sábado, 6 de fevereiro de 2016

Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo


Crianças, Dilek Demirci, 2009



Existe criança judia?
E criança católica, protestante, muçulmana…?
Criança é criança e basta.



O dia está claro. O sargento da polícia anda imerso em dúvidas porém, quando chega diante do número… na rua… em Bolonha, Estado Papal, disciplinadamente bate três vezes. Tempos bicudos, aqueles. A Igreja Católica sofre alguns abalos, muitas ameças. Até o Imperador, quem diria! O Cardeal fora enfático: é hora de dar o troco. O que farão com o menino? O policial controla-se e aceita que não importa, sua missão é pegar a criança e entregá-la ao Catecúmeno.

A empregada abre a porta. Os Mortara aguardam curiosos na sala de estar. A pressão da donzela sobe às alturas. Nunca tivera aperto no peito semelhante a este em toda a sua ignorante vida. Retorna cabisbaixa e avisa que há na porta dois homens que exigem a presença deles. Desembesta para a cozinha derramada em lágrimas.

Os investigadores ali estão com ordens expressas para levar um dos sete filhos do casal. A mãe adianta-se trêmula. Em nome do que é mais sagrado, como podem cometer tamanha insanidade? O oficial mais graduado assegura que tudo lhes será explicado no justo e devido tempo. Que procurem o padre tal no prédio da Santa Inquisição e é só. – A criança, por favor. E diante de eventual gesto de revolta avisa que não desejam usar da força bruta. Ah, que não preparassem nenhuma mala com pertences, o menino sairá dali apenas com a roupa do corpo, tudo o mais lhe será acrescentado no seminário.

Naquela mesma tarde, uma quarta-feira de tempo bom, pai e mãe vêm-se diante de um clérigo que, impassível lhes murmura explicações. Deus escreve certo por linhas tortas. A criança fora batizado secretamente pela empregada. - Sem sombra de qualquer dúvida ou pretexto para apelação, ele é católico e, nossas por leis, diante do Altíssimo, não poderá ser criado ou educado por judeus. O que está feito, feito está. Resignem-se e vivam em paz. Glória a Deus. Faz um longa pausa, parece pronunciar fervorosos trechos de alguma oração forte. Lentamente, levanta a cabeça, abre os olhos e diz que existe uma solução. Qual, querem saber. Conversão da família ao cristianismo. Nunca foi a resposta impronunciada mas subtendida quando dão as costas e saem dispostos a mover mundos e fundos para anularem aquela infâmia.

Meu medo é que ele fosse para o inferno. Disse a empregada, soterrada de remorsos e impropérios. Os patrões não estavam em casa e o pobrezinho ficou doente de repente. Pensei que ele fosse morrer, entrei em desespero e não vi outro jeito senão salpicar algumas gotas de água daquele balde na cabeça dele e dizer as palavras mágicas… A culpa é da minha prima, linguaruda. Tudo para agradar o confessor. Deus me perdoe mas tudo que eu quis e quero é o bem do menino, acreditem.

Também tens culpa no cartório, disse a esposa, ao recusar o natural encontro dos corpos no leito que mais parecia uma cama de espinhos. Se não tivesses contratado a católica, se não tivesse insistido que tinha que ser alguém que pudesse trabalhar no sabbat, hoje estaríamos livres desta injusta agonia.

Entre a cruz e menorah, as manchetes criam trincheiras: Família amorosa levada à ruína pelo fanatismo religioso do papa; Papa adota criança e a coloca ao lado dos santos. Para alguns, ótimo momento para criar um ambiente de desestabilização daquele longevo e anacrônico poder. Para outros, afirmação de que velhos métodos e costumes continuam atuantes e vigorosos.

O tempo passa e nem com a morte de Pio IX, o primeiro pontífice a ser fotografado, o menino retorna à casa de origem. A família bem que tenta, políticos poderosos bem que ajudam mas, nada é capaz de abalar os pressupostos irredutíveis da dominância religiosa.

Perdido entre dívidas e dúvidas, o pai vê-se envolvido numa acusação de assassinato de outra empregada. Inocentado do crime mas abalado com as injúrias, não resiste e morre antes de ver o filho Edgardo ordenado sacerdote agostiniano, quinze anos depois, com grandes honras, reconciliado com a mãe mas nunca com os irmãos.  


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