sábado, 25 de outubro de 2014

O Homem de Olhos Vermelhos


The Plague, Arnold Böcklin, 1898


Yu é um velho assustado. Caminha arrastando seus enormes testículos. Horrivelmente magro, sem nenhum fio de cabelo no corpo, queixa-se do eterno cansaço. O velho Yu é um laibon: quem deveria construir pontes entre o céu e a terra. Mas Yu vive separado da sua aldeia. E bem longe da caverna onde um dia entrou para recolher guano e usar como fertilizante na sua lavoura.

Engai tudo dá, mas ele não gosta quando a gente pega coisa sem permissão. Neterkob foi criado pra isso. Pra ajudar na ponte. Mas Yu não tem forças e agora tem que carregar seu corpo feio por aí”.

Na fronteira entre o Quênia e a Tanzânia, chovem histórias sobre homens que expelem sangue por todos os orifícios do corpo até a morte. Histórias que Yu desdenhou. Ali todos sabem que nas entranhas da montanha Kitum moram milhares de espíritos ruins que gostam de roubar a seiva e a alma humana. Yu pode ter escapado da terrível morte mas paga um alto preço por ter tocado naquela merda sagrada.

“O pequeno virá destruir o grande”.

Nas profundezas do tempo, algo aconteceu. Algo invisível despertou no fundo da caverna fria, escura e úmida. Algo foi morar nos intestinos dos resistentes morcegos. Um minúsculo filamento capaz de codificar sete proteínas, dotado de mecanismo que engana o sistema imunológico dos organismos que infecta, nasceu. Mas não nasceu do nada. Desde muito estava dito que algo viria combater o mal que viceja na superfície do planeta.

“Seriam os estrangeiros? Será por isso que Engai e Olapa detestam estranhos. Pois é, os forasteiros chegaram com suas máquinas. Máquinas famintas. Máquinas que arrastaram árvores que arrastaram terra que arrastaram bichos... Máquinas que fazem feridas no corpo da terra... Máquinas que despertam demônios... "

O homem de olhos vermelhos caminha entre o vivo e morto. O homem de olhos vermelhos não chega a ser um homem. É uma coisa. Um passado tenebroso. Yu nunca o viu, mas sabe que está próximo. Chegará a qualquer momento. Yu não tem medo mas pensa que se pudesse voltar…

“Agora compreendo a raiva de Engai. O espírito ruim veio roubar a beleza dos masai”. 

Diante da fogueira, Yu busca iniciar uma conversa com a sombra da sombra de Neterkob. Mas percebe que é tarde. Neterkob não o ouve mais. Neterkob partiu. Todos partiram. Até as vacas. Só sobrou Yu e o homem dos olhos vermelhos. E o encontro será inevitável. A Yu resta aguardar o acerto das contas finais.


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