sábado, 3 de junho de 2017

A Parede

The Wall, Abbas Kiorostami, 2010

Quando acordou, espichou o olho para o lado e desolado, constatou que, mais uma vez, não teria com quem brigar: a mulher não estava, partira em mais das suas viagens de turismo cultural.
A caminho da piscina, deu um pescoção na empregada e encontrou alívio ao exigir que ela engolisse o choro e parasse de praguejar.
Durante o café, diante da tela de plasma, o âncora de dentes alvíssimos levou-o a chafurdar em assassinatos, assaltos, perseguições policiais, rebeliões em presídio, acidentes a dar com pau, brigas domésticas etc., etc., etc… E para coroar a mundiça, vidrou uma mesa redonda com especialistas que discutiam leis mais severas, pena de morte e a decretação do juízo final.
– Vê só, Mercedes, assim funciona a coisa: cria-se medo pra que compremos segurança. Adoro esse sistema.
Saiu cantarolando em direção ao arsenal. Primeiro vestiu o hauberk, um lorigão ou simplesmente cota de malha (macacão de aço apto a resistir a qualquer petardo). Por cima, uma camisa de cambraia de linho egípcio, na cor neve. Em seguida, escolheu um retilíneo terno pós-flandriano cinza capital e gravata sedosa Sancler du Mont na cor azul ianque – um luxo. Para coroar tamanha elegância, colocou na cintura um eficiente Colt 45; na axila, a amada Glock – invisível a detectores de metal; no bolso interno do paletó, uma PPK – pra se sentir James Bond; e, na virilha, a Armatix iP1, cuja trava eletrônica permite apenas ao dono empunhar e disparar. Finalmente, checou a Uzi na valise e conferiu a trava de segurança do imprescindível rifle de assalto F2000.
Ao dirigir-se à garagem, socou as costelas da lacaia que, dramaticamente, deixou-se cair, feito saco velho de batatas, no piso de marmóre de Estremoz da cozinha decorada com o melhor que o mogno amazônico e o aço alemão podem oferecer a uma dona de casa.
Fazendo juz à sua reputação de macho alfa, solicitou, energicamente, que a doméstica parasse com aquele piti e desse um brilho adicional no seu Testoni confeccionado com os melhores couros de jacarés, forrado com pele de cabra marroquina, encimado por uma fivela de ouro 24 quilates.
O Land Rover blindado, motor V-8, 503 cavalos de potência já o aguardava urrando tal qual um grizzly no cio. O sistema de defesa e ataque (devidamente importado de Israel), imediatamente foi colocado em estado de alerta, pronto para ser acionado assim que necessário.
Ao parar no semáforo, o segurança eletrônico avisou da presença de um indesejável e famélico malabarista. Ato contínuo, a mira foi travada e sem que houvesse contagem regressiva, bum… Mais um zé-ninguém, devida e eficazmente, pulverizado para todo o sempre, amém.
Após ouvir o adagio da New World Symphony de Dvorak e, alcançada a paz, colocou pra cantar seus Pirelli 235/40R19 Pzero XL NeroGT 96Y compradas no black de um mecânico dissidente da Fórmula 1. Porém, logo teve que frear bruscamente: uma manifestação monstro de prejudicados barrou-lhe o caminho. Sem titubear, ligou o automático, passou por cima de uma centena de pessoas e continuaria seu trajeto não fosse um policial, montado numa 950 cilindradas o alcançar.
– Sim, senhor… Que bagunça, hein?
– Presumo que saiba com quem está falando?
– Saber eu sei. Mas tudo tem lá seu limite: não se pode simplesmente sair por aí espalhando merda na nossa cidade linda e limpa… Sinto muito mas, tenho que multá-lo…
– Sabemos que existe um remédio para isso, pois não?
– Depende…
– Alguma sugestão?
– Se me permite… Por acaso, tenho um primo… Um minutinho… Nabuco, sou eu… Olha só, um conhecido meu, gente fina, fez uma cagada homérica na Juvenal Peixoto… Dá pra mandar uma equipe?… Beleza… Você é o cara… Outro… Um cheiro no sovaco…
Deixou um cartão com o guarda e seguiu sem perceber que a felicidade tem prazo de validade. Ao sair do elevador no 45º andar da sede da empresa, foi recepcionado, aos gritos, pelo presidente do maior conglomerado da paróquia no ramo das coisas que todo mundo deseja, ou desejará um dia, caso continue a aparecer na mídia e consiga manter patrocínio de todos os eventos esportivos capazes de juntar multidões. O pobre homem tinha os fiscais do governo em seus calcanhares e temia que aquelas canetas caprichosas e desprovidas de civilidade pudesse macular o honrado nome da empresa… Onde estava a lista dos políticos alugados? Quem são os juízes e procuradores a soldo? E mais: queria, agora mesmo em sua mesa, um arrojado plano de marketing que fulminasse a concorrência e otimizasse os lucros. Foi quando ele solicitou cinco minutos, para chutar alguns traseiros e, ato contínuo, trouxe a solução na ponta da língua: vincular todos os produtos, fossem quais fossem, à lógica infantil…
– Nos dias de hoje, explicou, por falta de espaço e hiperatividade das crianças, os pais fazem de tudo para mantê-las quietas… O negócio é oferecer tudo como se fosse doce ou brinquedo.
– Genial, aplaudiu o chefe. - Agora vamos até a varanda do 2º andar, mijar na cabeça de alguns transeuntes.
– Adoraria mas, infelizmente, tenho ainda que apalpar umas buzanfas...
Até a hora do almoço, ainda encontrou tempo para sussurrar obscenidades no ouvido de duas secretárias e, na saída, sem perder o bom humor, passou uma rasteira no porteiro e saiu assobiando Singin' in the Rain, certo de que vivia no melhor dos mundos.
No majestoso clube (edifício neocolonial com fachada neoclássica decorada com imensos painéis concretistas acima de qualquer suspeita, devidamente planejado para disfarçar as fissuras oblíquas que lhe atacavam os pilares de baixo para cima) alojou-se, na sua poltrona predileta e logo uma generosa dose do velho Macallan (single malt de 64 anos) achegou-se à sua mão esquerda, enquanto seus olhos ávidos de entertenimento, repousaram na tela de 75 polegadas exatamente no instante em que o “aquele canal” dava inicio ao leilão do dia: 72 virgens, 450 kg de coca, 200 fuzis metralhadora com 10000 cartuchos cada um, 30 misseis terra-ar, 25 terra-terra e duas belezuras de 100 megatons, cada uma, novinhas em folha.
Após saborear testículos de antílope indianos marinados no leite de onça-parda e arrematar algumas coisinhas, bateu soninho. No caminho de casa, esforçando-se para não cochilar, abateu, sem misericórdia, cinco travestis e uma puta balzaca.
Na segurança do lar, encontrou a família reunida.
– Quanto tempo ainda pra você chegar à presidência? Não aguento mais a Liliexbeth agindo como se fosse madre superiora. Ela é mulher muito cruel, sabia?
– E as minhas gracinhas… Não vão apresentar os convidados?
– Pai, este é o meu marido. Estamos de partida para o Paraguai, disse o pimpolho.
– E esta é a minha noiva, falou a caçula. Mas ainda não é nada definitivo.
– Mas assim não terei posteridade!
Uma sonora gargalhada preencheu o espaço. Comportamento incomum naquele ambiente no melhor estilo “ostenta que te fa bene”.
– O que há contigo, Jêninho? Sempre vivemos no agora, sentenciou a esposa.
Diante da janela blindada com vidro SR 5096, soube que deveria pensar um pouco mais naquelas palavras, porém seus olhos não conseguiam desgrudar do impávido colosso que cercava sua propriedade.
– Alguma alteração?
– Nenhuma, doutor. Continua fitando a parede.
– Vamos introduzir, então, a Clozapina de 100.


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