The Moon Dog
Rufino Tamayo
1973
Faziam por diversão,
era engraçado. O dia perfeito era sexta, mas podia acontecer em
qualquer dia da semana desde que dois deles estivessem sem nada pra
fazer. Isso a partir de quando, meninos ainda, moradores na mesma
rua, decidiram fazer a primeira experiência com um gato malhado que
perambulava nas redondezas. Acostumado a filar livremente a boia ora
aqui ora acolá, foi fácil armarem uma arapuca no caminho do felino.
O bichano, diga-se, por conta da velhice ou por não ser lá muito
esperto ou talvez pela ausência do olho esquerdo, caiu feito um
patinho no surrado golpe de um nem tão apetitoso petisco. Porém uma
vencida sardinha, encontrada esquecida numa lata no fundo da
geladeira da casa daquele que mais tarde se revelou o cérebro por
trás das muitas e cruéis traquinagens, é sempre uma sardinha. O
pobre miau sobreviveu ao ensaio, mas pelo tempo que lhe restou de
miserável não mais vagabundeou, nunca mais olhou de frente para
qualquer ser humano, preferindo se confundir com as margens plácidas
dos riachos poluídos que cortam a cidade a lamber suas numerosas,
profundas e pútridas feridas.
Mas eis que o grupo
cansou dessas pequenas travessuras e resolveu encarar coisas mais
sérias. Abandonaram os pequenos animais. Começaram a encarar os de
grande porte. E daí para o bicho homem foi um pulo. E não direi que
a passagem foi tranquila, como sói acontecer com projetos de grande
envergadura. Não, o novo objetivo exigiu deles um extenso e
exaustivo aprimoramento técnico. Por conta principalmente da
logística necessária que os permitisse perseverar naquele esporte.
Sempre buscando os mais fragilizados, conseguiram realizar caçadas
das quais se orgulhavam e costumavam ilustrar suas conferências nas
constantes horas felizes. Prostitutas, homossexuais, velhos, índios,
negros, aleijados, mendigos, sem-teto… Consistiam suas presas
favoritas. Pela quantidade e disponibilidade. Podiam ser encontrados
em qualquer lugar e a qualquer hora e o mais importante: ninguém
jamais reclamaria a falta.
As onze e dez, o
telefone tocou. Combinaram o encontro para dali a meia hora, na Praça
da Matriz. Seria uma daquelas noites em que o time estaria completo.
Naquela noite, a orquestra faria soar o instrumento favorito de cada.
Ocasião de demonstrar perícia e sabedoria nas respectivas especialidades
aprimoradas ao longo de mais de duas décadas de prática e estudo.
Gozaram antecipadamente ao constatarem que aquela seria uma noite
diferente, talvez uma noite memorável. Haviam finalmente acertado
que era hora de deixarem uma marca, de anunciar o partido ao mundo.
Era chegada à hora da grande revelação, o dia do requinte, onde
todo o know-how acumulado seria aplicado num único escolhido:
aquela figura com o cabelo tingido de fogo, envolto em tanta sujeira
que era impossível lhe discernir as feições, logo ali à sombra de
uma marquise, a acariciar seu ensebado cão. Estavam de olho nele
fazia dias. Tinham catalogado hábitos, trajetos e companhias.
Finalmente o encontraram só. Bastava apenas que a armadilha
funcionasse. E funcionou perfeitamente. O homem – era um homem? -
caiu na cantada: uma noite de sexo, drogas e rock n’rool. Mas o cão
não. Rosnou desconfiado enquanto o amigo disse quieto e ele obedeceu
e ficou a olhar o estranho sexteto, entre risadas e galhofas, sumir
no fim da rua escura. Esperou sentado nas patas traseiras. Aguardou
sem mover um músculo. E o assobio veio. Longo e agudo, depois
trinado. Esgueirando-se, colado à penumbra, no sobe e desce das ruas
tortuosas, o cão seguiu seu faro até um descampado, lá no fim dos
trilhos da linha de ferro. Escondido entre as montanhas de sucata e
lixo industrial, em meio as dezenas de armazéns fantasmas, assistiu
os últimos e dilacerantes instantes do companheiro. Se fosse humano,
teria vomitado, mas como era cão lhe ocorreu uivar, porém
conteve-se para não atrair para si a ira daquele inesquecível
quinteto com suas horripilantes manobras para extrair do homem sons e
expressões inimagináveis. Após o festim, acompanhou-os na
despedida da noite e gravou de cada um o local exato de morada.
Quase manhã
quando o cão conseguiu a atenção de praticamente toda a população
de sarnentos da cidade, reunidos através de uma vasta rede de
comunicação que chegou a incluir alguns ratos, pombos e milhares de
baratas. Lá no ermo onde o camarada tinha sido dopado, torturado,
esfolado, empalado, esquartejado, triturado e transformado em pó,
diante de uma sôfrega plateia, o cão latiu sua indignação e
revolta. E todos farejaram o ar em busca dos ignóbeis vestígios. E
quem podia uivar, uivou em uníssono uma raiva e angústia que fez a
lua estremecer de pavor. Dali, por cinco fartas madrugadas, e daí em
diante, o cão e seus incontáveis e variados parceiros, não
precisaram mais remexer o lixo em busca de alimento, afinal agora
sabiam onde encontrar comida, a suculenta carne com a qual podiam
encher suas panças como nunca sonharam em suas vidas.
São revelam mesmo.
ResponderExcluirPor isso, são tão espertos!