sábado, 30 de dezembro de 2017

Eram os deuses nanos-filósofos-cirurgiões?

Never, never land, Leonard McGurr, 2003



Diferentemente de outras anomalias que costumam preferir o espaço sideral e/ou privado, essa se deu, em público, numa das avenidas mais movimentadas da capital. A boa notícia é que não ocorreram maiores consequências que alguns para-lamas amassados, tropeções, encontrões e esbarrões entre transeuntes. Infortúnio mesmo, sofreu um ambulante: sua banca de bijuterias encontrava-se nas mesmas coordenadas onde a rachadura espaço-temporal aconteceu, num corte que ultrapassou os limites do asfalto. Em meio ao alvoroço, ninguém percebeu um filete gelatinoso esgueirar-se da fenda e escorrer direto para boca de lobo mais próxima. Noticiários noturnos foram unânimes em redundâncias: os mesmos especialistas, as mesmas platitudes. Enfadado, deixei-os falando sozinhos e fui abrir um envelope pardo, que me foi deixado à porta, sem qualquer sobrescrito. Como costumo enviar originais, cogitei tratar-se de resposta de algum editor aos meus insistentes pedidos de consideração mas, para minha renovada decepção, não havia missiva alguma, apenas um pendrive.
Deseja que tudo seja transcrito de modo que você entenda? Essa foi a mensagem logo que dei o enter. Sim, claro… Óbvio. Mas não era óbvio que surgisse uma animação (bem elaborada, por sinal). O pequeno conto era sobre um sujeito que fugia da dimensão n e vinha atazanar a nossa. Causou-me espécie o nome do personagem. Se fosse tentar explicar diria tratar-se de um extenso vocábulo formado de consoantes entrelaçadas por onomatopeias explosivas. Impronunciável. Bagunça pra mais de metro. Pensei no meu vizinho sabichão. Talvez fosse ele a brincar com minhas idiossincrasias... Mas logo mudei o foco e intuí que aquilo poderia ser uma espécie de vírus. Alguma má consciência estava tentando tornar-se senhor do meu sistema nervoso central e essa suspeição me fez coçar mais ainda minhas perebas.
Todos os canais continuavam a repetir os mesmos informes sobre o estranho fenômeno, ocorrido no centro da cidade, em pleno horário de pico. A essa altura eu já estava bastante arrependido por ter autorizado o download, pois de nada adiantava passar e repassar um antivírus free, o pobre não dava conta do recado. A animação restava indelével no meu computador. Quando senti chamas consumirem meu estomago, lembrei da Caixa de Pandora, ajeitei a bunda na cadeira, respirei fundo e… Apertei o play. Decidi ver até onde aquilo me levaria. E tal qual na realidade, tudo começou com um rasgo no tecido espacial e uma criatura, com poderes extraordinários, comparece disposto a barbarizar. Conflito em estado bruto.
Desse ponto em diante, tudo pareceu correr simultaneamente: animação e realidade se abraçaram num ponto quântico qualquer, tornando difícil dizer quem era a bola e quem era o pé. Tanto lá quanto cá, a gelatina que ninguém viu escorrer direto para a boca de lobo mais próxima, misturou-se às porcarias que todo bom e velho esgoto nutre e cultiva e logo estava plenamente adaptada ao nosso ambiente, tendo nesse meio tempo, escrutinado o mais fundo da alma humana e selecionado, para seu uso privado, o nosso mais pavoroso medo. Confortavelmente integrado ao papel, ele enfiou-se num terno de grife, botou alguns diplomas na parede, ensopou o cabelo de gel, amaciou a voz e largou-se a promover, pra quem quisesse ouvir, preleções performáticas sobre a-arte-de-empreender-qualquer-coisa-sem-jamais-ter-empreendido-coisa-alguma. Ao término das palestras, fogos de artifícios ululavam dentro das nossas cabeças. Tudo muito fácil, sem exigir prática ou qualquer habilidade. Mas como dizia minha mãe, no começo tudo são rosas. E aí, quando o pessoal se deu conta, o diabo não era mais como sempre fora pintado. Conquistado corações e mentes de deus e todo mundo, chegou a hora da fatura. E não foi difícil perceber onde tínhamos nos metido. Estávamos totalmente imersos num mundo que nos excluía. Um mundo cujo único propósito era a manutenção, a ferro e a fogo, de uma senhora maldade. Ele tinha usado contra nós nossos próprios demônios e, após nos seduzir, tal qual Fausto, agora nos consumia, delicada e civilizadamente.
A animação deu um salto no tempo, distanciou-se da realidade o suficiente para que eu compreendesse umas coisinhas. Convencido do diagnóstico, demorei para aceitar o tratamento. Embora tenha sido alertado quanto a possibilidade da solução deus ex-machina, posso lhes garantir que o final não se baseou no que assisti pelo computador, mas naquilo que senti com esses nervos que um dia a terra há de comer.
Enquanto ele traçava melífluos arabescos no especto sonoro, deitando falação sobre os efeitos deletérios da separação igreja-estado e acólitos ministravam oficinas da célebre terapia do banho-frio para educar tentações e rebeldias, as aranhas apareceram. Metálicas e sibilantes, voaram de lá pra cá e de cá pra lá, como cães farejadores. De repente, cintilaram faíscas dos seus múltiplos olhos, deram meia volta e, céleres, reuniram-se em torno d’ele, envolvendo-o numa teia líquida esférica e perfeita. Brados de protestos se elevaram aos céus mas não impediram que um cilindro prateado, interminavelmente comprido, de mais ou menos uns cinco centímetros de diâmetro, descesse sobre o casulo transparente e, de uma única aspirada, sugá-lo inteirinho sabe-se--pra-onde-pra-fazer-o-quê, no mesmo instante em que descobri, tatuada em mim, a pergunta crucial: eram os deuses nanos-filósofos-cirurgiões?
No dia seguinte, ao receber o salário semanal de um contrato intermitente que mantenho como deliveryman numa boutique de coxinhas, consegui pagar a primeira prestação de um antivírus que cumpriu com o papel. A animação foi finalmente deletada da minha máquina mas, fiquei com a sensação de que o ontem jamais existiu. Parece que o ontem sumiu do mapa. Em vista disso, decidi que o melhor era dar sequência à corrente. Conseguiu de um parça meu - guerrilheiro urbano - que trabalha no almoxarifado de uma multinacional, o fornecimento de quantos envelopes pardos eu precise para a empreitada de fazer chegar a cada casa dessa cidade, um pendrive de presente. Espero que, quanto mais gente interagir com a mensagem, mais próximo ficarei da verdade: preciso saber se ontem, com toda aquela teia estranha de acontecimentos, pode constar, como fiel e verídico, no meu banco de memória. 


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