sábado, 22 de abril de 2017

Conto ao Mar


Mitos Profecias do Fim do Mundo
Nina Tokhatman Valetova, 2009



Existem histórias destinadas às chamas.
Federico Hamor Dazonni
Editor de Cultura
Gazeta Minudente, 15-02-1963


Bisonho Pata Molhada era um touro vulgar, burro e ladrão… Contudo: dono, juiz e senhor de dois terços de Beira do Cipó. O terço restante, seguia governado por uma seleta e abençoada mistura de corvos boa praça com camundongos sectários, devotos do queijo voador. Para legitimar tudo isso havia um time de especialistas, fazedores de leis, decretos, normas, portarias, comunicados e memorandos, devidamente gerenciados pela Corte dos Cágados Relutantes, tribunal com plenos poderes para legislar em causa própria em qualquer foro que lhe for do agrado.
Vagando de déu em déu se arratavam os Prejudicados, presa predileta dos pavões-do-matoexímios praticantes da arte de arrancar o couro sem matar o cabra. Pau pra toda obra, era na classe prejudicada, parcela majoritária da população, que se recrutava os melhores braços para as lides diárias. Entregues às labutas de comer o pão que o diabo amassou; fazer das tripas coração; viver entre a cruz e a espada; meter a mão em cumbuca; comer gato por lebre; apanhar touro a unha; chover no molhado; procurar chifres em cabeça de porca; conduzir vacas ao brejo… Em meio a tantas atribuições e atribulações, mal tinham tempo para curtirem o vuco-vuco dos fofuchos pintassilgos que, adoravam distribuir carteiradas a torto e à direita e tinham por profissão, desfilar, dia e noite, a bordo de seus possantes dotados de autoconsciência e amor-próprio.
Em meio a tudo isso, transitavam serelepes e audazes, cobras apostadoras devidamente subvencionadas pela única rede de comunicação e entretenimento autorizada a transmitir, ao vivo, as peripécias da equipe de robôs endiabrados fabricados pela corporação Sofarway, uma empresa ecologicamente correta, a serviço da simpática máquina boazinha e à acumulação rápida e indiscreta de capitais. Sustentavam tal sistema, o conjunto dos lagartos zeladores ab ovo das sagradas estatísticas, exímios calculadores de mágicas margens de erro.
Mas nem tudo é serviço. Para alegria geral, concursos anuais eram realizados entre as tanajuras para escolha dos melhores glúteos, em benefício exclusivo do aprimoramento da raça. Este inocente e cordial passatempo era motivo de júbilo, verdadeira febre esportiva, muito apreciada e incentivada, sem furdunço, pelos altos e baixos escalões. Embora causasse desconforto na minoria intrometida de meia dúzia de gansos, temerosos de deformações endógenas que, empertigadamente, viviam solicitando, sem sucesso, maior controle do evento por parte das autoridades sanitárias.
Para contornar qualquer possível impasse, o comitê responsável pela organização de festas instituiu os Jogos Fodásticos – conclave realizado de quatro em quatro anos, numa localidade escolhida para receber a Batata Quente (símbolo maior da nossa tradição). Este evento era a fonte mais rentável de dividendos para a economia beiracipóense. Porém, dado o caráter volátil da dinheirama arrecadada, era praxe vê-la aparecer em contas secretas de paraísos fiscais, sob pretexto de preventivas medidas para se evitar qualquer tentativa de moratória dos juros devidos, desde que o mundo é mundo, ao exclusivo Clube das Aves de Rapina que Voam Alto e Enxergam Longe. Verdade que alguns nativos lamentavam o costumeiro sequestro de 95% da renda individual sob a alegação de que era preciso contribuir para a manutenção do equilíbrio geopolítico global ora em uso. Mas ficava-se apenas no lamento e, por não convir dar trela pras mazelas, desprezava-se, de pronto, tais conjecturas e suas incômodas consequências.
E se nem tudo é serviço o mesmo se aplica às lágrimas. Para alcançar o riso largo, bastava olhar para o colossal rebanho de ratazanas transgênicas, capazes de produzirem uma qualidade de leite com alto teor de testosterona. Sucesso absoluto de vendas, tal bebida láctea era recomendada aos varões viris da comunidade, para o bem de suas desassombradas conformidades. Além disso, havia a coqueluche nacional, o biscoito Tetas da Mamãe, guloseira sem qualquer valor nutritivo, mas orgulho pátrio especialmente por derreter na boca e vir com prazo de validade indeterminado.
Mas antes que eu me perca, devo correr ao ponto. Era uma tarde desavisada, tarde que ninguém daria um tostão furado por ela, tarde sem quaisquer atrativos senão os costumeiros, ruidosos e agressivos protestos exigindo-se tolerância para com nossa intolerância, Pata Molhada teve um surto de bobice. Doutos e ilibados cérebros não chegaram a um acordo se firula ou faniquito dos brabos. Na dúvida, recomendaram chá de losna, sem açúcar, três vezes ao dia. Contudo, em vez das melhoras, Bisonho manifestou desejo de criar o mundo do nada e em sete dias entregar a obra pronta. Enlouquecido com a quantidade de detalhes a considerar, lá pelas seis e meia teve um arrebatamento. Uma luz canônica o alçou até o celeste domínio do queijo santo. Após voo rasante sobre a névoa do passado, compreendeu que já tinha sido tudo, menos honesto e decidiu, ali mesmo, na esfera metafísica, começar nova vida. E qual não foi a sua surpresa ao verificar que tinha diante de si um vetusto templo antigo. Após passar por um treinamento intensivo e bastante puxado com os monges locais, finalmente, ao cabo de algumas horas, recebeu o diploma de sujeito bom e virtuoso.
Ao retornar à Beira do Cipó, achando-se renovado e pronto para iniciar jornada épica e porreta, Pata Molhada, crendo-se agora honesto, não contava que, ao chegar em casa, sua família não o reconheceria, seus amigos o detratariam, sua mulher lhe rejeitaria e todos riram dos seus esforços para convencê-los do contrário… Até os bichos de criação cagaram e andaram à sua suposta mudança. Muito puto dessa vida, indignado, possuído por uma ira divina, deu-se por satisfeito com aquela presepada. Ao acordar do pesadelo, decidiu esquartejar, em praça pública, o autor dessa história.
Enquanto caminhava para o patíbulo, pude ouvir o decreto de celebração do fim do ano seguido por intermináveis fogos de artifícios que iluminaram o céu dos brigadeiros e urubus. E, na contagem regressiva para a chegada do novo ano, antes que a faca do açougueiro-mor encontrasse as minhas partes, eis que a agência de trafego aéreo informou, em boletim extraordinário, que um meteoro gigante e com intenções cataclísmicas, acabara de entrar em rota de colisão com a Terra. Imediatamente, foram confirmados os 99,99% de chance daquele troço, tresloucada substância sólida, atingir em cheio Beira do Cipó. Uma onda de pânico tentou chegar à praia mas, num golpe de mestre, foi contida pela intervenção do pessoal do Show Dominical de Todo Domingo que, abençoados pelos tubarões da mídia, convocaram os pensadores de plantão. Em parceria com diretores de marketing, não pensaram duas vezes em encomendar, às melhores agências de propaganda, duas ou três cartas na manga, para garantia de sobrevida ao patrão.
Na confusão, consegui escapar com a ajuda de um conhecido meu, fabricante de psicografias poéticas, ditados por palhaços obsessores que, enxergou na ocasião, uma chance de colocar em prática um infalível plano conspirativo de malfadamento das instituições, cansado que estava da posição decorativa que ocupava no jogo político literário e ávido por colocar um ponto final no predomínio cultural da turma dos comedores de pequerruchos. Enquanto buscava construir algum tipo de rede de proteção, mal tive tempo de redigir essas malfadadas linhas e, enquanto o meteoro caía, senti abrir-se as portas do beleléu. Embasbacado, mal tive tempo de jogar esse conto ao mar.

 

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