Crianças, Dilek Demirci, 2009
Existe
criança judia?
E
criança católica, protestante, muçulmana…?
Criança
é criança e basta.
O
dia está claro. O sargento da polícia anda imerso em dúvidas
porém, quando chega diante do número… na rua… em Bolonha,
Estado Papal, disciplinadamente bate três vezes. Tempos bicudos,
aqueles. A Igreja Católica sofre alguns abalos, muitas ameças. Até
o Imperador, quem diria! O Cardeal fora enfático: é hora de dar o
troco. O que farão com o menino? O policial controla-se e aceita que
não importa, sua missão é pegar a criança e entregá-la ao
Catecúmeno.
A
empregada abre a porta. Os Mortara aguardam curiosos na sala de
estar. A pressão da donzela sobe às alturas. Nunca tivera aperto no
peito semelhante a este em toda a sua ignorante vida. Retorna
cabisbaixa e avisa que há na porta dois homens que exigem a presença
deles. Desembesta para a cozinha derramada em lágrimas.
Os
investigadores ali estão com ordens expressas para levar um dos sete
filhos do casal. A mãe adianta-se trêmula. Em nome do que é mais
sagrado, como podem cometer tamanha insanidade? O oficial mais
graduado assegura que tudo lhes será explicado no justo e devido
tempo. Que procurem o padre tal no prédio da Santa Inquisição e é
só. – A criança, por favor. E diante de eventual gesto de revolta
avisa que não desejam usar da força bruta. Ah, que não preparassem
nenhuma mala com pertences, o menino sairá dali apenas com a roupa
do corpo, tudo o mais lhe será acrescentado no seminário.
Naquela
mesma tarde, uma quarta-feira de tempo bom, pai e mãe vêm-se diante
de um clérigo que, impassível lhes murmura explicações. Deus
escreve certo por linhas tortas. A criança fora batizado
secretamente pela empregada. - Sem sombra de qualquer dúvida ou
pretexto para apelação, ele é católico e, nossas por leis, diante
do Altíssimo, não poderá ser criado ou educado por judeus. O que
está feito, feito está. Resignem-se e vivam em paz. Glória a Deus.
Faz um longa pausa, parece pronunciar fervorosos trechos de alguma
oração forte. Lentamente, levanta a cabeça, abre os olhos e diz
que existe uma solução. Qual, querem saber. Conversão da família
ao cristianismo. Nunca foi a resposta impronunciada mas subtendida
quando dão as costas e saem dispostos a mover mundos e fundos para
anularem aquela infâmia.
–
Meu medo é que ele fosse para o inferno. Disse a empregada,
soterrada de remorsos e impropérios. Os patrões não estavam em
casa e o pobrezinho ficou doente de repente. Pensei que ele fosse
morrer, entrei em desespero e não vi outro jeito senão salpicar
algumas gotas de água daquele balde na cabeça dele e dizer as
palavras mágicas… A culpa é da minha prima, linguaruda. Tudo para
agradar o confessor. Deus me perdoe mas tudo que eu quis e quero é o
bem do menino, acreditem.
–
Também tens culpa no cartório, disse a esposa, ao recusar o natural
encontro dos corpos no leito que mais parecia uma cama de espinhos.
Se não tivesses contratado a católica, se não tivesse insistido
que tinha que ser alguém que pudesse trabalhar no sabbat, hoje
estaríamos livres desta injusta agonia.
Entre
a cruz e menorah, as manchetes criam trincheiras: Família
amorosa levada à ruína pelo fanatismo religioso do papa; Papa adota
criança e a coloca ao lado dos santos. Para alguns, ótimo momento
para criar um ambiente de desestabilização daquele longevo e
anacrônico poder. Para outros, afirmação de que velhos métodos e
costumes continuam atuantes e vigorosos.
O
tempo passa e nem com a morte de Pio IX, o primeiro pontífice a ser
fotografado, o menino retorna à casa de origem. A família bem que
tenta, políticos poderosos bem que ajudam mas, nada é capaz de
abalar os pressupostos irredutíveis da dominância religiosa.
Perdido
entre dívidas e dúvidas, o pai vê-se envolvido numa acusação de
assassinato de outra empregada. Inocentado do crime mas abalado com
as injúrias, não resiste e morre antes de ver o filho Edgardo
ordenado sacerdote agostiniano, quinze anos depois, com grandes
honras, reconciliado com a mãe mas nunca com os irmãos.
História forte. De usn tempos que não sei se acabaram.
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