sábado, 28 de junho de 2025

Um antigo rock rural

 

Imagem gerada no Google Gemini


Juvêncio morava direito: tinha roça, casebre com varanda; pai, mãe; irmãos e irmãs; uma penca de parentes: tios, tias, primos e primas em diversos graus; todos a incensarem o fato dele ser o esteio da família, lá nas brenhas do sertão, sob o olhar vigilante dos avós que vaticinaram um futuro auspicioso para o neto que dava vida e glória à terra onde nasceram.

Mas ele, molecão, falador, altivo, confiante e sobretudo pau pra toda obra, se sentia só. Queria uma família que fosse só sua: mulher, filhos e filhas para levar o seu nome por onde até a vista não alcança. Só não podia ser qualquer uma, queria uma mulher que fosse do seu talo, que tivesse a força que ele tinha, que quisesse a mesma coisas que ele.

Um dia (era São João), Juvêncio inventou de chegar até a vila para alegrar os olhos e o estômago com coisas que não lhe eram comuns no dia a dia. E foi aí que os castanhos de seus olhos se achegaram das funduras azuis-celestes dos olhos de Lia – morena, alta, corpuda, sorriso largo, dentes a ofuscar a vista e um perfume trazido direto do fim do mundo das histórias de trancoso que ouvia da sua mãe. Ela deu trela. Ele, que não era de se ignorar tampouco de se jogar fora, logo aproveitou-se do tempo e fez o relógio correr lento e ao contrário. Aí o mundo desapareceu e os dois sentiram que a vida era doce que nem mel de abelha. Trocaram meia dúzia de palavras e firmaram a impressão que aquela coisa de “amor a primeira vista”, tinha se dado como manda o figurino de toda literatura romântica. Enrabicharam, decidiram juntar o que era de juntar e esquecer o que era de separar.

Mas o mundo não gira de acordo com a vontade de amantes, ainda mais amantes novatos, sem nove horas, sem traquejo, desmaliciosos e atrevidos, disposto a enfrentar as revés do mundo que nem se fosse um dia na lida: limpar o terreno, preparar o solo, depositar as sementes, cuidar e esperar que os frutos nasçam sadios, longe do alcance das ervas daninhas e das pragas.

A beleza ingênua dos inocentes devia ser protegida por lei. Aquele que atentasse contra tal mandamento seria considerado criminoso lesa humanidade e condenado a expulsão eterna da Terra, exilado em Marte ou em qualquer outro planeta inóspito. Mas, infelizmente, o autor, tampouco os amantes, por mais que tentem, não governam o mundo.

Logo, Juvêncio recebeu recado do pai da moça para que abandonasse aquela ideia de jerico. Não lhe era permitido chegar perto daquela que escolhera para gerar nova leva de trabalhadores honestos que pretendia disseminar pelo mundo. E não se intimidou com a ameaça. Fez de conta que tudo se resolveria se juntasse sua parentela e fosse até a sede da fazenda do coronel Isaque entabular um diálogo sincero e justo sobre a união das duas famílias: queria Lia para casar.

Mas o velho Isaque, crente mesmo somente em três coisas: extensão de terras, dinheiro no banco e no parabellum que trazia dependurado debaixo do sovaco esquerdo; useiro e vezeiro em ruindades, danado para cometer estripulias e maldades; quando dizia não era não e ponto final. Se não se engraçasse com a cara do vivente, ainda mais se fosse tipo sem cabedal, melhor arredar, ficar longe. E quando o rejeitado insistiu em conversar, azedou de vez. Estava a pedir que lhe ensinasse com quantos paus se faz uma cangalha, ora vejam só! Juntou a jagunçada, botou todo mundo de prontidão e, com seu melhor sorriso de satisfação, deu ordens aos de casa que preparassem a recepção: queria limonadas, bolos de rolo, coalhada, paçoca… tudo do bom e do melhor.

Só Juvêncio sobrou. Seus avós levaram cada um três tiros nas caixas do peito, no instante em que saboreavam milho cozido lambuzado com manteiga de garrafa; seu irmão do meio, engasgado com uma fatia de cuscuz, foi arrastado até o açude onde o enforcaram num pé de pau e, após o cortarem em tiras, o botaram pra secar ao sol; seu irmão mais novo teve o pênis decepado e enfiado na boca que ainda guardava o sabor de um licor de jenipapo; suas irmãs foram todas defloradas e decapitadas diante de seus olhos e tiveram seus corpos besuntados com melaço de cana e jogadas sobre formigueiros; seus tios, tias, primos e primas, com os dedos melecados de tanto enrolar capitães de feijão tropeiro com macaxeira, tentaram se esconder no milharal mas o fogo os atingiu antes que pudessem alcançar a estrada de terra no fundo da propriedade; seu pai e sua mãe, enevoados pelo vinho do porto, encontraram a morte, chutados e pisoteados pelas botas da tropa de samangos vindos da capital, por ordem do governador para protegerem o homem que mais produzia combustível para alimentava o progresso da nação…

Após levar surra de cipó de fedegoso, ter as unhas arrancadas com alicate esticador de arame farpado; duas tiras do couro das suas costas retiradas com perícia cirúrgica; marcado na testa com ferro em brasa; engraxado com mel e largado diante de um enxame de maribondos-cavalos, Juvêncio rangeu os dentes diante do seu sítio incendiado. Ao ver a terra salgada, engoliu um seco e sumiu no meio do mundo sem sequer dar um tchau pra Lia que, longe dali, se moía de dor por se sentir responsável por tamanha desgraça. Ela que acreditava no amor e na união das pessoas pelo bem da humanidade, se viu tal e qual o próprio mal que assola o mundo. E morreu. Morreu de morte assumida, com uma dose cavalar de estricnina, surrupiada do arsenal do pai, misturada a um copo inocente de laranjada.

Ao sarar das feridas mas com cicatrizes que nem monumentos, Juvêncio resolveu acertar as contas com o passado. Começou pelas bordas, pelos parentes: um a um condenou a uma morte horrenda. E aqui o autor se recusa a fornecer detalhes por considerar o protagonista nada assemelhado a torturadores contumazes. Chegou aos próximos: fez valer sua vingança. Exterminou a jagunçada, os macacos, os aliados e caminhou em direção ao velho Isaque que o aguardava a mastigar vento, sentado na sua poltrona forrada com o couro dos seus inimigos. O potentado olhou seu pequeno mundo, sentiu um ralo desejo de rir e, orgulhoso, tentou se agarrar ao fio que lhe escapava por entre os miseráveis pensamentos e apenas teve tempo de golfar uma poça de escarro sangrento: um punhal lhe atravessara a garganta. Sua alma desceu aos infernos de onde jamais deveria ter saído.

Juvêncio caminhou léguas até encontrar o mar. Despiu-se. Mergulhou e partiu que nem estivesse a voltar para casa.


 



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