Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens

sábado, 20 de maio de 2017

O Circo da Onça Parda


The Wheel of Life, Stanley Pinker, 1974


A Onça sonhava em ser estrela de Hollywood. Mas como morava na Cochinchina, pediu dinheiro emprestado a uma tia, comprou uma lona e montou um circo.
No dia seguinte contratou um Domador de Pulgas, três Girafas Bailarinas, quatro Besouros Palhaços, cinco Araras Malabaristas, seis Jiboias Equilibristas, sete Macacos Trapezistas e saiu pelo mundo fazendo graça. Mas o seu grande trunfo, aquilo que chamava mesmo atenção, era o número final do espetáculo: uma peça teatral, escrita, dirigida e protagonizada por ela. E para alcançar o sucesso, a Onça desenvolvera uma engenhosa estratégia. Em cada localidade que chegava, botava seu bloco na rua à procura do assunto mais comentado. A partir daí, criava um roteiro, trocava os nomes, acrescentava alguns quiproquós, enfiava meia dúzia de piadas e zás… Não tinha erro: casa cheira todo dia.
Tinha mesmo talento pra coisa, a Onça. O que ninguém sabia era que ela se valia de uma arma secreta. Para não depender apenas da equipe, mantinha escondido no seu trailer um sistema de escuta, inventado por ela a partir de apostilas de um curso de eletrônica por correspondência. Esse equipamento lhe permitia ouvir até pensamentos. Era só apontar a antena na direção do alvo para ouvir até as batidas do coração da pessoa, estivesse onde estivesse. Desta forma, a Onça conseguia ouvir tudo que não se costumam falar na presença de estranhos e também aquilo que nem às paredes se tem coragem de confessar. Desse modo, não existia segredo para a Onça e esse era o seu segredo. Até que o circo chegou na Vila do Poxaréu.
Logo após o desfile das atrações pela rua principal do vilarejo, a Onça falou que ia tirar um cochilo, correu pro trailer e apontou o radar na direção das casas. Logo captou uma conversa estranha. Gravou que a Família Bovina se gabava de colocar água no leite e assim aumentar os lucros sem aumentar a produção. Gravou também a Família Abelha comentando que vendiam melaço de cana misturado com suco de milho como se fosse mel puro. E conseguiu escutar que a Família Leão vendia proteção e segurança enquanto chefiava uma quadrilha de Hienas e Fossas assaltantes.
De posse dessas e de outras histórias cabeludas, a Onça preparou sua apresentação da noite, certa de que estouraria a boca do balão. Afinal, todo mundo gosta de histórias escabrosas, pensou esfregando uma mão na outra.
Mas, o tiro saiu pela culatra. Quando o público viu a encenação, não houve quem conseguisse segurar a turba. Uns exigiam saber como foi que a Onça conseguiu acesso àquelas informações e quais eram suas fontes; outros alegavam que tudo não passava de uma campanha de difamação contra famílias eminentes da cidade. O que ninguém podia negar era que, nunca na história de Poxaréu se tinha ouvido falar de tanta corrupção.
O delegado emitiu ordem de condução coercitiva para que a Onça comparecesse ao tribunal, porém quando os guardas vieram prendê-la, encontraram o povaréu pronto pra tocar fogo no circo e prender os artistas, para sempre, num buraco bem fundo, no meio da floresta, sem pão nem água, para que morressem à míngua. Formou-se uma confusão, um empurra-empurra dos diabos. A Onça aproveitou uma brecha, tentou sair de fininho pra se livrar do equipamento secreto mas, alguém a segurou pelo rabo e, após descobrirem fitas e mais fitas de gravações clandestinas no seu camarim, não pensaram duas vezes: levaram-na presa para responder pelos crimes de lesa-pátria e alta traição.
No julgamento, alegou em sua defesa que apenas encenou a verdade. Se a maioria da população fosse mesmo direita, como afirmavam ser, deviam mesmo era prender e condenar os poderosos que vinha enganando todo mundo desde muito tempo.
O júri deliberou e decidiu que, pela culpa de indiscrição, a Onça teria seu equipamento destruído e um chip seria implantado na sua orelha – cada vez que tentasse ouvir uma conversa alheia receberia uma descarga elétrica. O circo pode seguir caminho mas, a trupe foi avisada de que jamais deveriam colocar os pés de novo na cidade, sob pena de morte bastante dolorosa.
Desde aquele dia, o Circo da Onça Parda nunca mais foi o mesmo. Gato escaldado tem medo de água fria, não é assim? Hoje, sobrevivem assim-assim, levam a vidinha, apresentam velhos números, fazem as mesmas piadas, encenam as mesmas peças... O problema é que, sem entusiasmo, o sucesso não bate duas vezes na mesma porta. 
Quanto a Vila do Poxaréu, depois da partida do circo, o povo decidiu processar os corruptos. Mas como eles dominavam e dominam os poderes locais, acabou acontecendo o que todos estão acostumados: deram uma mudada para que tudo continuasse como estava. 


sábado, 6 de maio de 2017

Cariátide

Pórtico do Museu de São Petersburgo
Entrada Histórica



Dois humanos se encontraram diante de uma cerrada névoa. No ponto que estavam não se enxergava um palmo adiante do nariz.
Um deles sugeriu subir nos ombros do outro para ver se conseguiria avistar o horizonte e que depois trocariam de posição. O primeiro concordou e o segundo subiu em suas costas e lá se estabeleceu.
Por vezes, o primeiro tentou saber o que se passava acima da sua cabeça e o segundo respondia que logo desceria; que logo o outro subiria para ver com os próprios olhos o que tinha para ver; que aguardasse mais um pouco; que logo seria a vez dele usufruir das maravilhas que lá em cima se projetava.
E o tempo passou, e a medida que o tempo passava o segundo construiu sob os ombros do primeiro, uma casa, depois uma rua, depois uma cidade, depois um país, depois uma nação e assim foi até construir uma cultura com todos as benesses e mazelas que o engenho pode oferecer; além disso, casou-se, multiplicou-se, legando a seus filhos o nobre encargo de prosseguiram com a edificação da Obra.
E o primeiro sempre a perguntar quando trocariam de posição e sempre recebia como resposta que tivesse paciência; que esperasse um pouco mais; que havia ainda alguns retoques, alguns ajustes, que logo, logo poderia subir e completar aquilo que havia ajudado a criar. Que se orgulhasse disso, a posteridade lhe seria grata.
O primeiro também casou-se, multiplicou-se e os seus filhos não tiveram alternativa senão seguir o pai, colocando seus ombros a serviço da Construção.
Com o tempo, aquilo se tornou normal, virou tradição. Havia os de baixo que sofriam e os de cima que usufruíam e ninguém sabia explicar porque as coisas eram daquele jeito.
Um dia, o primeiro, acabado, gritou basta. Disse que não dava mais, que dali pra frente o segundo procurasse outro para sustentar aquela excrecência.
Lá do alto, o segundo, irritado, bradou: Não podes desistir, humano sem compaixão. Se deixares de sustentar a Obra, todo o nosso esforço terá sido em vão. É isso mesmo que queres, destruir a Civilização?
E o primeiro não aguentando mais, deixou que seus ossos fossem transformados em coluna de sustentação para mais uma área em desenvolvimento.
Moral da história: O interesse é a mãe da justiça. 


sábado, 22 de abril de 2017

Conto ao Mar


Mitos Profecias do Fim do Mundo
Nina Tokhatman Valetova, 2009



Existem histórias destinadas às chamas.
Federico Hamor Dazonni
Editor de Cultura
Gazeta Minudente, 15-02-1963


Bisonho Pata Molhada era um touro vulgar, burro e ladrão… Contudo: dono, juiz e senhor de dois terços de Beira do Cipó. O terço restante, seguia governado por uma seleta e abençoada mistura de corvos boa praça com camundongos sectários, devotos do queijo voador. Para legitimar tudo isso havia um time de especialistas, fazedores de leis, decretos, normas, portarias, comunicados e memorandos, devidamente gerenciados pela Corte dos Cágados Relutantes, tribunal com plenos poderes para legislar em causa própria em qualquer foro que lhe for do agrado.
Vagando de déu em déu se arratavam os Prejudicados, presa predileta dos pavões-do-matoexímios praticantes da arte de arrancar o couro sem matar o cabra. Pau pra toda obra, era na classe prejudicada, parcela majoritária da população, que se recrutava os melhores braços para as lides diárias. Entregues às labutas de comer o pão que o diabo amassou; fazer das tripas coração; viver entre a cruz e a espada; meter a mão em cumbuca; comer gato por lebre; apanhar touro a unha; chover no molhado; procurar chifres em cabeça de porca; conduzir vacas ao brejo… Em meio a tantas atribuições e atribulações, mal tinham tempo para curtirem o vuco-vuco dos fofuchos pintassilgos que, adoravam distribuir carteiradas a torto e à direita e tinham por profissão, desfilar, dia e noite, a bordo de seus possantes dotados de autoconsciência e amor-próprio.
Em meio a tudo isso, transitavam serelepes e audazes, cobras apostadoras devidamente subvencionadas pela única rede de comunicação e entretenimento autorizada a transmitir, ao vivo, as peripécias da equipe de robôs endiabrados fabricados pela corporação Sofarway, uma empresa ecologicamente correta, a serviço da simpática máquina boazinha e à acumulação rápida e indiscreta de capitais. Sustentavam tal sistema, o conjunto dos lagartos zeladores ab ovo das sagradas estatísticas, exímios calculadores de mágicas margens de erro.
Mas nem tudo é serviço. Para alegria geral, concursos anuais eram realizados entre as tanajuras para escolha dos melhores glúteos, em benefício exclusivo do aprimoramento da raça. Este inocente e cordial passatempo era motivo de júbilo, verdadeira febre esportiva, muito apreciada e incentivada, sem furdunço, pelos altos e baixos escalões. Embora causasse desconforto na minoria intrometida de meia dúzia de gansos, temerosos de deformações endógenas que, empertigadamente, viviam solicitando, sem sucesso, maior controle do evento por parte das autoridades sanitárias.
Para contornar qualquer possível impasse, o comitê responsável pela organização de festas instituiu os Jogos Fodásticos – conclave realizado de quatro em quatro anos, numa localidade escolhida para receber a Batata Quente (símbolo maior da nossa tradição). Este evento era a fonte mais rentável de dividendos para a economia beiracipóense. Porém, dado o caráter volátil da dinheirama arrecadada, era praxe vê-la aparecer em contas secretas de paraísos fiscais, sob pretexto de preventivas medidas para se evitar qualquer tentativa de moratória dos juros devidos, desde que o mundo é mundo, ao exclusivo Clube das Aves de Rapina que Voam Alto e Enxergam Longe. Verdade que alguns nativos lamentavam o costumeiro sequestro de 95% da renda individual sob a alegação de que era preciso contribuir para a manutenção do equilíbrio geopolítico global ora em uso. Mas ficava-se apenas no lamento e, por não convir dar trela pras mazelas, desprezava-se, de pronto, tais conjecturas e suas incômodas consequências.
E se nem tudo é serviço o mesmo se aplica às lágrimas. Para alcançar o riso largo, bastava olhar para o colossal rebanho de ratazanas transgênicas, capazes de produzirem uma qualidade de leite com alto teor de testosterona. Sucesso absoluto de vendas, tal bebida láctea era recomendada aos varões viris da comunidade, para o bem de suas desassombradas conformidades. Além disso, havia a coqueluche nacional, o biscoito Tetas da Mamãe, guloseira sem qualquer valor nutritivo, mas orgulho pátrio especialmente por derreter na boca e vir com prazo de validade indeterminado.
Mas antes que eu me perca, devo correr ao ponto. Era uma tarde desavisada, tarde que ninguém daria um tostão furado por ela, tarde sem quaisquer atrativos senão os costumeiros, ruidosos e agressivos protestos exigindo-se tolerância para com nossa intolerância, Pata Molhada teve um surto de bobice. Doutos e ilibados cérebros não chegaram a um acordo se firula ou faniquito dos brabos. Na dúvida, recomendaram chá de losna, sem açúcar, três vezes ao dia. Contudo, em vez das melhoras, Bisonho manifestou desejo de criar o mundo do nada e em sete dias entregar a obra pronta. Enlouquecido com a quantidade de detalhes a considerar, lá pelas seis e meia teve um arrebatamento. Uma luz canônica o alçou até o celeste domínio do queijo santo. Após voo rasante sobre a névoa do passado, compreendeu que já tinha sido tudo, menos honesto e decidiu, ali mesmo, na esfera metafísica, começar nova vida. E qual não foi a sua surpresa ao verificar que tinha diante de si um vetusto templo antigo. Após passar por um treinamento intensivo e bastante puxado com os monges locais, finalmente, ao cabo de algumas horas, recebeu o diploma de sujeito bom e virtuoso.
Ao retornar à Beira do Cipó, achando-se renovado e pronto para iniciar jornada épica e porreta, Pata Molhada, crendo-se agora honesto, não contava que, ao chegar em casa, sua família não o reconheceria, seus amigos o detratariam, sua mulher lhe rejeitaria e todos riram dos seus esforços para convencê-los do contrário… Até os bichos de criação cagaram e andaram à sua suposta mudança. Muito puto dessa vida, indignado, possuído por uma ira divina, deu-se por satisfeito com aquela presepada. Ao acordar do pesadelo, decidiu esquartejar, em praça pública, o autor dessa história.
Enquanto caminhava para o patíbulo, pude ouvir o decreto de celebração do fim do ano seguido por intermináveis fogos de artifícios que iluminaram o céu dos brigadeiros e urubus. E, na contagem regressiva para a chegada do novo ano, antes que a faca do açougueiro-mor encontrasse as minhas partes, eis que a agência de trafego aéreo informou, em boletim extraordinário, que um meteoro gigante e com intenções cataclísmicas, acabara de entrar em rota de colisão com a Terra. Imediatamente, foram confirmados os 99,99% de chance daquele troço, tresloucada substância sólida, atingir em cheio Beira do Cipó. Uma onda de pânico tentou chegar à praia mas, num golpe de mestre, foi contida pela intervenção do pessoal do Show Dominical de Todo Domingo que, abençoados pelos tubarões da mídia, convocaram os pensadores de plantão. Em parceria com diretores de marketing, não pensaram duas vezes em encomendar, às melhores agências de propaganda, duas ou três cartas na manga, para garantia de sobrevida ao patrão.
Na confusão, consegui escapar com a ajuda de um conhecido meu, fabricante de psicografias poéticas, ditados por palhaços obsessores que, enxergou na ocasião, uma chance de colocar em prática um infalível plano conspirativo de malfadamento das instituições, cansado que estava da posição decorativa que ocupava no jogo político literário e ávido por colocar um ponto final no predomínio cultural da turma dos comedores de pequerruchos. Enquanto buscava construir algum tipo de rede de proteção, mal tive tempo de redigir essas malfadadas linhas e, enquanto o meteoro caía, senti abrir-se as portas do beleléu. Embasbacado, mal tive tempo de jogar esse conto ao mar.

 

sábado, 8 de abril de 2017

O Sapo Cururu e a Princesa Magnólia

O Sapo, Tarsila do Amaral, 1928



Presta atenção nessa lenda, vou contar do jeitinho que ouvi. Numa ilha bem distante, pertinho donde mora o sabiá, era uma vez a princesa Magnólia que gostava de jogar futebol. Um dia, na hora de marcar um gol, deu uma bicuda tão forte que a bola caiu num lugar sinistro chamado Lagoa da Perdição. Grita daqui e dali, ninguém quis saber de ajudar. A princesa abriu o maior berreiro, chorou tão alto que tudo mundo correu pra longe protegendo os ouvidos. Ficou apenas o sapo-cururu, que foi quem primeiro me contou essa história.
Começa assim. O sapo, meu amigo, passava pelo charco no instante em que Magnólia começou o chororô e percebeu que era uma boa oportunidade para conseguir o que queria. Chegou até ela e disse que mergulharia nas águas turvas da lagoa e traria de volta, são e salvo, o brinquedo dela. A princesa, enxugando as lágrimas na barra do vestido, gritou que ele fosse logo, que ele era servo e que, portanto, tinha obrigação de ajudá-la. Se não trouxesse a bola o mais rápido possível chamaria os guardas do seu pai pra prendê-lo por desobediência.
Aqui entre nós, todo mundo sabe que o batráquio não tinha obrigação nenhuma de ajudar seu ninguém. A gente ajuda porque tem vontade, porque tem compaixão, porque não aguenta ver outra pessoa sofrer. Mas, foi por aflição que o sapo decidiu ajudar. Um problema grave ocorria. Sua namorada estava vivendo uma situação difícil e ele precisava fazer o que fosse preciso para livrá-la do mal que a afligia. Porém, precisava fazer as coisas direito, livre de erros. Por isso achou melhor não falar o motivo que o trouxera àquelas paragens, falou apenas que recuperaria a bola se a princesa lhe desse uma tigela de ambrosia. Magnólia ficou com uma pulga atrás da orelha. Estaria o sapo dizendo a verdade? Em meio à dúvida, não teve alternativa senão concordar com o pacto: se o sapo trouxesse a bola, teria o quanto de ambrosia pudesse carregar.
Cururu mergulhou na lagoa espessa e ao chegar ao fundo levou um baita susto ao encontrar Boiaçu, a Cobra Grande. A serpente, que tinha engolido a bola de propósito, disse que devolveria em troca de um favor. E contou-lhe uma história. No passado fora uma linda moça que casou com um rapaz bonito e cheiroso que, no começo, parecia bem legal mas logo revelou-se um tremendo “casca grossa indiferente aos seus sentimentos. O sujeito, com o tempo, começou a tratá-la mal. Ameaçava-a sempre com pancadas se não fizesse o que ele queria. Certa vez, tomado de raiva, deu nela com um cabo de vassoura que lhe deixou uma marca feia nas costas. Os pais dela gostavam demais do moço, diziam que ele era muito esforçado, trabalhador e por isso não acreditavam nas queixas da filha. Falavam que ela precisava deixar de ser patricinha; se adaptar à realidade; que casamento era assim mesmo, que com o passar do tempo o amor chega e aí todo mundo é feliz para sempre. Pois é. Mas foi só os velhos baixarem à sepultura para todo mundo descobrir o verdadeiro motivo do carcamano ter se casado com ela: a herança. Tão logo passou o luto, o malvado contratou um feiticeiro que, imediatamente, a transformou naquela serpente rancorosa, desterrando-a para os confins daquela água parada. Desde então, vivia separada da sua filhinha – a doce e terna Magnólia. Se conseguisse fazer com que a filha a abraçasse, todo feitiço seria desfeito e a justiça restaurada.
Com a bola debaixo do braço, o anuro nadou de volta à superfície. Assim que a princesa recebeu o brinquedo, botou sebo nas canelas e picou a mula na direção de casa, largando o sapo a ver navios. E agora? Gia, sua namorada, prisioneira na caverna do implacável Ciclope do Olho Redondo, estava lá a espera que ele arranjasse um bocado de ambrosia para saciar a fome do gigante. Se não aparecesse com o resgate até as duas horas do dia seguinte, adeus amor, adeus família, adeus mundo… Também ele iria para o tacho.
Pula daqui e dali, não passou desapercebido aos guardas do palácio que o levaram à presença do Rei. O monarca tapou o nariz com um lenço de seda, fez cara de poucos amigos e ordenou que o jogasse fora. O sapo pediu licença para falar umas palavras e foi aquele furdunço. Ninguém nunca tinha ouvido um bufo marinus falar. O vizir, um traste muito do puxa-saco, cochichou no ouvido do rei que aquilo era um achado, um talento daqueles significava dinheiro, muito dinheiro no bolso da majestade, que pensasse em apresentações daquele fenômeno em feiras, circos, teatros, televisão, cinema… Sua Majestade ficaria ainda mais rico se soubesse explorar aquela oportunidade. E o rei sorriu e não sentiu mais nojo. Ordenou que preparassem uma festa onde o braquetápulos seria apresentado à Corte. Cururu vendo que tinha acabado de entrar noutra roubada, teve que pensar rápido num jeito pra conseguir pegar a ambrosia e dar o fora dali rapidamente.
Quando os guardas o estavam levando para tomar banho e trocar de roupa, Magnólia atravessou o corredor e não acreditou no que viu. Como é que o sapo tinha conseguido entrar no palácio? Aproximou-se e disse aos guardas que deixassem que ela mesma conduziria o convidado aos aposentos, que ela mesma escolheria a traje que o amigo usaria no baile daquela noite. Deixados a sós, Magnólia quis saber qual era a dele. Ora, respondeu ele, estava apenas tentando resolver um problema cabeludo e se ela tivesse um pouquinho de gratidão o ajudaria nessa hora de angústia. A princesa admirou-se e sentiu vergonha. Arrependida, decidiu que o ajudaria mas com a condição que lhe contasse toda a verdade, qual o motivo dele querer pra si o alimento mais caro do mundo.
Meu amigo resolveu abriu o bico e contou tudo. Que tinha se encontrado com Boiaçu e ficou sabendo dos maus tratos para com a rainha, sua mãe. Apenas ela, e mais ninguém, poderia anular o feitiço. Como aquilo era possível, perguntou Magnólia. Sua mãe havia morrido, o pai lhe dissera. Mentira, gritou o sapo. É só ir até a lagoa que a verdade será revelada. A princesa, que era uma manteiga derretida, correu chorando para o mato. Como ter certeza das coisas? Só havia um jeito: ir fundo na história. Temerosa, meio sem jeito, aproximou da lagoa e sussurrou: Mamãe… E, animada gritou: Estou aqui, mainha! Boiaçu, botou a cabeça fora d’água e sentiu que seu sofrimento tinha acabado. Mãe e filha correram para o abraço e um clarão iluminou as duas: o feitiço estava desfeito.
Agora, era preciso castigar o rei, por sua maldade. Magnólia pediu às amigas formiguinhas que elas trouxessem o monarca até ela. Quando ele chegou e viu mãe e filha juntas, pediu perdão por ter sido tão cruel, alegou que fora enfeitiçado mas, de nada adiantou suas súplicas, foi sentenciado a perder tudo e a perambular pelo mundo ganhando a vida com o suor do seu rosto.
De volta ao palácio, princesa e rainha decidiram presentar o sapo com uma tonelada de ambrosia, o bastante para que ele salvasse a amada. Magnólia quis beijar o amigo pensando que ele se transformaria num príncipe mas, Cururu achou melhor não, aquilo era apenas uma história de trancoso. Onde já se viu bicho virar gente? Mais fácil gente virar bicho, isso sim. 
Finalmente, livre de problemas, meu amigo casou-se com Gia, a Prudente. Tiveram duas lindas meninas, Rhinella e Marina e todos viverão felizes para sempre, se você, que leu ou ouviu o meu conto, passar adiante essa história. 

sábado, 25 de março de 2017

Forró Enluarado

Forró Pé de Serra, Xilogravura de J.Borges



Mangue Seco vivia uma estiagem braba. A vida estava virando pó… Todo dia alguém partia pro beleléu pra morar na cidade de pé junto e comer capim pela raiz por não encontrar um gole d’água pra beber.
Mestre Funéreo Asa Preta, sentiu de longe a catinga do fim. Ligeiro, voou alto e, ao ver aquele sucesso, uma montoeira de carniça espalhada pelo chão, estimou que não conseguiria dar conta do recado. Danou-se a pensar numa solução e, após pousar no galho de um umbuzeiro, decidiu que era hora de ter uma conversinha com dona Morte. A senhora do sono eterno havia de segurar a onda, era preciso dar um tempo naquela estripulia e permitir que a vida voltasse ao normal.
A indesejada das gentes disse que não tinha culpa no cartório, apenas cumpria sua obrigação de cortar o fio da vida e levar as almas pros campos do vai-num-torna. E que nesse negócio de seca, a responsabilidade era de Lua e Rio que andavam de mal um com o outro… Só quando eles fizessem as pazes, a chuva voltaria a molhar o chão.
Urubu se pôs no caminho da justiça e descobriu, em conversa com uns calangos que batiam em retirada daquele solo esturricado, que Lua era ele e se chamava Luiz e Rio era ela e se chamava Jaci; que eram dois apaixonados, espelho um do outro; que, da noite pro dia, viraram a cara um pro outro, por causa do ciúme que Lua sentia de ver a querida do seu coração de deleite com o Mar.
– Ando muito chateado com tudo isso e mais triste ainda porque a minha sanfona foi roubada. Só posso lamentar essa situação… É muita agonia ficar sem poder tocar minhas músicas, não contar com o meu instrumento para animar Rio a ter olhos só pra mim. Disse Lua a soluçar, escondido num canto escuro do seu quarto.
Funéreo andou mais um pouco na sua investigação e acabou por descobrir que a bendita sanfona fora roubada por dois empesteados que infernizavam os ouvidos da população com uma moda dos estranja, um som destrambelhado apelidado de sertanejo pesado. Por serem muito rudes no trato com a música, inchados de pretensão e vaidade, acabavam por arranhar as notas feito gatos brabos brigando dentro de uma cristaleira. Jeitoso, o esperto Asa Preta conseguiu convencê-los a mudarem o rumo das coisas. Como gostavam de batucar, lembrou-se duma zabumba e triângulo que viu num monturo e, depois de dar um trato nos petrechos, ensinou os dois a tocarem com maestria, comprometendo-se a conseguir que Lua os aceitasse como companheiros de serestas.
Lua Luiz, ao receber de volta seus oito baixos, botou o fole pra gemer. Quando Rio Jaci ouviu os acordes arrepiou-se todinha e começou a derramar água pelos olhos de tanta alegria. As lágrimas evaporaram e alcançaram as nuvens que, de tão pesadas, não tiveram escolha senão abrir as comportas do céu e deixar que a chuva caísse de mansinho sobre a terra sofrida. 
O amado, satisfeito, transformou-se em Lua Cheia, presenteou a amada com um lindo manto prateado e, durante uma semana, um forró enluarado animou a cidade com as mais belas músicas e canções. Foi tanto contentamento que a turma decidiu mudar o nome da localidade. O que antes era um mangue seco passou a se chamar Jaciobá que, na língua da floresta, quer dizer espelho da lua.
O povo, com a alma aliviada e o coração refrescado, encheu potes e moringas e sorriu de felicidade diante das cacimbas fartas, cisternas topadas, lagoas abarrotadas, açudes transbordantes… É, finalmente a vida e a beleza voltaram a reinar soberanas e até hoje, toda vez que mandacaru fulora lá na serra, é dia de festa no sertão: sinal que a Morte entrou de férias e Urubu Rei pode tirar um merecido cochilo depois do almoço. 

sábado, 11 de março de 2017

A Fome do Bode Velho


O Casamento do Bode, J.Borges


Aos netos e netas




Bode Velho andava acabrunhado, se arrastando pelos cantos, desejoso de inexistir. Cansado de tanta tristeza, encostou-se debaixo de pé de pau pra ver se descansava os pensamentos e, quando pensou que não, garrô num sono profundo e logo se viu no céu dos caprinos – lugar pra vivente nenhum botar defeito: árvore pra todo lado, grama viçosa, água gostosa de beber, rios de leite, córregos de mel, cachoeiras e mais cachoeiras de caldo de cana e suco de cajá. Sentindo-se em casa, passeou por aquele paraíso e, ao chegar numa praça, teve um ataque de alegria. Encontrou um monte de amigos que gritaram surpresa, diante de uma mesa posta, cheiinha de fartura da melhor qualidade. Bode Velho, matou a saudade, matou a fome e quando estava no bem-bom do forró com uma cabrita serelepe, uma jaca mole lhe caiu sobre a cabeça e ele acordou.
Amargurado, correu até a funerária e se enfiou no primeiro caixão que estava em exibição.
– Pode baixar a tampa e jogar terra por cima, que não quero mais…
– Que houve, Bode Velho, por que essa agonia?
– Não aguento mais essa vida, seu Urubu.
– Pera lá, não é assim que a banda toca, não. Primeiro vamos ter que examinar bem a situação. E buscou os cuidados da Chica da Loca, a rezadeira.
– Sei não… disse a velha, dependurada no seu cachimbo. - Deve de ser quebranto… Mas também pode ser espinhela caída… Melhor benzer.
Urubu interveio: – Bode Velho precisa de um remédio para aflição.
– Quem sabe o compadre Bacurau num tenha… Agora: vamos benzer ou não?
– A senhora pode ir benzendo no caminho, disse o Urubu já pegando o cabrão pelo braço. - Vamos, vamos procurar o velho Estrigídeo. Talvez ele tenha cura pro seu estado mortiço.
Estrigídeo Bacurau, era um corujão que vivia no oco de um angico desde que o mundo é mundo. Descobrira com os saguis que essa árvore produzia uma resina que era mais doce que mel e logo se empoleirou por ali, certo da garantia de um suprimento de comida pro resto da vida. A parte disto, ou quem sabe por conta disso, era conhecido como o mais famoso conhecedor de coisas desconhecidas, o maior adivinhador de enigmas e sabia, como ninguém, ler os alfarrábios.
Depois de muito alisar as poucas penas da cabeça, Bacurau exclamou:
– Difícil essa resposta… Penso que isso é coisa pro Encourado resolver.
– Mas o Encourado não tem lugar certo de estar, a gente vai passar um bocado de tempo procurando por ele, informou Urubu sem reparar que Bode Velho lambia os beiços enquanto cheirava um e outro livro.
– Não se a gente carregar, cada um, um chocalho, replicou Estrigídeo. - Ao ouvir o telengotengo do badalo, esteja onde estiver, o Encourado, pensando ser um bezerro desgarrado, corre pra te ajudar.
Bode Velho, Urubu, Chica da Loca e o velho Bacurau foram pro meio do mato badalar seus chocalhos. Não demorou nem um minuto, o Encourado empinou seu cavalo. Forrado de couro dos pés a cabeça (para se proteger dos galhos traiçoeiros da caatinga), mais parecia um guerreiro de outro mundo dentro de daquela armadura colorida, coberta de enfeites de metal e vidro e com um chicote na mão direita pra espantar cascavel e tirar silêncio do ar.
– Vocês não parecem bezerros, foi logo dizendo o Encourado. - O que vieram fazer neste fim de mundo?
Urubu se adiantou mas, foi Estrigídeo quem falou: – Bode Velho anda pelos cantos mortificado de tristeza. E tu, que és um sujeito andado e viajado…
Encourado deu uma chicotada no ar, desceu do cavalo e foi examinar de perto o doente.
– Que se passa meu amigo, por que esse desgosto todo?
– Sabe que num sei… É uma coisa que nasce aqui, no miolo da cabeça e vai se espalhando pela cacunda, passa pela caixa dos peito, atravessa as costelas, toma conta dos quartos e quando penso que não, me acontece uma vontade danada de desviver.
– Deixa que dar uma olhada aqui no meu caderninho, onde anoto umas bestagens…
Enquanto examinava, o Encourado notou que Bode Velho cheirava o caderninho e lambia os beiços…
– Ora, ora, ora… O compadre Bode Velho tem mesmo é fome… Fome de livros. Vamos até o casarão, que já dou um jeito nisso.
Encourado teve o maior gosto de tratar do Bode Velho. Conseguiu que ele se instalasse na biblioteca (que não era miúda nem raquítica) e devorasse quantos livros quisesse e aguentasse.
Depois de um tempo mastigando clássicos de histórias, Bode Velho começou a andar pela vizinhança arrotando sentenças graves (às vezes com muita graça) e, logo, o sertão percebeu a diferença. Além de recuperar a saúde e a confiança em si mesmo, Bode Velho encontrou uma namorada – uma raposa que gostou muito da sua conversa espichada e cheia de belezura.
Enquanto isso, Urubu mudou de profissão e decidiu aprender música; Chica da Loca foi estudar medicina na Capital; o velho Estrigídeo Bacurau saiu pelo mundo plantando árvores onde os tratores derrubavam; o Encourado continuou no seu propósito de ajudar bezerros desgarrados e eu – que não tinha entrado na história – vou muito bem, obrigado.

 

sábado, 31 de dezembro de 2016

O Tigre e a Borboleta

Ilustração, Enkel Dika, 2009





Com ajuda do Jorge Luis Borges



Certa feita, um tigre sonhou que era uma borboleta.
Ao acordar, não sabia se era um tigre que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um tigre.
Por três vezes isso aconteceu.
Curioso, o tigre decidiu procurar o Buda que, sereno e simpático, disse que, infelizmente, não possuía a resposta. Nunca tal sonho lhe ocorrera e jamais falaria de algo que nunca tivesse experimentado.
Porém, para que o tigre pudesse iniciar a busca pelo entendimento daquele embaraço psíquico, sugeriu que considerasse ser ora um ora outro.
Nos dias pares, fosse uma borboleta, nos dias ímpares, um tigre.
E, após um tempo, avaliasse seus sentimentos… A resposta à sua questão lhe surgiria naturalmente.
E foi assim que, um dia, ao olhar-se no espelho d’água e perceber a simetria do seu rosto, o tigre encontrou uma borboleta estampada nele.




  

sábado, 27 de agosto de 2016

A Difícil Vida da Narrativa


Drawing or Writing
Vicent van Gogh, 1886



- É o que consegui…
- ???
- Coloque-se no meu lugar. Tente encontrar o interruptor.

Tudo do mesmo. Variam os eventos mas, em essência, permanece a luta. Os adjetivos colorem, vibram, evocam fantasias… Verbos impedem a inércia. Advérbios são especiarias enquanto os substantivos, suscetíveis à vontade, aos humores, aos interesses, buscam nomear um mundo inominável. Mas por onde chegar? Importaria, não andasse com a cabeça no final do mês. E pensar que são necessárias habilidades que não estão ao alcance da mão… Desespero para quê, se é impossível qualquer independência dos pronomes e do emprego. - Continuas no negócio de mágica?

Dê-lhe uma história, senhor. Por amor, por piedade, um capítulo… Nas mãos, uma caderneta encardida e a súplica por uma historinha que seja, carrocinha que fosse... Todos pensam o melhor de si, ainda mais se se está em algum degrau acima da rés do chão. O problema é que jamais acertamos a dose. Gostamos mesmo é de avançar. Sem limite. O normal é viver por fora, sujo, enredado em dúvidas, senões, contas para pagar, colégio das crianças, rotativo no cartão... E normal não distingue as coisas, os modos, as maneiras, as circunstâncias, só pensa na próxima viagem à Disney. Felizmente, tem sempre alguém com moral suficiente para dizer que pau é pau e pedra é pedra. Quer saber? Cansei, vai tomar no c… mesmo que não saiba (ou não queira) reconhecer o alvo.  - Ponha-se no meu lugar e tente encontrar o interruptor.

Às vezes, uma alma saída dalgum livro improvável vem e deita alguns parágrafos, autoajuda, versículos religiosos, provérbios ou até mesmo duas ou três frases de alguma pessoa famosa… Aí, que fazer? Aceita. Pois é certo que a gente só dá e recebe aquilo que tem e alcança. Nessas horas, vai tudo pra gaveta, juntar-se a plágios homéricos, títulos extensos, epígrafes caducas, enredos truncados e finais inverossímeis, afinal o que no fundo importa de verdade é a narrativa deste release que encontrei aqui na minha mesa com um post-it anexado: “pra ontem e urgente”.

Um enorme corredor esse novelo… Quantas opções e eu aqui. Seria inteligente dizer não? Voltar aos próprios rastros? Quem pode me condenar por seguir adiante neste ajuste de contas com as minhas três refeições ao dia. Sim ou não, sim ou não, sim ou não… E eu, lobisomem. Quantas truques, trapaças, desmentidos, versões apócrifas antes de, finalmente, fazer o que não se espera? Claro que conta a experiência. Esta maldita que primeiro nos dá a prova, depois a lição. Concordemos por um instante: logo mais ali adiante cada um irá para o seu lado e é como se nunca houvesse existido aquela conversa de futuro que virou passado em meio a esse medo que nos une, medo que nos une, medo que nos une… Embora, quem sabe, possamos ter amado alguém ou algo mas, que importância tem isso agora quando se perde em meio a este horror fodido de perder tudo que se tem mesmo quando este tudo é um nada maior que tudo. E o que é a perda, se sabemos de antemão que estamos destinados a ela. Perder faz parte do ofício. E viver não se compara em nada com escrever. Viver é só uma circunstância, da qual temos muito pouco controle. Escrever… Sempre podemos editar, salvar, fechar, arquivar e tudo de novo e novamente. Mas aí… aí caio na rua da amargura se não prossigo. Merda, onde anda meu quinhão de reconhecimento.

Dizem dele que juntara o suficiente para uma saga. Conjecturavam se já não era dono dalgum romance, um épico nacional. O que ninguém via era que aquelas histórias mal contadas, diabéticas, frívolas e, mais das vezes, banais mal davam uma sopa de letrinhas ao fim do dia quanto mais… Temperadas com astúcia, humor e pitadas generosas de sexo, lhes digo, jamais competiriam com uma simples bula de remédio quanto mais com efeitos especiais em trinta segundos. E há ainda esta tal de gestão. É isto, enfia na cabeça, escrevemos para quem paga. Putana, putana, putana…! Como isto é fácil. Só não sei se gosto desta altura dos acontecimentos. Mas quer saber, dane-se qualquer veleidade, não posso decepcionar as crianças...

O quarto é o de sempre e a escuridão está em todo lugar. De tal modo que não consigo distinguir cegueira de escuridão. Porque fecho os olhos no escuro? Transfiro para as mãos, para as pontas dos dedos, toda a responsabilidade. Porém, dedos não falam. Quem vê aquele mar que está ali na parede? Olhar é apenas parte do problema. Ouço e cheiro… Cheiro que vem de mim, esse cheiro, um cheiro… Alguém, que não eu, deve lamentar, com certeza. Quanto de liberdade, quanto de independência hei de sacrificar antes que termine essa história? - Irresponsável, hoje... Ando assim.

E no entanto, as palavras me vêm assim, ordenadas, categóricas… Palavrões, clichês... Não deixam dúvidas de tão matemáticas, indagam tão fundo que chegam a ser científicas… Ao final é apenas um jogo, de montar, destes que a gente compra ali, destes pra quem gosta de dar trabalho os miolos, de fazer com que alguém se sinta burro, tal qual alguns trava-línguas, jogo de advinhas, desafios lógicos… É só pra quem pode, esse truque. Gostarei um dia. Hei de acreditar. Não serei para sempre vendedor de carros usados. Tipo que perde o sossego e a inocência. E se jamais conseguir passear pelas calçadas sem ser incomodado pelas sombras que espalho, sombras gritantes, fedidas de ódio, pedaços escrotos desta fantasia revendida? Sei que dificilmente ficarei impune. Ainda mais que sei: palavras não enchem barriga mas, torram o saco. - Gostaria que não perturbasse tanto o argumento. Seria tão mais simples se simplesmente escrevesse de acordo com a norma.

Lindas as histórias com finais felizes. Se a complexidade não alcança o feliz, eis que aguardo sobreviva o simples. Ser agradável cria estranheza e arranha. É preciso saber cultivar espinhos. Buracos, lacunas, haverão e fim, sem fundo. Viver é só uma questão de opinião. O verbo ferra, aleija, mata. No dia que não servir mais, deixarei de beijar a mão que me esbofeteia. O inferno está cheio de mim. Fecho os olhos e finjo escuridão. Sei que me entendes. Que nem você, preciso sobreviver. 




sábado, 13 de agosto de 2016

Converxa


Conversation, Ossip Zadkine, 1955



E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade
Vinicius de Moraes




- Ao nascermos não somos isso ou aquilo. Além da genética, da cultura, da psicologia, da educação, a identidade humana é formada, ao longo do tempo, por minúsculas escolhas que, combinadas, nos dão certa vantagem na batalha pela sobrevivência e que nos fazem ser isso ou aquilo… E estamos sempre mudando. 

- Mas enquanto juízes permanecem de cócoras, a exigirem privilégios, o trabalhador, puto da vida com o aumento da sua insignificância, chega em casa, bota os filhos no olho da rua, dá uma surra na mulher, comete suicídio e é exorcizado numa sessão de descarrego num templo das almas mortas. 

- Não confio que a história vai mudar. Não há indício disto. Na verdade, temo que as coisas fiquem cada vez piores.

- Meu caro senhor, o mundo está de olho em nós. Perplexo. Para uma nação que reivindica assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, surpreende a todos essa tentativa de transformar vício em virtude. Qual imagem queremos passar ao mundo? A de um país democrático, com uma Constituição respeitada ou a de uma falida e avacalhada republiqueta de quinta?

- Por mais que planejemos, o futuro será sempre uma incógnita. Todos os nossos esforços são para que ele não nos traga dissabores. Contudo, uma incerteza perdura: e se tudo der errado? E se aquela circunstância que não consideramos, predominar? Meu plano B é permitir que o instinto de sobrevivência, amparado pelo conjunto das minhas habilidades, atue em toda sua potência. E isto, para mim, é viver.

- A lucidez humana precisa intervir para evitar a conformação/deformação do nosso progresso pela minoria dominante.

- O mulato Santa Rosa foi fundador e diretor artístico d'Os Comediantes, grupo que renovou o teatro brasileiro, com a encenação da peça Vestido de Noiva, de autoria do Nelson Rodrigues, em 1943. Além de cenógrafo brilhante, era ilustrador, capista e pintor talentoso. Teve participação expressiva no Teatro Experimental do Negro, onde criou cenários para diversas encenações. Conta o mestre Darcy, em O Povo Brasileiro, que em conversa com um jovem aspirante à carreira diplomática, queixoso das imensas barreiras que dificultavam a ascensão social dos negros, Santa Rosa desabafou: – Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro.

- Agora que a bandidagem deixou cair a máscara; que não têm mais vergonha de serem chamados canalhas; que não há mais como esconder seus mal feitos; que sabem que o julgamento da história os condenará à desonra, que lhes resta? Cometer mais e mais arbitrariedades, todas… Como se não houvesse mais nenhum amanhã…

- Nos livros, o Brasil já existia muito antes da chegada da esquadra do Cabral. Descrita como A Terra Oriental, cortada por quatro rios imensuráveis, rica em ouro e pedras preciosas, de temperatura sempre amena, numa primavera eterna enfim, o Paraíso Terrestre. Os europeus que aqui chegaram trouxeram a profecia do Tempo do Fim, do Último Império, um reino que nunca será destruído.

- Vez por outra, velhos fantasmas me visitam. Diferente de velhos amigos me usam como bode expiatório… 

- Sei que uma bomba explodirá... Foda-se, apostei nisso.

- Posso até compreender que um individuo tenha apetite por merda. O que não posso aceitar é que tal hábito desagradável seja imposto como dieta universal… Comes terra?




sábado, 23 de julho de 2016

Eu Tenho a Cura


O Suicídio de Lucrécia
Albrecht Durer, 1518


Às vezes encontro histórias reais que parecem ficção e me pergunto: como a vida pode imitar tão bem a arte? A narrativa que apresento a seguir, já foi exposta em livro, artigos, possui verbete na Wikipédia e até li que o Steven Spielberg adquiriu os direitos de transpor para o cinema as desventuras do protagonista. O que não é inapropriado. Afinal, precisamos de histórias exemplares, sempre. Ainda mais por conta do avanço, entre nós, de tantas pautas conservadoras, retrógradas, fascistas... Aos leitores, peço que sejam pacientes com o meu modo de recontar. E tenham presente o ditado: quem conta um conto aumenta um ponto. No caso, inverti da linha do tempo e fragmentei a história com o intuito de possibilitar outra perspectiva. Boa leitura.  



Toda verdade será questionada


Olha em volta: o pátio do supermercado está vazio naquela hora da manhã. Manobra, estaciona, desliga o carro, respira fundo... Vira-se, pega no banco traseiro (debaixo de uma manta) uma espingarda de cano serrado… Aponta-a na direção do queixo (gesto que o obriga a inclinar a cabeça pra trás), fecha os olhos e... dispara.

O doutor Milton Diamond, certo de que está pisando em terreno minado, recebe em seu consultório um repórter de famosa revista, determinado a, finalmente, expor os métodos praticados por seu colega, o famoso psicólogo John Money, professor da Johns Hopkins University de Baltimore.

O silêncio que se segue ao disparo indica que o socorro vai demorar.

Diamond tem diante de si, uma pasta recheada: - São todas minhas anotações desde que comecei, a investigar, por conta própria, o tratamento que fora imposto aos gêmeos.

Um policial encontra um bilhete que não deixa dúvida: o jovem suicida chamava-se David e tinha 38 anos de idade.

- Conheci-o em 1997 e desde então, escandalizado, cuidei de questionar a premissa apregoada pelo doutor Money de que nascemos neutros e que nossa identidade masculina ou feminina se dá exclusivamente em função da maneira como somos criados, o que quer dizer que é possível mudar a sexualidade de uma pessoa através de um “redirecionamento”.

Em estado de depressão profunda, a mãe depõe: - Após sua história se tornar pública, perdeu o emprego; sua boa esposa Jane, com quem vivera casado desde os 24 anos e fora um bom padrasto para os seus três filhos, o deixara; seu irmão Bruce, diagnosticado esquizofrênico, cometeu suicídio dois anos atrás… Ingeriu uma overdose de antidepressivos… Carregava uma profunda culpa por ter saído ileso da operação… Foram anos de frustração por ver o irmão sofrer… Meu marido tornou-se alcoólatra… Pobre David, vivera uma vida infeliz e desgraçada graças ao egoísmo de um médico oportunista, cheio de certezas e, sobretudo, cruel.

- Money nasceu numa família de rígidos preceitos protestantes e ficou conhecido como uma espécie de guru da sexualidade que preconizava comportamentos sexuais ousados. Defendia os casamentos “abertos”; estimulava o sexo grupal e bissexual, além de, em momentos mais extremados, tolerar o incesto e a pedofilia. O problema é que sua teoria, embora contasse com algum respaldo na comunidade cientifica, era controversa e os seus experimentos bastante antiéticos, diz o doutor Milton, acendendo o cachimbo. E após uma longa baforada, continua: - David se engajou numa luta em busca do sexo perdido. Fez várias cirurgias para fechar a vagina artificial, recompor a genitália masculina com a implantação de próteses de pênis e testículos, retirar os seios crescidos a base de estrogênos, além de iniciar tratamentos hormonais para masculinizar sua musculatura.

Num determinado dia do ano de 1965, o jovem casal de fazendeiros, Janet e John Reimer, assistem a um programa de televisão no qual doutor Money é entrevistado. Acreditam terem encontrado a solução para o problema do filho mutilado. David começa a servir de cobaia para a experimentação de uma teoria. O médico aconselha a família a educá-lo como se fosse uma menina. Sugere chamá-lo de Brenda. Os pais nunca devem mencionar o assunto daquela sexualidade artificial. Mas não demora muito até que a “menina” comece a reagir ao tratamento; odeia bonecas e brinquedos de meninas; rasga os vestidos constantemente… O medo dos pais de que “Brenda” descubra a verdade, só cresce com o tempo e os problemas começam a ficar cada vez mais sérios. Enquanto cresce, os efeitos hormonais começam a aparecer, e apesar do tratamento de “feminização” com estrogênios, David começa a desenvolver musculatura e estatura masculinas. Isso tudo desencadeia uma infância e adolescência cercada de chacota e crueldade por parte das crianças de sua escola. David jamais superaria aqueles anos. Muito menos aquela experiência traumática. Um dia o doutor Money chama o casal ao seu consultório e lhes diz que existe uma equipe de médicos que trabalham com crianças nascidas com genitália anormal e que acreditam que um pênis não pode ser substituído mas uma vagina funcional poderia ser construída cirurgicamente e que o mais provável era que o filho deles viesse a ter uma bem-sucedida maturação sexual como menina do que como menino. - A mudança de sexo será o melhor para David, afirma Money.

Conte-me mais sobre a experiência.
Durante muito tempo o doutor Money relatou o caso como um experimento de desenvolvimento de gênero feminino bem-sucedido, usando-o para apoiar a mudança de sexo e a reconstrução cirurgia mesmo em casos sem variação de caracteres sexuais. Quando conheci David foi quando me dei conta de que o que o sexólogo realizava era, talvez, o experimento mais cruel da história da Psicologia. Nos relatos de David vemos o quanto ele submeteu os meninos à práticas degradantes. Mostrava fotos sexuais explícitas e teria feito as crianças encenarem posição de coito. David disse-me que era comum o doutor Money obrigá-lo a tirar a roupa e ficar de quatro para que seu irmão simulasse uma penetração por trás.

O casal Reimer notam algo de errado na maneira com que suas crianças de seis meses urinam. Tratam de levá-los à clínica local. Ao serem examinados por um profissional, recebem um diagnóstico trivial – fimose. A recomendação é a que os gêmeos devem ser circuncidados. O médico é enfático ao afirmar que os benefícios ultrapassam os riscos e as vantagens estão na prevenção de infecções urinárias, doenças sexualmente transmissíveis e até câncer de pênis.

Isto era uma prática comum… Tratar fimose com circuncisão? Surpreendeu-se o repórter. O doutor Milton recolocou os óculos, remexeu na papelada e selecionou alguns recortes de jornais com artigos de eminentes profissionais.
É bastante comum naquela região, norte dos Estados Unidos e Canadá. Existe até uma resolução da Academia Americana de Pediatria apoiando a prática.
Continue...
Dois meses depois, os médicos optaram por não operar um deles, cuja fimose havia desaparecido sem qualquer intervenção cirúrgica. Um urologista realizou a operação no pequeno David utilizando o método não-convencional de cauterização – uma agulha de eletro cauterização em vez de um bisturi para retirar o prepúcio do menino. O procedimento destruiu completamente o pênis do menino. Posteriormente o órgão necrosou e, em seguida, se desprendeu do corpo. Como os procedimentos de cirurgia de reconstrução genital ainda eram prematuros, David ficou com poucas opções de ter seu pênis de volta. E aí começou o seu calvário.


sábado, 2 de julho de 2016

Três Fábulas

The Flabed Garden, Conroy Maddox, 1939



I

O menino e a menina eram coleguinhas de escola, numa cidade do interior de um grande e adiantado país. Um dia, entre os dedos da menina, o menino viu uma lapiseira. O menino olhou torto para a menina e elogiou a lapiseira. A menina sorriu e disse que a mãe dela a tinha dado. O menino então perguntou de onde vinha o dinheiro com o qual a mãe dela comprou a lapiseira. A menina disse que tinha vindo do trabalho dela. O menino insistiu: e quem tinha dado trabalho pra mãe dela? A menina, baixou os olhos e disse que o pai do menino havia dado o trabalho, no qual a mãe dela ganhou um dinheiro para afinal comprar a bonita lapiseira. O menino encheu o peito e exigiu a lapiseira para si porque havia sido o dinheiro do seu pai que comprara a lapiseira. A menina chorou e contou tudo pra mãe que, revoltada, pediu justiça. O pai do menino disse que aquela atitude não contribuía para a ordem e a paz na cidade e exigiu que o juiz ordenasse à diretora que expulsasse a menina da escola.



II

A China, certa vez, foi assolada por uma seca braba. O vice-rei encarregado dos negócios religiosos, queimou o estoque de um ano inteiro de incenso, na esperança de comover o coração divino. Mas o deus não estava nem aí para a súplica e as preces. Após muitos orações, ritos e oferendas, não obtendo resultado, o vice-rei entendeu que era inútil qualquer gesto. Ordenou então que o deus fosse informado que se não chovesse até determinado dia, que fosse procurar fiel noutra freguesia. E a chuva não veio. Indignado, o vice-rei proibiu adoração ao deus insensível e mandou destruir seu santuário. Quando as primeiras marretadas sobre as paredes do templo se fizeram ouvir, começou a chover. Primeiro um chuvisco, depois foi aumentando, aumentando, até virar uma tempestade que durou pra mais de mês. Quando estiou e as águas baixaram, cidades, casas, plantações, animais e a maioria da população tinha desaparecido.



III

Lá pras bandas de Pernambuco, um dia, uma cabra muito esperta foi comprada por uma dona, na feira do povoado. A mulher, grávida de gêmeos, trazia os peitos fartos, inchados de tanto leite. Mas temia que para os filhos, viesse a faltar alimento. Tratada com estimação, a cabra passou a zanzar pela casa como se fosse um membro da família. Finalmente, a mulher pariu dois meninos parrudos e comilões. Mas o leite dela não secava, jamais veio a precisar do leite da cabra que, daí em diante, toda noite, vinha devagar pra beira da cama da mulher e, após ela ter amamentado os meninos, aproveitava pra sugar um bocado do líquido generoso. A mulher, na madorna, pensava que era um dos meninos gulosos e não ligava. E a cabra bebia, bebia, bebia até não querer mais. E engordou, engordou, engordou até que o pai dos meninos achou por bem servi-la como prato principal no primeiro aniversário das crianças.