sábado, 27 de agosto de 2016

A Difícil Vida da Narrativa


Drawing or Writing
Vicent van Gogh, 1886



- É o que consegui…
- ???
- Coloque-se no meu lugar. Tente encontrar o interruptor.

Tudo do mesmo. Variam os eventos mas, em essência, permanece a luta. Os adjetivos colorem, vibram, evocam fantasias… Verbos impedem a inércia. Advérbios são especiarias enquanto os substantivos, suscetíveis à vontade, aos humores, aos interesses, buscam nomear um mundo inominável. Mas por onde chegar? Importaria, não andasse com a cabeça no final do mês. E pensar que são necessárias habilidades que não estão ao alcance da mão… Desespero para quê, se é impossível qualquer independência dos pronomes e do emprego. - Continuas no negócio de mágica?

Dê-lhe uma história, senhor. Por amor, por piedade, um capítulo… Nas mãos, uma caderneta encardida e a súplica por uma historinha que seja, carrocinha que fosse... Todos pensam o melhor de si, ainda mais se se está em algum degrau acima da rés do chão. O problema é que jamais acertamos a dose. Gostamos mesmo é de avançar. Sem limite. O normal é viver por fora, sujo, enredado em dúvidas, senões, contas para pagar, colégio das crianças, rotativo no cartão... E normal não distingue as coisas, os modos, as maneiras, as circunstâncias, só pensa na próxima viagem à Disney. Felizmente, tem sempre alguém com moral suficiente para dizer que pau é pau e pedra é pedra. Quer saber? Cansei, vai tomar no c… mesmo que não saiba (ou não queira) reconhecer o alvo.  - Ponha-se no meu lugar e tente encontrar o interruptor.

Às vezes, uma alma saída dalgum livro improvável vem e deita alguns parágrafos, autoajuda, versículos religiosos, provérbios ou até mesmo duas ou três frases de alguma pessoa famosa… Aí, que fazer? Aceita. Pois é certo que a gente só dá e recebe aquilo que tem e alcança. Nessas horas, vai tudo pra gaveta, juntar-se a plágios homéricos, títulos extensos, epígrafes caducas, enredos truncados e finais inverossímeis, afinal o que no fundo importa de verdade é a narrativa deste release que encontrei aqui na minha mesa com um post-it anexado: “pra ontem e urgente”.

Um enorme corredor esse novelo… Quantas opções e eu aqui. Seria inteligente dizer não? Voltar aos próprios rastros? Quem pode me condenar por seguir adiante neste ajuste de contas com as minhas três refeições ao dia. Sim ou não, sim ou não, sim ou não… E eu, lobisomem. Quantas truques, trapaças, desmentidos, versões apócrifas antes de, finalmente, fazer o que não se espera? Claro que conta a experiência. Esta maldita que primeiro nos dá a prova, depois a lição. Concordemos por um instante: logo mais ali adiante cada um irá para o seu lado e é como se nunca houvesse existido aquela conversa de futuro que virou passado em meio a esse medo que nos une, medo que nos une, medo que nos une… Embora, quem sabe, possamos ter amado alguém ou algo mas, que importância tem isso agora quando se perde em meio a este horror fodido de perder tudo que se tem mesmo quando este tudo é um nada maior que tudo. E o que é a perda, se sabemos de antemão que estamos destinados a ela. Perder faz parte do ofício. E viver não se compara em nada com escrever. Viver é só uma circunstância, da qual temos muito pouco controle. Escrever… Sempre podemos editar, salvar, fechar, arquivar e tudo de novo e novamente. Mas aí… aí caio na rua da amargura se não prossigo. Merda, onde anda meu quinhão de reconhecimento.

Dizem dele que juntara o suficiente para uma saga. Conjecturavam se já não era dono dalgum romance, um épico nacional. O que ninguém via era que aquelas histórias mal contadas, diabéticas, frívolas e, mais das vezes, banais mal davam uma sopa de letrinhas ao fim do dia quanto mais… Temperadas com astúcia, humor e pitadas generosas de sexo, lhes digo, jamais competiriam com uma simples bula de remédio quanto mais com efeitos especiais em trinta segundos. E há ainda esta tal de gestão. É isto, enfia na cabeça, escrevemos para quem paga. Putana, putana, putana…! Como isto é fácil. Só não sei se gosto desta altura dos acontecimentos. Mas quer saber, dane-se qualquer veleidade, não posso decepcionar as crianças...

O quarto é o de sempre e a escuridão está em todo lugar. De tal modo que não consigo distinguir cegueira de escuridão. Porque fecho os olhos no escuro? Transfiro para as mãos, para as pontas dos dedos, toda a responsabilidade. Porém, dedos não falam. Quem vê aquele mar que está ali na parede? Olhar é apenas parte do problema. Ouço e cheiro… Cheiro que vem de mim, esse cheiro, um cheiro… Alguém, que não eu, deve lamentar, com certeza. Quanto de liberdade, quanto de independência hei de sacrificar antes que termine essa história? - Irresponsável, hoje... Ando assim.

E no entanto, as palavras me vêm assim, ordenadas, categóricas… Palavrões, clichês... Não deixam dúvidas de tão matemáticas, indagam tão fundo que chegam a ser científicas… Ao final é apenas um jogo, de montar, destes que a gente compra ali, destes pra quem gosta de dar trabalho os miolos, de fazer com que alguém se sinta burro, tal qual alguns trava-línguas, jogo de advinhas, desafios lógicos… É só pra quem pode, esse truque. Gostarei um dia. Hei de acreditar. Não serei para sempre vendedor de carros usados. Tipo que perde o sossego e a inocência. E se jamais conseguir passear pelas calçadas sem ser incomodado pelas sombras que espalho, sombras gritantes, fedidas de ódio, pedaços escrotos desta fantasia revendida? Sei que dificilmente ficarei impune. Ainda mais que sei: palavras não enchem barriga mas, torram o saco. - Gostaria que não perturbasse tanto o argumento. Seria tão mais simples se simplesmente escrevesse de acordo com a norma.

Lindas as histórias com finais felizes. Se a complexidade não alcança o feliz, eis que aguardo sobreviva o simples. Ser agradável cria estranheza e arranha. É preciso saber cultivar espinhos. Buracos, lacunas, haverão e fim, sem fundo. Viver é só uma questão de opinião. O verbo ferra, aleija, mata. No dia que não servir mais, deixarei de beijar a mão que me esbofeteia. O inferno está cheio de mim. Fecho os olhos e finjo escuridão. Sei que me entendes. Que nem você, preciso sobreviver. 




Um comentário:

  1. Todos precisamos sobreviver, verbalizando ou não. Mas, quando se verbaliza, os demônios ficam incomodados. Belo texto!

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