perfume trazido direto
do fim do mundo das histórias de trancoso que ouvia da sua mãe. Ela
deu trela. Ele, que não era de se ignorar tampouco de se jogar fora,
logo aproveitou-se do tempo e fez o relógio correr lento e ao
contrário. Aí o mundo desapareceu e os dois sentiram que a vida era
doce que nem mel de abelha. Trocaram meia dúzia de palavras e
firmaram a impressão que aquela coisa de “amor a primeira
vista”, tinha se dado como manda o figurino de toda literatura
romântica. Enrabicharam, decidiram juntar o que era de juntar e
esquecer o que era de separar.
Mas
o mundo não gira de acordo com a vontade de amantes, ainda mais
amantes novatos, sem nove horas, sem traquejo, desmaliciosos e
atrevidos, disposto a enfrentar as revés do mundo que nem se fosse
um dia na lida: limpar o terreno, preparar o solo, depositar as
sementes, cuidar e esperar que os frutos nasçam sadios, longe do
alcance das ervas daninhas e das pragas.
A
beleza ingênua dos inocentes devia ser protegida por lei. Aquele que
atentasse contra tal mandamento seria considerado criminoso lesa
humanidade e condenado a expulsão eterna da Terra, exilado em Marte
ou em qualquer outro planeta inóspito. Mas, infelizmente, o autor,
tampouco os amantes, por mais que tentem, não governam o mundo.
Logo,
Juvêncio recebeu recado do pai da moça para que abandonasse aquela
ideia de jerico. Não lhe era permitido chegar perto daquela que
escolhera para gerar nova leva de trabalhadores honestos que
pretendia disseminar pelo mundo. E não se intimidou com a ameaça.
Fez de conta que tudo se resolveria se juntasse sua parentela e fosse
até a sede da fazenda do coronel Isaque entabular um diálogo
sincero e justo sobre a união das duas famílias: queria Lia para
casar.
Mas
o velho Isaque, crente mesmo somente em três coisas: extensão de
terras, dinheiro no banco e no parabellum que trazia
dependurado debaixo do sovaco esquerdo; useiro e vezeiro em
ruindades, danado para cometer estripulias e maldades; quando dizia
não era não e ponto final. Se não se engraçasse com a cara do
vivente, ainda mais se fosse tipo sem cabedal, melhor arredar, ficar
longe. E quando o rejeitado insistiu em conversar, azedou de vez.
Estava a pedir que lhe ensinasse com quantos paus se faz uma
cangalha, ora vejam só! Juntou a jagunçada, botou todo mundo de
prontidão e, com seu melhor sorriso de satisfação, deu ordens aos
de casa que preparassem a recepção: queria limonadas, bolos de
rolo, coalhada, paçoca… tudo do bom e do melhor.
Só
Juvêncio sobrou. Seus avós levaram cada um três tiros nas caixas
do peito, no instante em que saboreavam milho cozido lambuzado com
manteiga de garrafa; seu irmão do meio, engasgado com uma fatia de
cuscuz, foi arrastado até o açude onde o enforcaram num pé de pau
e, após o cortarem em tiras, o botaram pra secar ao sol; seu irmão
mais novo teve o pênis decepado e enfiado na boca que ainda guardava
o sabor de um licor de jenipapo; suas irmãs foram todas defloradas e
decapitadas diante de seus olhos e tiveram seus corpos besuntados com
melaço de cana e jogadas sobre formigueiros; seus tios, tias, primos
e primas, com os dedos melecados de tanto enrolar capitães de
feijão tropeiro com macaxeira, tentaram se esconder no milharal mas
o fogo os atingiu antes que pudessem alcançar a estrada de terra no
fundo da propriedade; seu pai e sua mãe, enevoados pelo vinho do
porto, encontraram a morte, chutados e pisoteados pelas botas da
tropa de samangos vindos da capital, por ordem do governador para
protegerem o homem que mais produzia combustível para alimentava o
progresso da nação…
Após
levar surra de cipó de fedegoso, ter as unhas arrancadas com alicate
esticador de arame farpado; duas tiras do couro das suas costas
retiradas com perícia cirúrgica; marcado na testa com ferro em
brasa; engraxado com mel e largado diante de um enxame de
maribondos-cavalos, Juvêncio rangeu os dentes diante do seu sítio
incendiado. Ao ver a terra salgada, engoliu um seco e sumiu no meio
do mundo sem sequer dar um tchau pra Lia que, longe dali, se
moía de dor por se sentir responsável por tamanha desgraça. Ela
que acreditava no amor e na união das pessoas pelo bem da
humanidade, se viu tal e qual o próprio mal que assola o mundo. E
morreu. Morreu de morte assumida, com uma dose cavalar de estricnina,
surrupiada do arsenal do pai, misturada a um copo inocente de
laranjada.
Ao
sarar das feridas mas com cicatrizes que nem monumentos, Juvêncio
resolveu acertar as contas com o passado. Começou pelas bordas,
pelos parentes: um a um condenou a uma morte horrenda. E aqui o autor
se recusa a fornecer detalhes por considerar o protagonista nada
assemelhado a torturadores contumazes. Chegou aos próximos: fez
valer sua vingança. Exterminou a jagunçada, os macacos, os
aliados e caminhou em direção ao velho Isaque que o aguardava a
mastigar vento, sentado na sua poltrona forrada com o couro dos seus
inimigos. O potentado olhou seu pequeno mundo, sentiu um ralo desejo
de rir e, orgulhoso, tentou se agarrar ao fio que lhe escapava por
entre os miseráveis pensamentos e apenas teve tempo de golfar uma
poça de escarro sangrento: um punhal lhe atravessara a garganta. Sua
alma desceu aos infernos de onde jamais deveria ter saído.
Juvêncio
caminhou léguas até encontrar o mar. Despiu-se. Mergulhou e partiu
que nem estivesse a voltar para casa.