sábado, 20 de maio de 2017

O Circo da Onça Parda


The Wheel of Life, Stanley Pinker, 1974


A Onça sonhava em ser estrela de Hollywood. Mas como morava na Cochinchina, pediu dinheiro emprestado a uma tia, comprou uma lona e montou um circo.
No dia seguinte contratou um Domador de Pulgas, três Girafas Bailarinas, quatro Besouros Palhaços, cinco Araras Malabaristas, seis Jiboias Equilibristas, sete Macacos Trapezistas e saiu pelo mundo fazendo graça. Mas o seu grande trunfo, aquilo que chamava mesmo atenção, era o número final do espetáculo: uma peça teatral, escrita, dirigida e protagonizada por ela. E para alcançar o sucesso, a Onça desenvolvera uma engenhosa estratégia. Em cada localidade que chegava, botava seu bloco na rua à procura do assunto mais comentado. A partir daí, criava um roteiro, trocava os nomes, acrescentava alguns quiproquós, enfiava meia dúzia de piadas e zás… Não tinha erro: casa cheira todo dia.
Tinha mesmo talento pra coisa, a Onça. O que ninguém sabia era que ela se valia de uma arma secreta. Para não depender apenas da equipe, mantinha escondido no seu trailer um sistema de escuta, inventado por ela a partir de apostilas de um curso de eletrônica por correspondência. Esse equipamento lhe permitia ouvir até pensamentos. Era só apontar a antena na direção do alvo para ouvir até as batidas do coração da pessoa, estivesse onde estivesse. Desta forma, a Onça conseguia ouvir tudo que não se costumam falar na presença de estranhos e também aquilo que nem às paredes se tem coragem de confessar. Desse modo, não existia segredo para a Onça e esse era o seu segredo. Até que o circo chegou na Vila do Poxaréu.
Logo após o desfile das atrações pela rua principal do vilarejo, a Onça falou que ia tirar um cochilo, correu pro trailer e apontou o radar na direção das casas. Logo captou uma conversa estranha. Gravou que a Família Bovina se gabava de colocar água no leite e assim aumentar os lucros sem aumentar a produção. Gravou também a Família Abelha comentando que vendiam melaço de cana misturado com suco de milho como se fosse mel puro. E conseguiu escutar que a Família Leão vendia proteção e segurança enquanto chefiava uma quadrilha de Hienas e Fossas assaltantes.
De posse dessas e de outras histórias cabeludas, a Onça preparou sua apresentação da noite, certa de que estouraria a boca do balão. Afinal, todo mundo gosta de histórias escabrosas, pensou esfregando uma mão na outra.
Mas, o tiro saiu pela culatra. Quando o público viu a encenação, não houve quem conseguisse segurar a turba. Uns exigiam saber como foi que a Onça conseguiu acesso àquelas informações e quais eram suas fontes; outros alegavam que tudo não passava de uma campanha de difamação contra famílias eminentes da cidade. O que ninguém podia negar era que, nunca na história de Poxaréu se tinha ouvido falar de tanta corrupção.
O delegado emitiu ordem de condução coercitiva para que a Onça comparecesse ao tribunal, porém quando os guardas vieram prendê-la, encontraram o povaréu pronto pra tocar fogo no circo e prender os artistas, para sempre, num buraco bem fundo, no meio da floresta, sem pão nem água, para que morressem à míngua. Formou-se uma confusão, um empurra-empurra dos diabos. A Onça aproveitou uma brecha, tentou sair de fininho pra se livrar do equipamento secreto mas, alguém a segurou pelo rabo e, após descobrirem fitas e mais fitas de gravações clandestinas no seu camarim, não pensaram duas vezes: levaram-na presa para responder pelos crimes de lesa-pátria e alta traição.
No julgamento, alegou em sua defesa que apenas encenou a verdade. Se a maioria da população fosse mesmo direita, como afirmavam ser, deviam mesmo era prender e condenar os poderosos que vinha enganando todo mundo desde muito tempo.
O júri deliberou e decidiu que, pela culpa de indiscrição, a Onça teria seu equipamento destruído e um chip seria implantado na sua orelha – cada vez que tentasse ouvir uma conversa alheia receberia uma descarga elétrica. O circo pode seguir caminho mas, a trupe foi avisada de que jamais deveriam colocar os pés de novo na cidade, sob pena de morte bastante dolorosa.
Desde aquele dia, o Circo da Onça Parda nunca mais foi o mesmo. Gato escaldado tem medo de água fria, não é assim? Hoje, sobrevivem assim-assim, levam a vidinha, apresentam velhos números, fazem as mesmas piadas, encenam as mesmas peças... O problema é que, sem entusiasmo, o sucesso não bate duas vezes na mesma porta. 
Quanto a Vila do Poxaréu, depois da partida do circo, o povo decidiu processar os corruptos. Mas como eles dominavam e dominam os poderes locais, acabou acontecendo o que todos estão acostumados: deram uma mudada para que tudo continuasse como estava. 


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