sábado, 17 de junho de 2017

Piéta

Piéta, Bernard Buffet, 1948



No ano de 2050, os padres passaram a controlar todo o mercado negro dos costumes. Sexo, drogas, armas… Todos os vícios e pecados finalmente encontraram a legalidade através da Igreja. “Foi a maneira encontrada para conter a bestialidade humana”, disse o porta-voz da Santa Cúpula, em entrevista recente.
Ao assumir a tutela dessa economia, a Igreja extinguiu a violência entre os indivíduos e garantiu para si o monopólio da crueldade. Com isso, o assassinato teve sua prática ritualizada e ninguém mais precisaria desafiar a lei para conseguir um baseado, uma carreira de cocaína ou uma AK47: bastava passar no confessionário mais próximo e fazer sua solicitação. O clérigo de plantão lhe aviaria uma receita devidamente autenticada. Sexo gostoso? Apresente-se num dos muitos mosteiros, pague a taxa regular, submeta-se a alguns exames médicos e a um intensivo de preliminares que uma noviça ou noviço se colocará à sua disposição. Taras? Esse serviço especial, cheio de novidades, possui um extenso cardápio que contempla desde canibalismo até zoofilia. Quem passar dos limites é castigado e pronto.
Mas, o que significa agora passar dos limites? Se o indivíduo pode tudo (desde que pague é claro) e conta com uma organização milenar capaz de satisfazer todo e qualquer desejo, o que configura uma transgressão? Aqui entra o arbítrio do controlador. O eclesiástico ao abençoar sua perversão, o faz conclamando-o a se manter dentro de certos parâmetros. Isto é, você pode ser ateu, iconoclasta, professar outras fés ou até mesmo adorar o demo, porém, nunca, jamais, em hipótese alguma, menospreze, deprecie, macule, zombe ou destrua símbolos religiosos. De tal infração não cabe recurso: é morte certa, longa e dolorosamente, como só o Igreja se autoriza fazer.
...

Às 16:18 do junho 17 de 2052, Maciel, após semanas procurando uma maneira de chegar junto, finalmente encontrou uma brecha para aproximar-se da moça. Nenhum conhecido por perto… Um carro lá no fim da rua, todas as janelas fechadas naquele entardecer calorento… Se até as câmeras pareciam focadas em outros ângulos, ele, não sem alguma timidez, finalmente, enxergou a possibilidade de afogar o ganso.
– Posso ver a licença?
Era importante. A prova de que a prestadora de serviço havia sido aprovada pela Santa Vigilância Sanitária para exercer a atividade autonomamente. A moça abriu a bolsa e quase esfregou na cara dele a carteirinha devidamente autenticada pela Diocese. Após as consultas de praxe sobre preço, local e duração, pigarreou e quis saber se havia espaço para algo, digamos, diferenciado.
- Depende, arregalou a moça o seu olho esquerdo. - Se estás pensando em estacionar seu carrinho na garagem dos fundos pode tirar seu periquito do poleiro. Sou uma profissional juramentada, transo apenas para fins de procriação. Essa é a minha obra.
“Tem mérito”. Não era nenhuma porra louca, se via. Sentiu que faria um sexo seguro e produtivo. Mas não era tudo. Havia aquilo… o danado do algo mais. Como explicar à moça?
- Faço um boquete que é uma beleza. Mas, aviso que não engulo, recolho para depósito no banco de sêmen da paróquia… Em troca você tem direito a um cupom de desconto.
- Claro.
- Então… Vamos fazer neném?
- Só uma coisinha…
- O sexímetro está ligado…
- Não quero propriamente algo convencional…
- Não tenho nenhum problema em lhe bater uma com os pés, com os peitos ou com a língua… Se desejar, deixo gozar no meu orifício auditivo...
"Pobrezinha, tão contraditória", pensou buscando coragem para se expressar. - Tudo bem... Quero que você me bata uma, aconchegada no meu colo, enquanto chupa meu peitinho e eu enfio o dedo no seu… Você sabe.
- Pera aí, tinha esquecido que esse negócio de masturbação tem lá suas especificidades... Preciso consultar o vigário online…
- Não. Esquece…
E desapareceu. Pelo resto da vida continuou seu sexo seguro consigo mesmo, visualizando a Piéta e suando bicas de pavor de ser flagrado pela vigilância.




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