Brazil, Keith Haring, 1989
Nossa
fé protestante é capaz de produzir milagres
Lutero
Em 1557, o Brasil ainda vivia sob sigilo. Sem que
a coroa portuguesa pudesse controlar, vazou na Alemanha uns relatos
na forma de livro. A História Verdadeira e Descrição de
uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos,
Situada no Novo Mundo da América de
autoria do mercenário alemão Hans Staden. Se
desconsiderarmos
as cartas do Américo Vespúcio sobre o Novo
Mundo,
este foi o primeiro
livro impresso a
mostrar
os usos e costumes do nosso povo nativo,
com ênfase naquilo
que havia de pior. A
considerar que é o que vende, de lá pra cá pouco ou quase nada
mudou.
Hans Staden
beirou
um ano cativo
dos Tupinambás, no
litoral paulista.
Marinheiro de duas
viagens, a primeira ao nordeste, onde,
exímio manipulador
de canhões, lutou a
soldo do governador-geral Duarte da Costa, ao
lado de cento e vinte combatentes, na
defesa da fortaleza Igaraçu, em Pernambuco, contra cerca de oito mil
indígenas. Uma
vitória da coragem é
que não foi. Moço
gabola,
jamais entrou
no mérito de
que a tecnologia das
armas de fogo fez a diferença.
Aventureiro,
queria mesmo se dar bem. Como
era e é de praxe, se vendia a
quem pagasse
mais. Porém,
a sorte lhe foi
madrasta. Naufragou
ali por Itanhaém
quando buscava
alcançar Assunção,
no Paraguai, com
o sonho de achar
ouro. Viajava no
rumo, seguindo
relatos fantásticos e nada confiáveis, farejando
uma vaga esperança.
Desta forma, o
que conseguiu foi engrossar
o
enorme contingente dos deserdados pela
vida.
Capturado
pelos índios
num verdadeiro estado de penúria quando
se aproximava de São Vicente,
foi levado à
Bertioga, depois para Ubatuba, onde
ficou em regime de
engorda durante noves meses. De
acordo com algumas
línguas babonas,
fez de tudo para provar que não era um pero
(português) para
escapar ao
moquém. Segundo
outras,
ferinas,
cada vez que levado à
cerimônia de antropofagia, tremia-se
todo,
chorava feito
criança, se cagava,
breava-se todo…
Como era
costume comer apenas os valentes, o
rapaz
conseguiu uma
sobrevida. Tratado
como cão sarnento
pelas mulheres e crianças da tribo, foi
trocado por
bugigangas pelo capitão gaulês
Guillaume Moner, que
convenceu
o morubixaba de
que o prisioneiro era francês.
Podia
alguém ser
tão covarde? Teria perguntado
Cunhambebe. Ao que
nos consta, Moner
fez que não ouviu
e ofereceu um bônus
de mais alguns
espelhos e pentes ao
velho cacique, certo
de ter realizado um ato de caridade cristã.
De volta à
Alemanha, Staden foi
trabalhar como operário numa fábrica de pólvora.
O que agravou-lhe
a
miséria. Carregava
uma carta na manga,
porém.
Ao contrário da
maioria dos seus
compatriotas preocupados
com a Reforma e
a própria salvação,
tinha uma
história fantástica
para vender. Se
conseguisse publicar
os relatos das suas
duas viagens certamente
sua sorte
mudaria. Mexeu
daqui, mexeu
dali, logo apareceu
o gráfico Andreas
Kolbe, respeitado publicador de folhetos religiosos que
vivia assim
assado, sem grandes
perceptivas além
de sonhar
com altos
e gordos dividendos,
doidinho
para publicar alguma
coisa que causasse
impacto, que bombasse
no mercado editorial numa
época em que a
norma era:
apenas
rico o sujeito
garante
seu lugar no céu. Ganhava
corpo a tese de que
pobreza era sinal de
danação e que,
para fugir do
capiroto,
haviam
de
legitimar a usura
e que
nos viesse o
Leviatã.
Juntou
a fome com a vontade de comer.
Quando acabou
de ler os
manuscritos
de Staden, Andreas
cheirou final feliz,
tinha nas
mãos senão
a gansa ao menos uma
autêntica galinha
dos ovos de ouro. Depressa,
chamou Johann
Eichmann, professor de anatomia na Universidade de Marburg,
que por
ser uma respeitada
autoridade acadêmica, encarregou-se
de escrever
um prefácio,
onde explicou
ao público alemão porque
a história de Staden
era
verdade e
ainda afirmou conhecer
o pai do autor – o
que atestou a
reputação do escritor
aventureiro. Nos
cálculos de Kolbe, isto
abria
grandes
possibilidades
mercadológicas.
E como naquela ocasião
(talvez ainda hoje)
ninguém fazia a
menor ideia do que era ou
onde ficava o
Brasil, um livro que
falasse de um povo
nu, selvagem e comedor de gente
tinha tudo para estourar a
boca do balão. Além
do mais, notaram-lhe
uma mensagem
religiosa claríssima:
o periclito de um
indivíduo que havia
escapado
das garras de
satanás graças à
fé protestante. Ser
usado como poderosa
arma na
guerra era mais uma
chance de engordar o cofre…
do editor.
Livro
maravilhoso, ao
atiçar
a imaginação e oferecer
alguns instantes emocionalmente excitantes, logo
esgotou-se
numa
segunda edição de três mil exemplares, gerando
uma renda
considerável. E
como Deus
escreve certo por linhas tortas, o
pobre Hans na merda
estava na bosta
se firmou.
Jamais
lhe fora transferido
qualquer centavo relativo a direitos autorais.
Acabou por aceitar
seu destino, não
lhe restando saída senão
um casamento
de conveniência. E
foi só. Atacado por
uma praga, morreu em 1576, perebento
de dar dó a gritar pra quem quisesse ouvir: Não
fui comido lá pra ser devorado aqui.
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