The Joy in Blindness,
Francis Picabia, 1947
“A
verdade é estranha, mais estranha do que a ficção”.
Como
escrever
um artigo
à moda de Blackwood,
Edgar
Allan Poe, 1838
Ia
e vinha em meio àquelas vozes estridentes, enrodilhado naquelas
línguas ásperas. Ia e vinha soterrado por aquelas falas amontoadas.
Ia e vinha aprisionado por aquelas ladainhas entrecruzadas, gritadas
ao celular, como se vivessem o derradeiro instante. Ia e vinha a
maldizer aquele conluio diário entre o público e o privado. Ia e
vinha todo dia no chacoalhar do ônibus, no atrito das partes
mal-ajambradas do veículo, nas imprecações e tiques nervosos do
motorista, nas intervenções altissonantes e ininteligíveis do
cobrador, nas perguntas óbvias dos perdidos passageiros, na
competitiva solidariedade, no trânsito regular e caótico, no “deixa
disso”, na arenga religiosa do endiabrado aspirante a pastor, nas
manifestações, nos protestos, no gás pimenta, nas balas de
borracha, na irritação dos motobóis, no acinte dos automóveis,
nas injúrias burguesas, nas vaidades ostentadas, na fuligem, nos
bate-estacas, nas desocupações, nos buzinaços, nos paranoicos
ambulantes, nos batedores de carteiras disfarçados de boa gente
branca, nas marafonas em busca de clientes, nos pedintes com suas
histórias mirabolantes e enjoativamente reais, nos gritos fanáticos
das torcidas, nas crianças atrevidas e impertinentes, nos idosos
autoritários e feios, nos estudantes afetadamente exibidos, nas
mochilas, nas bolsas, nos pacotes, nas sacolas, nas malas, no aperto,
no sufoco, na passada de mão, na encochada, no gozo subalterno, na
dor de barriga, no vômito, na chuva iminente, nas janelas
prontamente fechadas, no ar rarefeito, no calafrio, no horror, na morte.
Ia
e vinha, porque devia ir e vir. Era seu direito. Só não era direito
o que sentia. E abstraía. E ouvia a voz (de quem?): “Pense no mar,
pense no azul do céu. Há sempre algo bom e belo pra ver”. E
olhava através do vidro embaçado. Nada. Fechava os olhos. Tentava
não sentir. Aquilo ia e vinha. Um desgosto. Também, ninguém o via.
Ninguém se importava. Ninguém notava o seu ir e vir. Pouco
importava se ia ou vinha. Repararia alguém?
Os
dois encapacetados ficaram entre a roleta e ele. Assim, abruptos:
entraram pela saída. Não se sabe quem atirou, só que atirou.
Ouviu-se um estampido acre. E ele olhou e em seu rosto não havia
qualquer sinal de assombro. Apesar do estupor, nada lhe pareceu
incomum. Pelo contrário, tudo carregava aquele ar costumeiro e a
dupla aparição em nada destoava de qualquer outra cena banal de
todos os dias enquanto ia e vinha. Embora não negasse que era a
primeira vez que observava tanta gente correr para o fundo do
coletivo, agitados, trêmulos, chorosos, grudados em seus aparelhos a
suplicarem aos interlocutores do outro lado da linha que chamassem a
polícia, pois que estavam sendo assaltados, que chegariam atrasados,
que orassem, que pedisse aos santos, aos poderes do além, que não
tinham para onde correr, que ó deus tende piedade de nós, que nossa
cidade a cada dia fica mais e mais violenta, que ninguém mais tem
respeito, que a autoridade sumiu, que a política é um esgoto, que
estamos num mato sem cachorro, que é o fim, que fomos todos pro
beleléu e que não há quem nos salve, nós pobres coitados,
sofredores, ferrados e mal pagos…!
Após
o ribombo do segundo tiro ninguém o viu caindo e se a perícia
interrogasse, nenhum saberia dizer como e porque teria ele caído.
Claro que teceriam conjecturas, cada um construiria uma versão mas,
ninguém poderia ignorar no chão metálico do corredor aquela poça
de sangue célere em alcançar sua forma sólida enquanto uns
respingos secavam na blusa bege da moça que estava com os fones
enterrados nos ouvidos, logo ali atrás e que lutava em vão contra
uma insistente goteira pingando sobre seu ombro esquerdo. Depois
disto, uma névoa, um crepúsculo e, finalmente, a paz.
As
coisas nunca são do jeito que a gente quer, ou pelo menos nada neste
mundo fica, por assim dizer, do nosso gosto, mesmo quando fazemos
tudo com paciência e zelo. Não adianta. Que o acaso cumpra então
sua parte. Pois quanto mais planejamos menos alcançamos o
esperado resultado. Nada é previsível neste mundo. Em todos
os momentos somos chamados a mudar o rumo, de direção. Andem numa
calçada: de quantos seres teremos que nos desviar em parcos cem
metros? Quantos obstáculos seremos obrigados a contornar ou
ultrapassar num simples passeio? Pois é: tudo isto passou. Já era.
Página virada. No presente tudo corre do jeito que sempre quis. Ou
pelo menos agora todos o notam, todos querem ajudá-lo, todos se
importam com ele, mesmo quando, no seu interminável ir e vir,
irrita-se com o assédio por conta do suposto interesse e
responsabilidade mútua. Mas quem liga? Afinal conseguiu um mundo
todinho pra si, repleto de silêncio e escuridão. Um mundo onde seus
passos são sempre em frente e a música que o acaricia e conforta
vem de esferas jamais imaginadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário