sábado, 11 de outubro de 2014

Os Cães Não Revelam Seus Sonhos


The Moon Dog
Rufino Tamayo
1973

Faziam por diversão, era engraçado. O dia perfeito era sexta, mas podia acontecer em qualquer dia da semana desde que dois deles estivessem sem nada pra fazer. Isso a partir de quando, meninos ainda, moradores na mesma rua, decidiram fazer a primeira experiência com um gato malhado que perambulava nas redondezas. Acostumado a filar livremente a boia ora aqui ora acolá, foi fácil armarem uma arapuca no caminho do felino. O bichano, diga-se, por conta da velhice ou por não ser lá muito esperto ou talvez pela ausência do olho esquerdo, caiu feito um patinho no surrado golpe de um nem tão apetitoso petisco. Porém uma vencida sardinha, encontrada esquecida numa lata no fundo da geladeira da casa daquele que mais tarde se revelou o cérebro por trás das muitas e cruéis traquinagens, é sempre uma sardinha. O pobre miau sobreviveu ao ensaio, mas pelo tempo que lhe restou de miserável não mais vagabundeou, nunca mais olhou de frente para qualquer ser humano, preferindo se confundir com as margens plácidas dos riachos poluídos que cortam a cidade a lamber suas numerosas, profundas e pútridas feridas.
Mas eis que o grupo cansou dessas pequenas travessuras e resolveu encarar coisas mais sérias. Abandonaram os pequenos animais. Começaram a encarar os de grande porte. E daí para o bicho homem foi um pulo. E não direi que a passagem foi tranquila, como sói acontecer com projetos de grande envergadura. Não, o novo objetivo exigiu deles um extenso e exaustivo aprimoramento técnico. Por conta principalmente da logística necessária que os permitisse perseverar naquele esporte. Sempre buscando os mais fragilizados, conseguiram realizar caçadas das quais se orgulhavam e costumavam ilustrar suas conferências nas constantes horas felizes. Prostitutas, homossexuais, velhos, índios, negros, aleijados, mendigos, sem-teto… Consistiam suas presas favoritas. Pela quantidade e disponibilidade. Podiam ser encontrados em qualquer lugar e a qualquer hora e o mais importante: ninguém jamais reclamaria a falta.
As onze e dez, o telefone tocou. Combinaram o encontro para dali a meia hora, na Praça da Matriz. Seria uma daquelas noites em que o time estaria completo. Naquela noite, a orquestra faria soar o instrumento favorito de cada. Ocasião de demonstrar perícia e sabedoria nas respectivas especialidades aprimoradas ao longo de mais de duas décadas de prática e estudo. Gozaram antecipadamente ao constatarem que aquela seria uma noite diferente, talvez uma noite memorável. Haviam finalmente acertado que era hora de deixarem uma marca, de anunciar o partido ao mundo. Era chegada à hora da grande revelação, o dia do requinte, onde todo o know-how acumulado seria aplicado num único escolhido: aquela figura com o cabelo tingido de fogo, envolto em tanta sujeira que era impossível lhe discernir as feições, logo ali à sombra de uma marquise, a acariciar seu ensebado cão. Estavam de olho nele fazia dias. Tinham catalogado hábitos, trajetos e companhias. Finalmente o encontraram só. Bastava apenas que a armadilha funcionasse. E funcionou perfeitamente. O homem – era um homem? - caiu na cantada: uma noite de sexo, drogas e rock n’rool. Mas o cão não. Rosnou desconfiado enquanto o amigo disse quieto e ele obedeceu e ficou a olhar o estranho sexteto, entre risadas e galhofas, sumir no fim da rua escura. Esperou sentado nas patas traseiras. Aguardou sem mover um músculo. E o assobio veio. Longo e agudo, depois trinado. Esgueirando-se, colado à penumbra, no sobe e desce das ruas tortuosas, o cão seguiu seu faro até um descampado, lá no fim dos trilhos da linha de ferro. Escondido entre as montanhas de sucata e lixo industrial, em meio as dezenas de armazéns fantasmas, assistiu os últimos e dilacerantes instantes do companheiro. Se fosse humano, teria vomitado, mas como era cão lhe ocorreu uivar, porém conteve-se para não atrair para si a ira daquele inesquecível quinteto com suas horripilantes manobras para extrair do homem sons e expressões inimagináveis. Após o festim, acompanhou-os na despedida da noite e gravou de cada um o local exato de morada.
Quase manhã quando o cão conseguiu a atenção de praticamente toda a população de sarnentos da cidade, reunidos através de uma vasta rede de comunicação que chegou a incluir alguns ratos, pombos e milhares de baratas. Lá no ermo onde o camarada tinha sido dopado, torturado, esfolado, empalado, esquartejado, triturado e transformado em pó, diante de uma sôfrega plateia, o cão latiu sua indignação e revolta. E todos farejaram o ar em busca dos ignóbeis vestígios. E quem podia uivar, uivou em uníssono uma raiva e angústia que fez a lua estremecer de pavor. Dali, por cinco fartas madrugadas, e daí em diante, o cão e seus incontáveis e variados parceiros, não precisaram mais remexer o lixo em busca de alimento, afinal agora sabiam onde encontrar comida, a suculenta carne com a qual podiam encher suas panças como nunca sonharam em suas vidas.


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