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sábado, 13 de fevereiro de 2016

Mãos Limpas

Blood On Our Hands, Joan Snyder, 2003



Somos o viajante e a viagem,
a felicidade e o desespero,
o problema e a solução.
Humberto Mariotti, médico


A luz da vela tremeluzia em sintonia com os pensamentos do jovem assistente da Primeira Clínica Obstetrícia do Hospital Geral de Viena, às voltas com dúvidas, contradições, questões de princípio, relatórios e regulamentos. No ano anterior, não conseguindo a vaga de professor numa notável instituição que desenvolvia pesquisas médicas, acabou sendo aceito numa das duas unidades da prestigiosa maternidade. Na primeira ala, as parturientes eram atendidas por médicos e na segunda por parteiras. Confrontado com uma altíssima taxa de mortalidade entre as parturientes da primeira unidade, observou que a proporção superava, em média, seis vezes o da segunda. Claro havia uma relação de causa e efeito entre a falta de asseio dos médicos e enfermeiras e aquele número assombroso de óbitos. Mas que nada. Talvez as mulheres morram por conta do pudor. Quem sabe algum estudante tenha exagerado no toque. Não, o problema era que a direção do hospital não reconhecia os estudos de Ignác Semmelweis como válidos. Agravado pelo fato dele não ser nativo da Áustria, mas um imigrante húngaro. Mesmo sabotado, derrubou a tese de que a questão das infecções estava relacionada a condições atmosféricas telúricas. Com ajuda do seu mentor, professor Kolletschka, da Medicina Legal, afixou no quadro de avisos que todo estudante ou médico seria obrigado, antes de entrar nas salas da clínica obstetrícia, a lavar as mãos, com uma solução de ácido clórico, na bacia colocada na entrada. A despeito de ter gerado resultados benéficos – a taxa de mortalidade caiu significativamente após estes primeiros cuidados, a maioria dos médicos achou aquilo uma quebra de hierarquia. Médicos devem assemelhar-se a anjos, impecáveis como nuvens num dia de verão, repetia pelos corredores. Mas se não aceitassem lavar as mãos, quem os obrigaria a trocar o avental, típico de açougueiro, quando saiam das suas aulas de anatomia, de suas concorridas autópsias e dissecações direto para a sala de parto? Não desistiria, era preciso criar barreiras sanitárias. Onde existe sujeira existe dinheiro pode ser aplicado às fábricas jamais a um hospital.

Após a morte do amigo, aconteceu o fim do mundo, em pleno 1847. De onde vinha a autoridade pretendida pelo jovem Semmelweis, gritaram os luminares. Quer dizer que agora qualquer um tem algo importante para dizer? Como se atrevia? Insurgir-se, propor mudança de métodos – práticas exaustivamente comprovadas por anos de experiência e observação? Que se recolhesse à sua insignificância ou medidas drásticas seriam tomadas em nome da preservação da ordem, dos costumes e a hierarquia. E que todas as comunicações, todos seus estudos, planos, análises e solicitações fossem arquivadas e esquecidas. Assepsia, pois sim. Era do conhecimento do mundo científico que não se deve lavar demais a pele. O efeito da fricção constante sobre a epiderme pode acarretar rompimento dos vasos sanguíneos e as consequentes lesões podem ocasionar a morte. Tinham dito.

Insiste, é demitido. Retorna à Hungria. Escreve, fala, pede, implora. Chega até a abordar casais na rua, em lágrimas, para pedir-lhes que exijam que os médicos e enfermeiras lavem as mãos na hora do parto. Lamenta o quanto é difícil alcançar o bom senso, que tendemos a seguir trabalhando no sentido da nossa própria destruição, que Tânatos atua justamente naquilo que mais nos orgulhamos: nossa racionalidade, nossa intelectualidade, em tudo aquilo que se opõe ao que temos de mais natural e criativo. Sozinho sem ter com quem dialogar, perde-se no tremeluzir na luz do bico de gás tal qual uma mariposa. Resignado, deixa-se mergulhar na espiral sem volta e, numa manhã fria de novembro de 1865, transforma-se em nuvem.  


sábado, 6 de fevereiro de 2016

Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo


Crianças, Dilek Demirci, 2009



Existe criança judia?
E criança católica, protestante, muçulmana…?
Criança é criança e basta.



O dia está claro. O sargento da polícia anda imerso em dúvidas porém, quando chega diante do número… na rua… em Bolonha, Estado Papal, disciplinadamente bate três vezes. Tempos bicudos, aqueles. A Igreja Católica sofre alguns abalos, muitas ameças. Até o Imperador, quem diria! O Cardeal fora enfático: é hora de dar o troco. O que farão com o menino? O policial controla-se e aceita que não importa, sua missão é pegar a criança e entregá-la ao Catecúmeno.

A empregada abre a porta. Os Mortara aguardam curiosos na sala de estar. A pressão da donzela sobe às alturas. Nunca tivera aperto no peito semelhante a este em toda a sua ignorante vida. Retorna cabisbaixa e avisa que há na porta dois homens que exigem a presença deles. Desembesta para a cozinha derramada em lágrimas.

Os investigadores ali estão com ordens expressas para levar um dos sete filhos do casal. A mãe adianta-se trêmula. Em nome do que é mais sagrado, como podem cometer tamanha insanidade? O oficial mais graduado assegura que tudo lhes será explicado no justo e devido tempo. Que procurem o padre tal no prédio da Santa Inquisição e é só. – A criança, por favor. E diante de eventual gesto de revolta avisa que não desejam usar da força bruta. Ah, que não preparassem nenhuma mala com pertences, o menino sairá dali apenas com a roupa do corpo, tudo o mais lhe será acrescentado no seminário.

Naquela mesma tarde, uma quarta-feira de tempo bom, pai e mãe vêm-se diante de um clérigo que, impassível lhes murmura explicações. Deus escreve certo por linhas tortas. A criança fora batizado secretamente pela empregada. - Sem sombra de qualquer dúvida ou pretexto para apelação, ele é católico e, nossas por leis, diante do Altíssimo, não poderá ser criado ou educado por judeus. O que está feito, feito está. Resignem-se e vivam em paz. Glória a Deus. Faz um longa pausa, parece pronunciar fervorosos trechos de alguma oração forte. Lentamente, levanta a cabeça, abre os olhos e diz que existe uma solução. Qual, querem saber. Conversão da família ao cristianismo. Nunca foi a resposta impronunciada mas subtendida quando dão as costas e saem dispostos a mover mundos e fundos para anularem aquela infâmia.

Meu medo é que ele fosse para o inferno. Disse a empregada, soterrada de remorsos e impropérios. Os patrões não estavam em casa e o pobrezinho ficou doente de repente. Pensei que ele fosse morrer, entrei em desespero e não vi outro jeito senão salpicar algumas gotas de água daquele balde na cabeça dele e dizer as palavras mágicas… A culpa é da minha prima, linguaruda. Tudo para agradar o confessor. Deus me perdoe mas tudo que eu quis e quero é o bem do menino, acreditem.

Também tens culpa no cartório, disse a esposa, ao recusar o natural encontro dos corpos no leito que mais parecia uma cama de espinhos. Se não tivesses contratado a católica, se não tivesse insistido que tinha que ser alguém que pudesse trabalhar no sabbat, hoje estaríamos livres desta injusta agonia.

Entre a cruz e menorah, as manchetes criam trincheiras: Família amorosa levada à ruína pelo fanatismo religioso do papa; Papa adota criança e a coloca ao lado dos santos. Para alguns, ótimo momento para criar um ambiente de desestabilização daquele longevo e anacrônico poder. Para outros, afirmação de que velhos métodos e costumes continuam atuantes e vigorosos.

O tempo passa e nem com a morte de Pio IX, o primeiro pontífice a ser fotografado, o menino retorna à casa de origem. A família bem que tenta, políticos poderosos bem que ajudam mas, nada é capaz de abalar os pressupostos irredutíveis da dominância religiosa.

Perdido entre dívidas e dúvidas, o pai vê-se envolvido numa acusação de assassinato de outra empregada. Inocentado do crime mas abalado com as injúrias, não resiste e morre antes de ver o filho Edgardo ordenado sacerdote agostiniano, quinze anos depois, com grandes honras, reconciliado com a mãe mas nunca com os irmãos.  


sábado, 30 de janeiro de 2016

A Piscadela


The Sheer Weight of History, Eric Fischi, 1982



Existe um vigor profundo a ser sentido
ao receber de frente
o vento forte e agudo da compreensão
Richard Dawkins


Cansada, Dagmar abriu os olhos e viu a costumeira sombra na parede à sua frente ao lado do extravagante abaju comprado em brechó num daqueles dias em que costumava sair sem rumo e se deixar levar pela ideia de que a beleza das coisas está na surpresa. Desejo e surpresa tornam a vida vivível. Talvez por isso, não tenha se espantado quando percorreu aquele contorno e sem reservas viu um rosto, um rosto conhecido, o rosto do seu pai. Menos espanto ainda sentiu quando recebeu de volta uma piscadela. Sorriu contente ao ameaçar perguntar se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa, o que andava aprontando, se ainda namorava a mamãe, se estava a arrastar asas para alguma sirigaita? Ruborizada, ficou sem saber se se desculpava por aquela intromissão ou pela desajeitada imitação do típico sotaque materno. Sossegou ao lembrar do significado daquele cacoete. O epílogo de cada história. Contada para dormir, animar o jantar, para iniciar ou continuar uma conversa… Certeza e incerteza são faces da mesma surpresa.

A família se espalhava pela casa, uns na cozinha, outros na sala… crianças em algazarra no quintal, um chorando, outro a fazer birra… Quem não os conhecesse ficaria na dúvida: piquenique, festa de aniversário, batizado? Talvez alguém querido estivesse partindo ou chegando? Quem sabe uma festa de debutante ou algum adolescente passou no vestibular? Um mero almoço de domingo? E logo perceberia que nenhuma ou talvez todas juntas. Era uma festa, oras. Fosse qual fosse o motivo que tivessem para comemorar. No quarto onde Dagmar repousava, após uma longa temporada no hospital, muitas flores, bexigas, cartões, faixa de congratulação e uma dupla, ao lado da cama, a disputar uma concorrida partida de xadrez. Assim que percebeu que a vó tinha acordado o que jogava com as brancas perguntou se tinha feito a jogada certa. Ela levantou um tanto a cabeça, mirou o tabuleiro e piscou, o menino coçou o queixo, refez a jogada e finalmente encarou, desafiador, o adversário.

Vitório já chegou? A filha que acabara de entrar e veio sorridente arrumar a manta e os travesseiros disse que no máximo em meia hora o irmão entraria por aquela porta. – Ah, mãe, tia Ludmila acabou de lembrar, não esqueça do primo Romualdo. Após um breve esforço, Dagmar trouxe à mente o cabelo escorrido e os olhos misteriosos do sobrinho e assegurou que não haveria como esquecer. Uma criança entrou correndo, saltou sobre a cama e escorregou através da janela enquanto dois outros o perseguiam às gargalhadas. - Só não machuquem a mamãe. Dagmar fechou os olhos e ouviu uma obscura flauta embalar o vai e vêm do balanço enquanto voava com os pássaros e as folhas.

Não vejo a hora. O médico ficou por alguns instantes perplexo mas ponderou que talvez estivesse certa. Férias. É o que cada um de nós merece após passar uma vida aqui na Terra. Mesmo não sendo devota Dagmar acreditava que encontraria todos os seus amigos, parentes, conhecidos e até amores passados… Seu pai, procuraria por primeiro. Ai dele se não lhe contasse boas histórias. Quando o caçula chegou, ainda teve tempo de escutá-lo pedir que desse um forte e demorado abraço no vô e um enorme cheiro na vovó. Dagmar abriu um sorriso e descansada partiu. O bisneto enxadrista, aproximou-se e confidenciou, entre uma chuva de palmas: - Olha, vó, já sei piscar. Durante o resto da tarde não enjoou de praticar.  


sábado, 12 de setembro de 2015

Seu Alfredo

Barber Shop, Robert Cottingham, 1989


Quando o Fonseca me contou que a podóloga que cuida da unha encravada dele, tal qual barbeiro, é pessoa insuportável pensei logo no seu Alfredo – que deus o tenha.

Não que fosse de todo desagradável, o velho. Tinha lá sua manjada conversa miolo de pote, adorava levantar lebres, ver se havia coelho em nosso mato , cheio de dedos e inquirições. Bom, até aí tudo bem, dá pra tolerar. Fazer hora extra na vida alheia é esporte global e não serei eu a desmanchar prazeres. Por este pequeno vício, com certeza está salvo. O problema é que invariavelmente invadia minhas inocentes narinas com uma daquelas afiadas tesouras de ponta fina. Aí, passava dos limites.

Cobrava baratinho (um terço do que os outros profissionais do bairro cobravam) e por isso, de quatro em quatro meses me achegava ao seu cubículo tomado por calafrios. No que tentei uma artimanha.

Para fugir da longa e severa tosa dos pelinhos nasais, passei a implorar: passa a máquina, seu Alfredo. Resmungava sereno inconformismo ao avisar que eu bem faria se aceitasse um daqueles cortes austeros e pomposos que estava acostumado a praticar.

Consta-me que em conversa, seja com o barbeiro, manicure ou taxista, não existe equidade. Neste tipo de conversa predomina caminho de mão única, onde nosso papel é o de assentir incondicionalmente, visto não fazer bem para a saúde contrariar aquele que, no manejo de um instrumento, pode nos causar prejuízo imediato.

Mas eu gosto de nadar contra a corrente. Insistir na máquina era meu modo de dizer que queria acabar logo com aquilo, que não precisa se esmerar. 

Somente a perspectiva do incomodo me fazia desbastar a juba, ficar com aquele quase nada de cabelo, o suficiente para alisar nos momentos de indecisão e encabulamento. 

Entendia-me, o barbeiro? Nada. Seu Alfredo tinha verdadeira obsessão por pequenos e inofensivos pelos e na arte de podá-los residia sua desagradabilidade. Na cabeça, cinco passadas da máquina, ligeirinho derrubava a mata. Após anavalhar os limites do corte, no que gastava parcos minutos, passava o resto interminável do tempo a eliminar os pelinhos do meu nariz, das minhas orelhas e das minhas assustadiças sobrancelhas. Imaginem aquela ponta de tesoura tic-tic, tic-tic, enquanto eu louco de vontade de espirrar, coçar e gritar meu desespero diante da dedicação e impassividade do velho artesão.

Por que me submetia? Já disse, por razões econômicas. Depois, queria ver se algum dia ele aventuraria mudar o rumo das coisas. Mas seu Alfredo não estava nem aí pro que eu sentia ou deixava de sentir. Todo dia para ele era igual a qualquer outro. Fazia o trabalho dele e pronto. E, convenhamos, tinha lá seu plus. Que mais eu queria? Ficasse quietinho durante aquele suplício em conta com direito a Aqua Velva nas vias respiratórias ao final.

Um dia, me contaram que alcançara o fim. Ri, liberto. Mas cabelo cresce e logo me vi enredado com uma jovem macia de mãos sedutoras, no salão de beleza na rua de cima. Cobra o triplo do falecido e fala pelos cotovelos, a danada, enquanto lava meu couro cabeludo com shampoo perfumado. Na última vez que a visitei, joguei verde: apararia os pelinhos do nariz? Foi enfática: devia encomendar barba (e morrer em mais um salgado tanto). Senti saudade do velho Alfredo.  


sábado, 4 de julho de 2015

Monstros e Miséria


The Monster
Odilon Redon (1840-1916)


A um menino bonito ofereço o trono do mundo.
Dalton Trevisan
 Boa Noite, Senhor



Vivia de sono perdido. Desde tempos.

Angústia viscosa. Acostumado atravessar longas noites de lá pra cá, de cá pra lá…

Vez por outra, tomado de assalto no meio de uma cochilo, escorria ao encontro de buraco negro.

Desassossego pensar em dormir. Nossos monstros são nossa miséria. 

Uma noite, tarde da noite, decidiu correr em busca das lembranças e antes que uma luz brotasse, realizara o penoso trabalho de separar fantasias de fatos. Descobriu o elemento, o motivo. Tinha em mãos o fio da meada.

O homem quer vingança. O menino deseja sangue, muito sangue. Baba de lesma em dente de ouro. A alma vaga ganha corpo.

Havia de ser rápido. Não haveria apelação no seu tribunal sumário. Para complicar o enredo, também ele em julgamento. Seu único medo: Matando-o, mataria também a si mesmo? Correria o risco.

Eu era fraco da cabeça, invejoso. Acabei preso, arrombado dia e noite na cadeia, virei mulherzinha de gangue, comi merda, bebi catarro, caguei sangue, vomitei toda bondade e nada nem ninguém me salvou. Mas te deixei escapar e agora, por onde passo, sinto os olhos dos santos e dos anjos cravados em mim. Como é possível, santos e anjos são incapazes de ódio e no entanto, seus olhos me ferem. (…) Causei-te mal? Fui até decente contigo. Grandinho, podia ter gritado, corrido… Mas não… Posso dizer que foi consensual? (…) Morto, que mais direi? Queres o que? Profanar meu túmulo, moer meus ossos, misturá-los à urina sarnenta de um cão? Adiantaria? Escapaste, esta é a verdade. Pense na possibilidade de tê-lo amado… O que me inocentaria? Naturalizar-me? (…) Diante da sanha dos tormentos, naqueles porões famintos, não tive como provar nem uma coisa nem outra. Agora, tens a chance de nos redimir.

Cinco tiros. Um corpo. E o paralisado menino com medo de partir.

Das sombras, emergem mulher e menina.

Nossa vez, diz ela.

Jamais dormira.  




sábado, 25 de outubro de 2014

O Homem de Olhos Vermelhos


The Plague, Arnold Böcklin, 1898


Yu é um velho assustado. Caminha arrastando seus enormes testículos. Horrivelmente magro, sem nenhum fio de cabelo no corpo, queixa-se do eterno cansaço. O velho Yu é um laibon: quem deveria construir pontes entre o céu e a terra. Mas Yu vive separado da sua aldeia. E bem longe da caverna onde um dia entrou para recolher guano e usar como fertilizante na sua lavoura.

Engai tudo dá, mas ele não gosta quando a gente pega coisa sem permissão. Neterkob foi criado pra isso. Pra ajudar na ponte. Mas Yu não tem forças e agora tem que carregar seu corpo feio por aí”.

Na fronteira entre o Quênia e a Tanzânia, chovem histórias sobre homens que expelem sangue por todos os orifícios do corpo até a morte. Histórias que Yu desdenhou. Ali todos sabem que nas entranhas da montanha Kitum moram milhares de espíritos ruins que gostam de roubar a seiva e a alma humana. Yu pode ter escapado da terrível morte mas paga um alto preço por ter tocado naquela merda sagrada.

“O pequeno virá destruir o grande”.

Nas profundezas do tempo, algo aconteceu. Algo invisível despertou no fundo da caverna fria, escura e úmida. Algo foi morar nos intestinos dos resistentes morcegos. Um minúsculo filamento capaz de codificar sete proteínas, dotado de mecanismo que engana o sistema imunológico dos organismos que infecta, nasceu. Mas não nasceu do nada. Desde muito estava dito que algo viria combater o mal que viceja na superfície do planeta.

“Seriam os estrangeiros? Será por isso que Engai e Olapa detestam estranhos. Pois é, os forasteiros chegaram com suas máquinas. Máquinas famintas. Máquinas que arrastaram árvores que arrastaram terra que arrastaram bichos... Máquinas que fazem feridas no corpo da terra... Máquinas que despertam demônios... "

O homem de olhos vermelhos caminha entre o vivo e morto. O homem de olhos vermelhos não chega a ser um homem. É uma coisa. Um passado tenebroso. Yu nunca o viu, mas sabe que está próximo. Chegará a qualquer momento. Yu não tem medo mas pensa que se pudesse voltar…

“Agora compreendo a raiva de Engai. O espírito ruim veio roubar a beleza dos masai”. 

Diante da fogueira, Yu busca iniciar uma conversa com a sombra da sombra de Neterkob. Mas percebe que é tarde. Neterkob não o ouve mais. Neterkob partiu. Todos partiram. Até as vacas. Só sobrou Yu e o homem dos olhos vermelhos. E o encontro será inevitável. A Yu resta aguardar o acerto das contas finais.


sábado, 11 de outubro de 2014

Os Cães Não Revelam Seus Sonhos


The Moon Dog
Rufino Tamayo
1973

Faziam por diversão, era engraçado. O dia perfeito era sexta, mas podia acontecer em qualquer dia da semana desde que dois deles estivessem sem nada pra fazer. Isso a partir de quando, meninos ainda, moradores na mesma rua, decidiram fazer a primeira experiência com um gato malhado que perambulava nas redondezas. Acostumado a filar livremente a boia ora aqui ora acolá, foi fácil armarem uma arapuca no caminho do felino. O bichano, diga-se, por conta da velhice ou por não ser lá muito esperto ou talvez pela ausência do olho esquerdo, caiu feito um patinho no surrado golpe de um nem tão apetitoso petisco. Porém uma vencida sardinha, encontrada esquecida numa lata no fundo da geladeira da casa daquele que mais tarde se revelou o cérebro por trás das muitas e cruéis traquinagens, é sempre uma sardinha. O pobre miau sobreviveu ao ensaio, mas pelo tempo que lhe restou de miserável não mais vagabundeou, nunca mais olhou de frente para qualquer ser humano, preferindo se confundir com as margens plácidas dos riachos poluídos que cortam a cidade a lamber suas numerosas, profundas e pútridas feridas.
Mas eis que o grupo cansou dessas pequenas travessuras e resolveu encarar coisas mais sérias. Abandonaram os pequenos animais. Começaram a encarar os de grande porte. E daí para o bicho homem foi um pulo. E não direi que a passagem foi tranquila, como sói acontecer com projetos de grande envergadura. Não, o novo objetivo exigiu deles um extenso e exaustivo aprimoramento técnico. Por conta principalmente da logística necessária que os permitisse perseverar naquele esporte. Sempre buscando os mais fragilizados, conseguiram realizar caçadas das quais se orgulhavam e costumavam ilustrar suas conferências nas constantes horas felizes. Prostitutas, homossexuais, velhos, índios, negros, aleijados, mendigos, sem-teto… Consistiam suas presas favoritas. Pela quantidade e disponibilidade. Podiam ser encontrados em qualquer lugar e a qualquer hora e o mais importante: ninguém jamais reclamaria a falta.
As onze e dez, o telefone tocou. Combinaram o encontro para dali a meia hora, na Praça da Matriz. Seria uma daquelas noites em que o time estaria completo. Naquela noite, a orquestra faria soar o instrumento favorito de cada. Ocasião de demonstrar perícia e sabedoria nas respectivas especialidades aprimoradas ao longo de mais de duas décadas de prática e estudo. Gozaram antecipadamente ao constatarem que aquela seria uma noite diferente, talvez uma noite memorável. Haviam finalmente acertado que era hora de deixarem uma marca, de anunciar o partido ao mundo. Era chegada à hora da grande revelação, o dia do requinte, onde todo o know-how acumulado seria aplicado num único escolhido: aquela figura com o cabelo tingido de fogo, envolto em tanta sujeira que era impossível lhe discernir as feições, logo ali à sombra de uma marquise, a acariciar seu ensebado cão. Estavam de olho nele fazia dias. Tinham catalogado hábitos, trajetos e companhias. Finalmente o encontraram só. Bastava apenas que a armadilha funcionasse. E funcionou perfeitamente. O homem – era um homem? - caiu na cantada: uma noite de sexo, drogas e rock n’rool. Mas o cão não. Rosnou desconfiado enquanto o amigo disse quieto e ele obedeceu e ficou a olhar o estranho sexteto, entre risadas e galhofas, sumir no fim da rua escura. Esperou sentado nas patas traseiras. Aguardou sem mover um músculo. E o assobio veio. Longo e agudo, depois trinado. Esgueirando-se, colado à penumbra, no sobe e desce das ruas tortuosas, o cão seguiu seu faro até um descampado, lá no fim dos trilhos da linha de ferro. Escondido entre as montanhas de sucata e lixo industrial, em meio as dezenas de armazéns fantasmas, assistiu os últimos e dilacerantes instantes do companheiro. Se fosse humano, teria vomitado, mas como era cão lhe ocorreu uivar, porém conteve-se para não atrair para si a ira daquele inesquecível quinteto com suas horripilantes manobras para extrair do homem sons e expressões inimagináveis. Após o festim, acompanhou-os na despedida da noite e gravou de cada um o local exato de morada.
Quase manhã quando o cão conseguiu a atenção de praticamente toda a população de sarnentos da cidade, reunidos através de uma vasta rede de comunicação que chegou a incluir alguns ratos, pombos e milhares de baratas. Lá no ermo onde o camarada tinha sido dopado, torturado, esfolado, empalado, esquartejado, triturado e transformado em pó, diante de uma sôfrega plateia, o cão latiu sua indignação e revolta. E todos farejaram o ar em busca dos ignóbeis vestígios. E quem podia uivar, uivou em uníssono uma raiva e angústia que fez a lua estremecer de pavor. Dali, por cinco fartas madrugadas, e daí em diante, o cão e seus incontáveis e variados parceiros, não precisaram mais remexer o lixo em busca de alimento, afinal agora sabiam onde encontrar comida, a suculenta carne com a qual podiam encher suas panças como nunca sonharam em suas vidas.


sábado, 4 de outubro de 2014

A Primeira Refeição do Dia



Untitled 246, 
Zdistav Beksmski (1956-2005)


Agarrou-o pelos cabelos e puxou. O corpo esquelético caiu de bunda no chão. Escorado na terceira vértebra lombar pelo bico do coturno ficou sem saber se gritava pelo puxão, pela queda, pelo chute ou pela humilhação. Na dúvida, deixou que a dor rugisse e não mais se debateu. Não que estivesse rendido. Não estava. Decidira a muito que viveria mesmo que por teimosia, de pura pirraça e não seria agora que daria o gosto de vê-lo fraquejar. Não senhor, aguentaria. Mais uma vez aguentaria. “É a vida”, pensou, “cada um na sua”. E a dele nunca foi diferente. Sempre lascado. E lascado por lascado, lascado inteiro. Só faltava uma coisa: um berro. Não um berro qualquer, mas um berro de responsa, importado, daqueles cujas balas, em vez de abrir um buraco, explodem em mil pedaços a cabeça do sujeito. Ao menos assim teria uma chance. Porque é foda não ter uma chance.
– Entra aí, vamos dar um passeio.
Por pouco, por tão pouco… Uma questão de passos… Se tivesse alcançado o outro lado da rua… Se aquela moto não tivesse entrado na história… Se, se, se…
– É, vamos levar a criança pro parque de diversão.
A merda dessas situações é que você sabe o que te aguarda e mesmo assim, paga pra ver. Afinal tudo é possível. Nada se parece com o fim. O fim é sempre desconhecido. E por isso tudo pode acontecer: os caras podem mudar de ideia; o carro pode capotar; um avião, um raio… Um meteoro pode cair. Que tal uma nave espacial descer e abduzir todo mundo? Ou um super-herói que, pra cumprir a missão do dia, o salve no último minuto? Até Deus pode intervir. Taí, por que Deus não intervém? “Te desafio: faça este carro derrapar e cair num precipício. Mate estes dois filhos da puta e me deixe viver. Mas antes me responda uma coisa: quem foi o desgraçado que deu autoridade pra estes putos fazerem o que fazem com neguinho que nem eu? Estas bostas não merecem a comida que engolem e cagam: roubam, matam, estupram e de noite vão ao culto com mulher e os filhos. Miseráveis espalhadores de inferno. Todos teus servos, senhor. Armados e loucos. Tudo não é feito em teu nome? Sabes disto melhor que eu, que não inventei o mal deste mundo. Que sou apenas o efeito. Da nossa semelhança. Mas não vou te culpar por nada do que me acontece. Sou homem, tenho responsabilidade. E digo: só por sadismo justifico todas as porradas que levei e que ainda levarei nesta latrina que é minha vida. Só pelo prazer da dor justifico não ter me tornado humano, igual aos que vejo no cinema, na televisão, nas revistas, todos sorridentes, cheios de saúde, de alegria, de futuro… Só por um ódio profundo de mim, me nego o futuro. Mas, não: quero acreditar que na próxima curva o pneu desta viatura vai estourar e aí o careca perderá o controle e o carro rolará ribanceira abaixo se espatifando lá no fundo do buraco envolto num mar de chamas. Vamos, Deus, faça o teu abracadabra. Do resto cuido eu”.
– Você acredita em vampiro?
“Que porra é essa? Tiro, facada, fogo, veneno, os cambaus… Tudo bem, a gente sabe donde vem, o que é e pronto, mas isso, que papo é esse? Se quer me assustar, parabéns, conseguiu. Porque de todas as porras que enfiam na cabeça da gente esta faz tremer as bases. Esse negócio de vampiro cheira a sexo. O que este cara está insinuando? Puta merda, é melhor morrer. Ah, se uma bomba atômica caísse sobre nossas cabeças agora. Pra não sobrar nem pensamento. Tudo, tudo menos isto”.
– Falei com você, merdinha: acredita ou não? O veículo para. – Vem cá, vou te mostrar uma coisa.
– Desce, grita o segundo.
“Pra que se dá ao trabalho de dizer desce se me arrasta pra fora e me joga contra um muro numa quebrada escrota no fim do fim do mundo”?
– Encosta aí. E o golpe do cassetete rasga o canto esquerdo da sua boca seca. Um filete de sangue ralo escorre. Os olhos do polícia que lhe oprime o peito ficam de repente injetados, rubros. Com sede, os dois homens da lei, salivam diante da primeira refeição do dia.


sábado, 27 de setembro de 2014

Um mundo só seu


The Joy in Blindness,
Francis Picabia, 1947


A verdade é estranha, mais estranha do que a ficção”.
Como escrever um artigo à moda de Blackwood,
Edgar Allan Poe, 1838


Ia e vinha em meio àquelas vozes estridentes, enrodilhado naquelas línguas ásperas. Ia e vinha soterrado por aquelas falas amontoadas. Ia e vinha aprisionado por aquelas ladainhas entrecruzadas, gritadas ao celular, como se vivessem o derradeiro instante. Ia e vinha a maldizer aquele conluio diário entre o público e o privado. Ia e vinha todo dia no chacoalhar do ônibus, no atrito das partes mal-ajambradas do veículo, nas imprecações e tiques nervosos do motorista, nas intervenções altissonantes e ininteligíveis do cobrador, nas perguntas óbvias dos perdidos passageiros, na competitiva solidariedade, no trânsito regular e caótico, no “deixa disso”, na arenga religiosa do endiabrado aspirante a pastor, nas manifestações, nos protestos, no gás pimenta, nas balas de borracha, na irritação dos motobóis, no acinte dos automóveis, nas injúrias burguesas, nas vaidades ostentadas, na fuligem, nos bate-estacas, nas desocupações, nos buzinaços, nos paranoicos ambulantes, nos batedores de carteiras disfarçados de boa gente branca, nas marafonas em busca de clientes, nos pedintes com suas histórias mirabolantes e enjoativamente reais, nos gritos fanáticos das torcidas, nas crianças atrevidas e impertinentes, nos idosos autoritários e feios, nos estudantes afetadamente exibidos, nas mochilas, nas bolsas, nos pacotes, nas sacolas, nas malas, no aperto, no sufoco, na passada de mão, na encochada, no gozo subalterno, na dor de barriga, no vômito, na chuva iminente, nas janelas prontamente fechadas, no ar rarefeito, no calafrio, no horror, na morte.

Ia e vinha, porque devia ir e vir. Era seu direito. Só não era direito o que sentia. E abstraía. E ouvia a voz (de quem?): “Pense no mar, pense no azul do céu. Há sempre algo bom e belo pra ver”. E olhava através do vidro embaçado. Nada. Fechava os olhos. Tentava não sentir. Aquilo ia e vinha. Um desgosto. Também, ninguém o via. Ninguém se importava. Ninguém notava o seu ir e vir. Pouco importava se ia ou vinha. Repararia alguém?

Os dois encapacetados ficaram entre a roleta e ele. Assim, abruptos: entraram pela saída. Não se sabe quem atirou, só que atirou. Ouviu-se um estampido acre. E ele olhou e em seu rosto não havia qualquer sinal de assombro. Apesar do estupor, nada lhe pareceu incomum. Pelo contrário, tudo carregava aquele ar costumeiro e a dupla aparição em nada destoava de qualquer outra cena banal de todos os dias enquanto ia e vinha. Embora não negasse que era a primeira vez que observava tanta gente correr para o fundo do coletivo, agitados, trêmulos, chorosos, grudados em seus aparelhos a suplicarem aos interlocutores do outro lado da linha que chamassem a polícia, pois que estavam sendo assaltados, que chegariam atrasados, que orassem, que pedisse aos santos, aos poderes do além, que não tinham para onde correr, que ó deus tende piedade de nós, que nossa cidade a cada dia fica mais e mais violenta, que ninguém mais tem respeito, que a autoridade sumiu, que a política é um esgoto, que estamos num mato sem cachorro, que é o fim, que fomos todos pro beleléu e que não há quem nos salve, nós pobres coitados, sofredores, ferrados e mal pagos…!

Após o ribombo do segundo tiro ninguém o viu caindo e se a perícia interrogasse, nenhum saberia dizer como e porque teria ele caído. Claro que teceriam conjecturas, cada um construiria uma versão mas, ninguém poderia ignorar no chão metálico do corredor aquela poça de sangue célere em alcançar sua forma sólida enquanto uns respingos secavam na blusa bege da moça que estava com os fones enterrados nos ouvidos, logo ali atrás e que lutava em vão contra uma insistente goteira pingando sobre seu ombro esquerdo. Depois disto, uma névoa, um crepúsculo e, finalmente, a paz. 

As coisas nunca são do jeito que a gente quer, ou pelo menos nada neste mundo fica, por assim dizer, do nosso gosto, mesmo quando fazemos tudo com paciência e zelo. Não adianta. Que o acaso cumpra então sua parte. Pois quanto mais planejamos menos alcançamos o esperado resultado. Nada é previsível neste mundo. Em todos os momentos somos chamados a mudar o rumo, de direção. Andem numa calçada: de quantos seres teremos que nos desviar em parcos cem metros? Quantos obstáculos seremos obrigados a contornar ou ultrapassar num simples passeio? Pois é: tudo isto passou. Já era. Página virada. No presente tudo corre do jeito que sempre quis. Ou pelo menos agora todos o notam, todos querem ajudá-lo, todos se importam com ele, mesmo quando, no seu interminável ir e vir, irrita-se com o assédio por conta do suposto interesse e responsabilidade mútua. Mas quem liga? Afinal conseguiu um mundo todinho pra si, repleto de silêncio e escuridão. Um mundo onde seus passos são sempre em frente e a música que o acaricia e conforta vem de esferas jamais imaginadas.



sábado, 13 de setembro de 2014

Afeição Mortal


Grandmother and Granddaughter
Lovis Corinth, 1919



Definhava a olhos vistos a menina. Novinha e tão fraquinha, gente. Sem ânimo, sem cor, sem vida. Pálida e frágil feito folha de papel-arroz. Pelos cantos, desenxavida, voz sumida, aérea.

Foi uma gravidez normal. A mãe com saúde, corada, roliça, apetite e disposição de estivador… Aliás a família inteira gabava-se de nunca precisar de médico ou remédio. A bisa se fora aos cento e vinte e cinco ainda enfiando linha no fundo de agulha, bebendo uma garrafa de vinho e tirando o gosto com fatias generosas de mortadela com limão todos os dias. Aos domingos era comum, ora na casa de um, ora na casa de outro, mesas ecléticas, fartas e francas: feijoada, macarronada, rabada, moqueca, churrasco… Tudo regado a litros e litros de cerveja, vinho e amistosas jarras de caipirinhas.

No entanto, o que havia? No começo, achava-se que era dengo, excesso de mimo. Nos braços de uns e de outros, sempre coberta de carinhos, agrados e esperanças. Primeira filha em família grande sabe como é. Aquele monte de tios e tias, primos… A parentada toda de olho na posteridade: vai ser isso, vai ser aquilo. Mas depois, como explicar aqueles cambitos no lugar de pernas, aquela cabeça diminuta, aquelas órbitas fundas e cinzas no alto da cara, aquele cabelo escorrido e ralo, aquele nariz adunco, aquelas unhas de górgona…?

Corre praqui, corre prali, exames, receitas, tratamentos, nada, nada dava resultado. Nenhuma esperança, nenhuma melhora. Apenas gramas e mais gramas de peso, a cada dia, perdidas. Desse jeito vai sumir, era o comentário favorito desde então. Comer comia mas, não adiantava. Estava, como dizia os mais velhos, só pele e osso. O que acontecia? Que doença era aquela? Pensaram em recorrer às religiões mas desistiram. O pai desistiu. E fez promessa de buscar uma explicação, um diagnóstico, uma cura. Por que sua menina, aquele pedacinho de gente que toda noite dormia em seus braços, sofria? Pobrezinha, que destino. Pode morrer a qualquer hora. Jamais conheceria as delícias da vida, do amor, da amizade…

Mas o mundo dá voltas. Um dia a verdade apareceria, clara, cristalina, radiante como sol de verão. E o pai obstinado virou, mexeu, consultou deus e todo mundo. Abraçado aquela maçaroca de papeis e chapas, resultados de exames, mil bulas, era de praxe vê-lo nos corredores das faculdades de medicina, clínicas e hospitais de ponta, a questionar diagnósticos, procedimentos, sugerir pesquisas, envolver-se em campanhas e voltar para casa arrastando o mesmo desânimo, o mesmo descrédito, a mesma impotência. 

Uma noite dessas, ao chegar em casa lá pelas tantas, exausto, seguiu até o gabinete – o quartinho das tranqueiras, como dizia a mulher. Arriou-se na velha poltrona e quase adormeceu não fosse um sobressalto. Pareceu-lhe ouvir a voz da filha. Impressão. Mecânico, ligou o computador e acessou a câmera colocada no quarto da pequena. Há quanto tempo não olhava aquilo? Instalada logo após o nascimento, a câmera ajudava a monitorar o sono da criança. Mas quem se lembrava disso? Há quanto tempo não via as gravações. Ficou curioso e resolveu assistir a última. Despreocupado, deixou correr. Que veria? Nada a não ser o corpo da filha num sono inquieto, um sono agitado, prum lado, pro outro, seu rosto esquálido em esgares silenciosos. Baixou a cabeça e pareceu buscar forças. Foi quando ouviu novamente o gemido. Um gemido ou um grito? Definidamente, um pedido de socorro. Ergueu a cabeça e o que viu disparou seu coração. Quis gritar mas era tarde. Enquanto todos dormiam um sono profundo, acabara de sofrer um infarto fulminante, diria a atestado de óbito. No monitor, quem visse, não acreditaria na imagem, lutaria contra todos os pensamentos sensatos, não encontraria uma explicação plausível, estaria diante do inacreditável e, entre palpitações e engasgos, nos diria que vira o espectro da enérgica avó (que decidira morar com eles e insistia em dormir no quarto da neta) a esvoaçar transparente, deformado, gelatinoso e embevecido a lamber e lamber o doce e inocente corpinho. 


sábado, 6 de setembro de 2014

O Sonho

The Dream, 
Max Beckmann, 1921


Barulho da porta. Carlos Rigot entra sem avisar. Vai direto ao filtro sobre a pia da cozinha e serve-se de dois copos d’água. Parado no corredor, acompanho seu corpanzil desgrenhado aboletar-se na minha poltrona diante da TV. Sento no sofá ao lado. Largo o livro sobre o tecido empoeirado. 

Fazer o bem desgasta.

Não há diálogo. Com ele é sempre monólogo. Mas aprecio. Sempre aprecio. Gosto e aguardo sua figura saída dalgum romance indefectivelmente gótico. Ansioso e gasto todo o tempo. Puído em sua indumentária negra e perene. 

Alguém a pouco, no ponto de ônibus, me perguntou como chegar à Rua da Abolição. Relutei mas assenti. Só faltei desenhar. Sabe o que o mal-agradecido fez? Foi perguntar pro vizinho.

Arrisquei muito ao mudar minha atitude e dizer que talvez ele não tenha inspirado a devida confiança.

Não inspiro confiança?

Não…

Não ou sim?

É que não existe mais inocência.

Não existem mais ingênuos no mundo?

É. Talvez sejamos todos espertos. Ou fazer o bem faz mal.

Soa bem. Posso pegar um copo d’água? O que me ocorreu, meu caro – disse quase a quebrar um dos copos pousados na bandeja sobre a geladeira – é que o meu amigo ingrato não entendeu a minha linguagem ou eu não tenha sabido falar a dele. Somos todos falhos na comunicação, com a graça de Deus.

Voltou a sentar-se. Agora no sofá. Afastou o livro e aproximou-se de mim. Quase a sussurrar no meu ouvido, disse: – Escute. Quer ouvir?

Existe um acordo entre nós, sobre o qual nunca falamos. Eu o ajudo, ele me ajuda. Embora nunca seja fácil encontrá-lo. No entanto, dada a minha natureza, estou sempre disponível no mesmo endereço há mais de trinta anos.

É uma pequena cena. Algo que encontrei na Antologia da Literatura Fantástica elaborada por Borges, Bioy e Silvina: uma velha narração do século passado, de um obscuro escritor que morreu na miséria acreditando que viera ao mundo para fazer o bem sem olhar a quem.

Fiquei curioso. Ele percebeu e arrancou do bolso um amassado pedaço de papel. Empurrou na minha direção aqueles hieroglíficos mas antes que eu começasse a decifrar aquela receita médica, soltou o verbo…

Conta-se que, numa tarde, tomando um café num bar de subúrbio, um jovem escritor defrontou-se com uma figura esquálida que o mirou durante alguns minutos. Sem resistir, convidou-o a compartilhar um drinque. O estranho recusou a bebida mas solicitou que lhe ouvisse o sonho da noite anterior. Queria saber se poderia ajudá-lo a formatar uma narrativa ligeira. Havia algum tempo começara no exaustivo ofício de contista e como sabia que o outro era um literato não podia deixar passar a oportunidade de lapidar o estilo. “Parece que existem muitos pretendentes mas a noiva é uma só”, disse desajeitadamente. O outro fez uma associação mitológica em meio a um sorriso condescendente. Foi corda o bastante para que o esquisito discorresse num fôlego: “Estava num piquenique com a mulher e filhos. No balneário dos trabalhadores. Na grande vasilha, sobre a toalha aberta sobre a grama do parque jardim, o melhor da festa. Servia a todos. Sorridente, reparei, próximo, dois olhos pedintes. Sem hesitar, perguntei-lhe se aceitava um pouco. Os olhos famintos consentiram. Mas faltava um prato. Ninguém cedeu o seu. Fui até o restaurante do clube buscar louça e talher. Demorei na escolha. Por quê? A indecisão custou-me um quarto de hora. Ao regressar, vi que a minha família acabara de devorar os deliciosos e grandes pastéis. Os últimos. E pra mim, não sobrou nada? Os olhos esfomeados queixou-se. Afastado, falava mal. De mim”. Que acha?



sábado, 30 de agosto de 2014

A Mudança



Theme & Variations Plate #96
Piero Fornasetti



Para você, Mauri.
Porque a vida é que nem um rio: 
espremido entre as margens segue, 
sinuoso, em direção ao mar.



Como explicar? Foi assim, de repente. Quando a gente não conhece alguma coisa não é possível imaginá-la. Só pensamos o que conhecemos. Por isso nos assusta a surpresa. E leva um tempo até que familiaridade se instale, que aceitemos o fato consumado. Só aí é possível pensar no depois, no adiante.

No inicio, uma dor de cabeça. Que começou a incomodar daí uns três dias. A ida ao médico resultou num pedido de alguns exames, uma receita e um retorno para dali a um mês. Um mês. É um bom prazo. Pra que tudo volte ao normal ou a gente perceba que o buraco é mais embaixo e a coisa começa a ficar feia.

Batata. Exatos 30 dias depois, com chapas, exames e uma enxaqueca de matar o guarda, dei entrada ao hospital mais próximo com um quadro agravado agora com calafrios e medo, muito medo. Um medo inexplicável. Um medo de tudo. Um medo até de mim mesmo. O médico que me atendeu pediu calma, disse que consultaria um especialista e voltaria no final da tarde.

Do leito em que me encontrava, dava pra ver o corredor. E o que vi me assustou mais ainda. Macas e mais macas atravessavam o meu campo de visão como um carrossel. Aquilo que enjoou e gritei pela enfermeira. Nada. Só um corre-corre generalizado, uns gritos, umas suplicas, ordens, pedidos, telefones… E a TV ligada num canal religioso: Só Jesus salva, só Jesus salva, só Jesus salva. Gritei novamente. Mais alto. Senti uma pontada nas costelas. Uma fisgada. Uma dor profunda. Uma dor em onda, vindo, vindo, vindo, crescendo, ganhando corpo, meu corpo. Gritei, gritei… Pedi, implorei, chorei… Rezei, conjurei todas as possibilidades, ansiei por uma mão, um ombro, uma palavra, algo que arrancasse de mim aquela dor que parecia vir do fundo do universo. Sim, aquela dor era universal. Todos e tudo a estavam sentindo. O universo gritava de dor.

E ali, naquele leite revirado, quedei. Fechei os olhos e pensei no final. Uma hora a dor haveria de passar. Sumir. Voltar para o esquecimento de onde nunca deveria ter saído. Assim são as coisas: nada dura para sempre. Certo disto, respirei fundo e deixei que minhas mãos chegassem até o meu peito e que minhas unhas se cravassem sobre a minha pele em chamas. Gentilmente, meus dedos foram afastando os tecidos e penetrando até os órgãos, arrancando-os um a um. Um oco tomou conta de mim. E nem me preocupei mais em respirar, acabara de jogar meus pulmões na cama ao lado… Meus olhos, minha faringe, meu estômago, fígado, baço, rins… Tudo, retirei tudo… Ficou só o oco. E a dor não sumia. Foi então que percebi que tudo vinha do cérebro. Era ele que estava fazendo isto comigo. Decidi arrancá-lo também e me joguei de encontro ao chão, Senti meu rosto se espatifar, e pedaços de mim se espalharem pelo quarto. Tinha me livrado de tudo e ainda sentia dor.
Que mais me restava fazer?

Imobilizado, sem vida, arrastei-me até a janela e senti a luz. Seria uma boa hora para respirar fundo mas já não me ocorria nenhum movimento familiar. Perdi completamente a noção de eu. Mas se eu não era mais eu, quem eu era agora?

Foi aí que pisquei não com um mas com vários olhos e voei em direção ao sol e não senti mais dor. Nunca mais.



sábado, 31 de maio de 2014

Ninguém merece fundir-se ao caos.


A Vala Comum, Picasso, 1945



Escombros. Gigantesca metamorfose. Dolorida. Muito. Terramodificação. Novacomodação tectônica. Titânica. De material, o de sempre: terra, pau, pedra, ferro, aço, plástico, lixo… De valor, nada. Eletrônicos, carros, móveis, brinquedos, utensílios domésticos… Tudo gasto, mincharia, tudo passível de reposição mas, as vidas… Estas, com muita generosidade imaginativa, reencarnariam esquecidas das dores, das penas e do destino controverso. Por que somos assim? Tão instantâneos. Tão descartáveis. Por que nos tratamos assim, se somos da mesma matéria e desejamos as mesmas coisas? Porém tudo parece pequeno demais pra nós dois. Então nossa selvageria. Nosso pasmo apetite, força que nos aglomera neste monstruoso salve-se quem puder. Nós, mundiça.

Pois é. Dagmar levava sua vidinha, pra lá e pra cá… Passinho apertadinho, miudinho, trocadinho… Crentinha em deus e na misericórdia divina que isto é coisa de se aguardar nestes dias apocalípticos. Deixara, ainda miúda, a roça ao pé de serra e, agarrada à saia da mãe, deu com os burros nestas imensas águas pra sentar praça lá pras bandas de Caxias onde meia dúzia de parentes já se espremiam nos trens da Central. Não mudou muito. Um tanto mais esquecida, talvez. E toca pensar na tal promessa ouvida da boca nervosa do Juvenal, seu ajudante de pedreiro desnutrido de qualquer ilusão de montar casa e ter um bocado de filhos pra ajudar nas despesas. Melhor esperar ajuda de cima e, neste ponto, concordavam, andava difícil. Deus tem demonstrado irritação com as misérias que nós e outros andamos fazendo pela aí. Perdida a conta de quantas enchentes viveram. E sobreviveram. Endurecidos. Fazer o quê, se esta última deixara um cheiro de morte muito mais tempo que as outras? Fedor que insistia em deitar raízes e subir aos céus seus ramos folhas flores e frutos encarnados de incontrolável violência. Finalmente o fim do mundo, um juízo final deveras. Amém.

Foi aí que sentiu o primeiro espasmo. Que nem descarga elétrica. Tal se tivesse abraçado um monte de fios descascados. Depois, sentiu engolido um liquidificador e, finalmente, aquele gosto de sal a escorrer do nariz. Não se deu conta de mais nada. Era só agonia e eis que uma voz fininha, fraquinha suspira um exausto cansaço e diz a que veio. O noivo ouviu em perplexo espanto e, descrente, tratou de buscar na memória algum adjutório. Conseguiu articular um surrado salmo. Suspenso, não encontrou luz senão aferrar-se feito náufrago. Mas a voz, após insistir uma eternidade, extenuada evaporou. Ufa, que susto, este estranho mal-estar. Que coisa. Será que, de tão fraca, deixara-se possuir ou estava ficando doida mesmo?

Na manhã seguinte, ao passar na onde fora uma esquina, onde alguns ainda insistiam em buscar restos de lembranças, sentiu uma pontada na moleira e caiu em prantos contorcidos na frente de todo mundo. Seria uma vergonha não fosse o pedido de socorro vindo do oco de sei lá onde. Um gari decidiu cavoucar na direção da pista que o grito apontava. Não custava nada. Renovado, comprovou, batata: havia um corpo ali. Uma mulher, agarrada ao seu bebê, sufocados os dois, espremidos sob toneladas de entulho. O que se dava por perdido foi encontrado e pode ter um enterro decente. Graças. De que jeito Dagmar sabia? Alguém disse: Os mortos falaram. Os mortos falam através da voz invisível de Dagmar. Deixa, santinha, deixa os mortos falarem donde estão. Queremos dar digna sepultura aos que foram cuspidos sem causa justa.

O pastor e o padre disseram não. Ixe, que nem pensar. Que não se mexe com os mortos. Que isto é coisa de satanás. Que, se a gente não entende, é porque deus escreve certo por linhas tortas, estas coisas. Enquanto as autoridades dizem nada poder, a maioria clama: Dagmar, faça-nos um favor, filha de deus, traz a voz da minha mãe, do meu filho, na minha netinha, no meu marido, do meu primo, do meu irmão, da minha vizinha, do meu conhecido, até do meu cachorro alguém pediu. Que cansamos de desemparo. Ninguém merece fundir-se ao caos.

Um mar de gente, um oceano de corpos ressurgidos, uma imensidão de almas que antes vagavam pelos umbrais da inexistência puderam ser encontradas, trazidas ao seio dos agradecidos chorantes. Um a um, Dagmar os atendeu. Aprendeu, na sua pobreza, a ser solidária. Um a um, permitiu que, de dentro dela, gritassem, chorassem e apontassem o rumo. Alguns meeiros, outros nem tanto. Todos tiveram, por último, merecido instante de dignidade. Que é só isto que nos vale. Louva a Deus, criatura. Que tu és o nosso consolo.

Porém, de tanto amanhecer todo mundo, um dia, sem casar, anoiteceu a santinha. Como se nunca tivesse acontecido. De repente, os mortos sumiram. Ou quem sabe, a própria morte dera um tempo, desistira. Se não virou borboleta ou coisinha menor, dizem as boas línguas: bem pode ter encontrado um sentido pra sua sumida vidinha, agora que voltou aos vagões sem as vozes e sem Juvenal que, sem morrer, não sabia como mandar notícias.


sábado, 29 de março de 2014

Edição da Memória



Attic Memories, Norman Rockwell, 1925



O esquecimento não sobrevive ao sonho.

A quantidade de pontos existentes no Universo é a mesma que existe num centímetro.

Contar é comparar duas séries.

Apenas duas datas resumem uma vida: nascimento e morte.

Viver é uma simulação arriscada. Ainda mais quando se procura serviço público de qualidade, jornalismo isento e amor desinteressado.

Por conta de uma doença hereditária, garota mata os pais, se suicida e deixa bilhete: “Olha a merda que a gente fez”.

Numa sociedade onde faltam sábios, vicejam espertos.

Não resistia à crítica: Tinha rabo preso e telhado de vidro.

Um ignorante orgulhoso, além de burro é ingrato – cumpre a lei por recompensa. Moralmente culpável, realiza menos do que a lei exigia.

O valentão, que gostava de fazer chorar as meninas, acabou endemoniado de tanto vigiar o inferno.

Quem se vende por centavos, jamais chega a milhão.

Um sonho generoso acaba em porrada e o agressor, na delegacia, confessa: Nós somos católicos, pô.

Ela, repleta de memória, nunca foi tola mas, ignorava o prazer intelectual.

O homem de gênio o é graças a mediocridade.

Toda identidade pessoal reside na memória. Anulada esta temos o idiota.

Todos os homens são capazes de todas as ideias. Só que uns as registram primeiro.

A história é:  Um fato e suas várias versões.


sábado, 8 de março de 2014

O Fracasso da Nobreza



Dead End, Jacek Yerka, 1980


Não foi Madalena perdoada? A partir daquele instante deixou de entregar seu corpo ao mundo. Passou a acompanhar o mestre, tornou-se pura. Figura, hoje, ao lado dos bons, justos e virtuosos. Madalena é a prova inconteste de que é possível domesticar o demônio. O segredo está em esquecer. Amputar a memória. Apenas no esquecimento a mulher iguala-se ao homem.

(…)

A natureza feminina é má e fraca. Fraca porque é má, má porque é fraca. Tende à ruína. Pelos sentidos. Acusaste-me de fraco, incapaz de resistir aos teus encantos. Nunca estiveste tão certa. Em condenar-te.

(…)

Claro que existe bondade mas ela é um atributo exclusivamente masculino. Quem primeiro perdoou? De quem a mulher aprendeu o perdão?

(…)

Quem arrancou de ti toda pecha, todo estigma? Quem limpou tua barra, pagou tuas dívidas, curou tuas chagas? Quem removeu as cicatrizes que desfiguravam teu corpo?

(…)

Ah, quando te conheci… Tão perdida e tão linda. Te olhei nos olhos, penetrei na tua miséria para te resgatar das trevas, te devolver à luz. Tu tão refratária. O que peço?

(…)

O que para a mulher é gozo para o homem é missão. Que vale mais: teu gozo ou minha missão? Acaso devo renegar a potência, impedir a livre expressão da minha masculinidade? Quanto egoísmo! Existem outras, tão vítimas do pecado quanto tu, corrompidas e frágeis.

(…)

Lembro de ti, na sarjeta, pagando tributo à escória, tão suja, tão rameira, capaz de lamber o chão por alguns trocados… E no entanto, meu compromisso te trouxe até aqui. Eis a prova maior do meu amor. Minha constância. Alegra-te e cala.

(…)

És o meu troféu, meu prêmio mais cobiçado. Lutei por ti, lutei muito por ti, és meu ganho. E por tudo isto te fiz respeitável… Teu filho tem um nome, o meu nome. E falas em rejeitar meus desejos?

- Quando fracassa a nobreza o que resta?

Não enten…!