sábado, 13 de maio de 2017

O Ciclope


Cyclops, Theodoros Stamos, 1947



Acordou às cinco da manhã disposto a pegar ônibus lotado
Chegar atrasado no serviço
Perder o descanso remunerado
E ainda levar uma tremenda bronca do chefe…

Acordou disposto a ser esquecido numa fila
De atendimento no Sus
E não reclamar da falta de respeito
E do desprezo que o serviço público devota à população
E não se insurgir
E ainda suportar lamúrias dos que cultivam privilégios…

Acordou disposto a não dar mole pro azar
Principalmente não olhar no olho do polícia
Por medo que o homem se ache desafiado prum duelo
E saque sua ponto 40 antes que ele tenha tempo
De exclamar: - O que é isso cidadão?…

Acordou disposto a ser atropelado na avenida principal
Por um automóvel de luxo em alta velocidade
Apenas para ver uma multidão reunida à sua volta
Tirando selfies
Perplexa com o estrago causado em máquina tão cara…

Acordou disposto a devotar seu ódio a todos que o contrariam
Disposto a não estar nem aí com a violência
Sobre a beleza e o mistério das mulheres desejadas
Sobre a invejada coragem dos gays
Sobre a cobiçada sabedoria dos índios
Sobre a galhardia do samba periférico dos pretos pobres
Sobre a astúcia dos meninos famintos que sonham o sonho burguês…

Acordou disposto a ouvir um argumento pobre de direita
Defender manifestações de apoio a torturadores e venais
Aplaudir discurso de corruptos contra a corrupção
Endeusar magistrados que agem como parte
Regozijar-se com os capitães-do-mato que estalam seus chicotes
Sobre os seus ombros esfolados de tanto sustentá-los…

Acordou disposto a salvar-se convertendo-se a uma seita
Apenas pelo prazer de entregar tudo que tem
Para realização e sucesso dos seus guias
Ao tempo em que se compromete
A jamais questionar suas práticas
Jamais desobedecer suas ordens
Jamais faltar com a sua fidelidade
Enquanto aceita de bom grado a infidelidade deles
E a incúria dos seus pares…

Acordou disposto a zombar de todas as diferenças
A perseguir e pisotear crenças que não as suas
A fazer do vício virtude
A mentir para se inventar
A mudar as regras no meio do jogo esquecido do fair play
E por um capricho da natureza fazer-se de vítima
Sempre que for flagrado manipulando fatos, histórias e estatísticas
Em benefício da mão invisível do mercado…

Acordou disposto a jamais proclamar sua dor
A ser solidário apenas consigo mesmo
A esquecer a compaixão
Piedade
A não alimentar qualquer tipo de afeto
Simplesmente desamar e nutrir apenas interesses e posses
E mesmo assim desumano insistir em sobreviver
Fingindo viver no melhor dos mundos...


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