sábado, 13 de fevereiro de 2016

Mãos Limpas

Blood On Our Hands, Joan Snyder, 2003



Somos o viajante e a viagem,
a felicidade e o desespero,
o problema e a solução.
Humberto Mariotti, médico


A luz da vela tremeluzia em sintonia com os pensamentos do jovem assistente da Primeira Clínica Obstetrícia do Hospital Geral de Viena, às voltas com dúvidas, contradições, questões de princípio, relatórios e regulamentos. No ano anterior, não conseguindo a vaga de professor numa notável instituição que desenvolvia pesquisas médicas, acabou sendo aceito numa das duas unidades da prestigiosa maternidade. Na primeira ala, as parturientes eram atendidas por médicos e na segunda por parteiras. Confrontado com uma altíssima taxa de mortalidade entre as parturientes da primeira unidade, observou que a proporção superava, em média, seis vezes o da segunda. Claro havia uma relação de causa e efeito entre a falta de asseio dos médicos e enfermeiras e aquele número assombroso de óbitos. Mas que nada. Talvez as mulheres morram por conta do pudor. Quem sabe algum estudante tenha exagerado no toque. Não, o problema era que a direção do hospital não reconhecia os estudos de Ignác Semmelweis como válidos. Agravado pelo fato dele não ser nativo da Áustria, mas um imigrante húngaro. Mesmo sabotado, derrubou a tese de que a questão das infecções estava relacionada a condições atmosféricas telúricas. Com ajuda do seu mentor, professor Kolletschka, da Medicina Legal, afixou no quadro de avisos que todo estudante ou médico seria obrigado, antes de entrar nas salas da clínica obstetrícia, a lavar as mãos, com uma solução de ácido clórico, na bacia colocada na entrada. A despeito de ter gerado resultados benéficos – a taxa de mortalidade caiu significativamente após estes primeiros cuidados, a maioria dos médicos achou aquilo uma quebra de hierarquia. Médicos devem assemelhar-se a anjos, impecáveis como nuvens num dia de verão, repetia pelos corredores. Mas se não aceitassem lavar as mãos, quem os obrigaria a trocar o avental, típico de açougueiro, quando saiam das suas aulas de anatomia, de suas concorridas autópsias e dissecações direto para a sala de parto? Não desistiria, era preciso criar barreiras sanitárias. Onde existe sujeira existe dinheiro pode ser aplicado às fábricas jamais a um hospital.

Após a morte do amigo, aconteceu o fim do mundo, em pleno 1847. De onde vinha a autoridade pretendida pelo jovem Semmelweis, gritaram os luminares. Quer dizer que agora qualquer um tem algo importante para dizer? Como se atrevia? Insurgir-se, propor mudança de métodos – práticas exaustivamente comprovadas por anos de experiência e observação? Que se recolhesse à sua insignificância ou medidas drásticas seriam tomadas em nome da preservação da ordem, dos costumes e a hierarquia. E que todas as comunicações, todos seus estudos, planos, análises e solicitações fossem arquivadas e esquecidas. Assepsia, pois sim. Era do conhecimento do mundo científico que não se deve lavar demais a pele. O efeito da fricção constante sobre a epiderme pode acarretar rompimento dos vasos sanguíneos e as consequentes lesões podem ocasionar a morte. Tinham dito.

Insiste, é demitido. Retorna à Hungria. Escreve, fala, pede, implora. Chega até a abordar casais na rua, em lágrimas, para pedir-lhes que exijam que os médicos e enfermeiras lavem as mãos na hora do parto. Lamenta o quanto é difícil alcançar o bom senso, que tendemos a seguir trabalhando no sentido da nossa própria destruição, que Tânatos atua justamente naquilo que mais nos orgulhamos: nossa racionalidade, nossa intelectualidade, em tudo aquilo que se opõe ao que temos de mais natural e criativo. Sozinho sem ter com quem dialogar, perde-se no tremeluzir na luz do bico de gás tal qual uma mariposa. Resignado, deixa-se mergulhar na espiral sem volta e, numa manhã fria de novembro de 1865, transforma-se em nuvem.  


Nenhum comentário:

Postar um comentário