sábado, 31 de maio de 2014

Ninguém merece fundir-se ao caos.


A Vala Comum, Picasso, 1945



Escombros. Gigantesca metamorfose. Dolorida. Muito. Terramodificação. Novacomodação tectônica. Titânica. De material, o de sempre: terra, pau, pedra, ferro, aço, plástico, lixo… De valor, nada. Eletrônicos, carros, móveis, brinquedos, utensílios domésticos… Tudo gasto, mincharia, tudo passível de reposição mas, as vidas… Estas, com muita generosidade imaginativa, reencarnariam esquecidas das dores, das penas e do destino controverso. Por que somos assim? Tão instantâneos. Tão descartáveis. Por que nos tratamos assim, se somos da mesma matéria e desejamos as mesmas coisas? Porém tudo parece pequeno demais pra nós dois. Então nossa selvageria. Nosso pasmo apetite, força que nos aglomera neste monstruoso salve-se quem puder. Nós, mundiça.

Pois é. Dagmar levava sua vidinha, pra lá e pra cá… Passinho apertadinho, miudinho, trocadinho… Crentinha em deus e na misericórdia divina que isto é coisa de se aguardar nestes dias apocalípticos. Deixara, ainda miúda, a roça ao pé de serra e, agarrada à saia da mãe, deu com os burros nestas imensas águas pra sentar praça lá pras bandas de Caxias onde meia dúzia de parentes já se espremiam nos trens da Central. Não mudou muito. Um tanto mais esquecida, talvez. E toca pensar na tal promessa ouvida da boca nervosa do Juvenal, seu ajudante de pedreiro desnutrido de qualquer ilusão de montar casa e ter um bocado de filhos pra ajudar nas despesas. Melhor esperar ajuda de cima e, neste ponto, concordavam, andava difícil. Deus tem demonstrado irritação com as misérias que nós e outros andamos fazendo pela aí. Perdida a conta de quantas enchentes viveram. E sobreviveram. Endurecidos. Fazer o quê, se esta última deixara um cheiro de morte muito mais tempo que as outras? Fedor que insistia em deitar raízes e subir aos céus seus ramos folhas flores e frutos encarnados de incontrolável violência. Finalmente o fim do mundo, um juízo final deveras. Amém.

Foi aí que sentiu o primeiro espasmo. Que nem descarga elétrica. Tal se tivesse abraçado um monte de fios descascados. Depois, sentiu engolido um liquidificador e, finalmente, aquele gosto de sal a escorrer do nariz. Não se deu conta de mais nada. Era só agonia e eis que uma voz fininha, fraquinha suspira um exausto cansaço e diz a que veio. O noivo ouviu em perplexo espanto e, descrente, tratou de buscar na memória algum adjutório. Conseguiu articular um surrado salmo. Suspenso, não encontrou luz senão aferrar-se feito náufrago. Mas a voz, após insistir uma eternidade, extenuada evaporou. Ufa, que susto, este estranho mal-estar. Que coisa. Será que, de tão fraca, deixara-se possuir ou estava ficando doida mesmo?

Na manhã seguinte, ao passar na onde fora uma esquina, onde alguns ainda insistiam em buscar restos de lembranças, sentiu uma pontada na moleira e caiu em prantos contorcidos na frente de todo mundo. Seria uma vergonha não fosse o pedido de socorro vindo do oco de sei lá onde. Um gari decidiu cavoucar na direção da pista que o grito apontava. Não custava nada. Renovado, comprovou, batata: havia um corpo ali. Uma mulher, agarrada ao seu bebê, sufocados os dois, espremidos sob toneladas de entulho. O que se dava por perdido foi encontrado e pode ter um enterro decente. Graças. De que jeito Dagmar sabia? Alguém disse: Os mortos falaram. Os mortos falam através da voz invisível de Dagmar. Deixa, santinha, deixa os mortos falarem donde estão. Queremos dar digna sepultura aos que foram cuspidos sem causa justa.

O pastor e o padre disseram não. Ixe, que nem pensar. Que não se mexe com os mortos. Que isto é coisa de satanás. Que, se a gente não entende, é porque deus escreve certo por linhas tortas, estas coisas. Enquanto as autoridades dizem nada poder, a maioria clama: Dagmar, faça-nos um favor, filha de deus, traz a voz da minha mãe, do meu filho, na minha netinha, no meu marido, do meu primo, do meu irmão, da minha vizinha, do meu conhecido, até do meu cachorro alguém pediu. Que cansamos de desemparo. Ninguém merece fundir-se ao caos.

Um mar de gente, um oceano de corpos ressurgidos, uma imensidão de almas que antes vagavam pelos umbrais da inexistência puderam ser encontradas, trazidas ao seio dos agradecidos chorantes. Um a um, Dagmar os atendeu. Aprendeu, na sua pobreza, a ser solidária. Um a um, permitiu que, de dentro dela, gritassem, chorassem e apontassem o rumo. Alguns meeiros, outros nem tanto. Todos tiveram, por último, merecido instante de dignidade. Que é só isto que nos vale. Louva a Deus, criatura. Que tu és o nosso consolo.

Porém, de tanto amanhecer todo mundo, um dia, sem casar, anoiteceu a santinha. Como se nunca tivesse acontecido. De repente, os mortos sumiram. Ou quem sabe, a própria morte dera um tempo, desistira. Se não virou borboleta ou coisinha menor, dizem as boas línguas: bem pode ter encontrado um sentido pra sua sumida vidinha, agora que voltou aos vagões sem as vozes e sem Juvenal que, sem morrer, não sabia como mandar notícias.


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