sábado, 20 de fevereiro de 2016

A Vera Aventura Do Que Escapou Dos Canibais Para Cair Nas Garras do Mercado


Brazil, Keith Haring, 1989


Nossa fé protestante é capaz de produzir milagres
Lutero


Em 1557, o Brasil ainda vivia sob sigilo. Sem que a coroa portuguesa pudesse controlar, vazou na Alemanha uns relatos na forma de livro. A História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América de autoria do mercenário alemão Hans Staden. Se desconsiderarmos as cartas do Américo Vespúcio sobre o Novo Mundo, este foi o primeiro livro impresso a mostrar os usos e costumes do nosso povo nativo, com ênfase naquilo que havia de pior. A considerar que é o que vende, de lá pra cá pouco ou quase nada mudou.

Hans Staden beirou um ano cativo dos Tupinambás, no litoral paulista. Marinheiro de duas viagens, a primeira ao nordeste, onde, exímio manipulador de canhões, lutou a soldo do governador-geral Duarte da Costa, ao lado de cento e vinte combatentes, na defesa da fortaleza Igaraçu, em Pernambuco, contra cerca de oito mil indígenas. Uma vitória da coragem é que não foi. Moço gabola, jamais entrou no mérito de que a tecnologia das armas de fogo fez a diferença.

Aventureiro, queria mesmo se dar bem. Como era e é de praxe, se vendia a quem pagasse mais. Porém, a sorte lhe foi madrasta. Naufragou ali por Itanhaém quando buscava alcançar Assunção, no Paraguai, com o sonho de achar ouro. Viajava no rumo, seguindo relatos fantásticos e nada confiáveis, farejando uma vaga esperança. Desta forma, o que conseguiu foi engrossar o enorme contingente dos deserdados pela vida.

Capturado pelos índios num verdadeiro estado de penúria quando se aproximava de São Vicente, foi levado à Bertioga, depois para Ubatuba, onde ficou em regime de engorda durante noves meses. De acordo com algumas línguas babonas, fez de tudo para provar que não era um pero (português) para escapar ao moquém. Segundo outras, ferinas, cada vez que levado à cerimônia de antropofagia, tremia-se todo, chorava feito criança, se cagava, breava-se todo Como era costume comer apenas os valentes, o rapaz conseguiu uma sobrevida. Tratado como cão sarnento pelas mulheres e crianças da tribo, foi trocado por bugigangas pelo capitão gaulês Guillaume Moner, que convenceu o morubixaba de que o prisioneiro era francês. Podia alguém ser tão covarde? Teria perguntado Cunhambebe. Ao que nos consta, Moner fez que não ouviu e ofereceu um bônus de mais alguns espelhos e pentes ao velho cacique, certo de ter realizado um ato de caridade cristã.

De volta à Alemanha, Staden foi trabalhar como operário numa fábrica de pólvora. O que agravou-lhe a miséria. Carregava uma carta na manga, porém. Ao contrário da maioria dos seus compatriotas preocupados com a Reforma e a própria salvação, tinha uma história fantástica para vender. Se conseguisse publicar os relatos das suas duas viagens certamente sua sorte mudaria. Mexeu daqui, mexeu dali, logo apareceu o gráfico Andreas Kolbe, respeitado publicador de folhetos religiosos que vivia assim assado, sem grandes perceptivas além de sonhar com altos e gordos dividendos, doidinho para publicar alguma coisa que causasse impacto, que bombasse no mercado editorial numa época em que a norma era: apenas rico o sujeito garante seu lugar no céu. Ganhava corpo a tese de que pobreza era sinal de danação e que, para fugir do capiroto, haviam de legitimar a usura e que nos viesse o Leviatã.

Juntou a fome com a vontade de comer. Quando acabou de ler os manuscritos de Staden, Andreas cheirou final feliz, tinha nas mãos senão a gansa ao menos uma autêntica galinha dos ovos de ouro. Depressa, chamou Johann Eichmann, professor de anatomia na Universidade de Marburg, que por ser uma respeitada autoridade acadêmica, encarregou-se de escrever um prefácio, onde explicou ao público alemão porque a história de Staden era verdade e ainda afirmou conhecer o pai do autor – o que atestou a reputação do escritor aventureiro. Nos cálculos de Kolbe, isto abria grandes possibilidades mercadológicas. E como naquela ocasião (talvez ainda hoje) ninguém fazia a menor ideia do que era ou onde ficava o Brasil, um livro que falasse de um povo nu, selvagem e comedor de gente tinha tudo para estourar a boca do balão. Além do mais, notaram-lhe uma mensagem religiosa claríssima: o periclito de um indivíduo que havia escapado das garras de satanás graças à fé protestante. Ser usado como poderosa arma na guerra era mais uma chance de engordar o cofre do editor.

Livro maravilhoso, ao atiçar a imaginação e oferecer alguns instantes emocionalmente excitantes, logo esgotou-se numa segunda edição de três mil exemplares, gerando uma renda considerável. E como Deus escreve certo por linhas tortas, o pobre Hans na merda estava na bosta se firmou. Jamais lhe fora transferido qualquer centavo relativo a direitos autorais. Acabou por aceitar seu destino, não lhe restando saída senão um casamento de conveniência. E foi só. Atacado por uma praga, morreu em 1576, perebento de dar dó a gritar pra quem quisesse ouvir: Não fui comido lá pra ser devorado aqui.





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