sábado, 10 de novembro de 2018

O gosto da vingança


Ilustração de KPG Ivary



Nunca dá para prever quando Carlos Rigot irá aparecer. Mas que trará consigo um comentário, uma história, um dilema… às vezes uma pegadinha, isso posso ter certeza. E eu, que nunca o aguardo, sou sempre surpreendido com suas revelações.
Rigot é aquele mestre que não é… Dele, penso não possuir qualquer intenção que não seja me surpreender. Assim, cada encontro com essa figura é uma experiência a ser vivida com e em todos os sentidos.
Não foi diferente, naquele terça, 15:30 de uma tarde nublada, na esquina, um quarteirão antes da minha casa…
Senti uma mão segurar meu braço direito e, envolvido por uma enxurrada de palavras, fui obrigado a realizar um esforço para começar a registrar aquele relato que, ao reproduzí-lo aqui o faço a partir do momento em que consegui isolá-lo do restante do mundo e passei a unicamente escutá-lo.
Após me servir, olhei para a mesa costumeira, ao lado do refrigerador: estava vaga.
Melhor lugar do restaurante, longe dos aparelhos de televisão que, naquela hora, todos os dias, estavam sintonizados no canal de sempre.
Verdade que ninguém prestava atenção, preocupados em devorar a comida e voltar logo pro trabalho.
Mesmo sabendo disto, o dono do boteco, não sei por qual razão, insiste em manter tal inutilidade, num mundo repleto de celulares. Talvez ele saiba que pode fazer diferente mas, não está disposto a pagar o preço… prefere agarrar-se ao fácil, seguro e rotineiro – é bem mais barato.
Após me servir, olhei e vi que a mesa costumeira estava vaga, corri para o meu canto. Ali, pelo menos, ficava a salvo do som e, principalmente, das imagens que saíam daquelas duas máquina de fazer doidos.
Porém, naquele meio dia, à minha frente, na mesa adiante, alguém falava ao celular num tom acima do tolerável.
Baixei a cabeça, comecei a comer tentando esquecer daquela demonstração de incivilidade. Mas o som da voz daquele estranho começou a penetrar no meu cérebro e aquilo me irritou.
Fiz sinal ao vizinho... apontei o dedo indicador para o ouvido direito.
O sujeito nem aí e até aumentou a voz mencionando qualquer coisa relativa a polícia federal… foi o que ouvi.
Olhei fixo para o inconveniente e insisti: amigo, não preciso ouvir a sua conversa.
Quê? Zangou-se o outro. Então pare de escutar.
Não desejo ser convidado para tua festa...
Otário, foi a resposta dele. Levantou-se e foi na direção do caixa.
Abaixei a vista e encarei a salada - estava gostosa… saudável, fresquinha… e ao levar um bocado de cenoura à boca, ouvi ao pé do ouvido, novamente a voz desagrádavel do desconhecido, replicando a palavra otário.
Não vacilei: acertei a jugular do indivíduo com o garfo e, ato contínuo, apliquei-lhe um chute bem colocado nas caixas dos peitos. O bicho despencou dois degraus e acabou estatelado na calçada enquanto me ouvia gritar: está bem assim, cidadão de bem, está bem assim?
- Você fez isso, mesmo?
- Não. Claro que não. Se eu tivesse feito, sentiria o gosto da vingança apenas uma única vez. No entanto, o fato de não ter cedido ao impulso me permite elaborar, a cada lembrança do fato, uma nova forma de acabar com aquela coisinha ordinária fantasiado de pequeno burguês bem sucedido... e as possibilidades são infinitas.
Convidei-o para tomar um café. Ele disse que não, largou do meu braço e perdeu-se em meio aos passantes.



Um comentário:

  1. Excelente conto na minha leitura eu faria ao invés do chute na caixa dos peitos, um chute nos países baixo mesmo....

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