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sábado, 9 de novembro de 2013

Lendas Urbanas - 10. O Velho do Saco


Google Imagens



A certeza de monstros a serviços dos pais é a quantidade de criatura de cera”.

Mabel Laboratov, (1896-1974)
In Teoria e Prática do Bom Senso
Volume IV, pg.746, 1ª Edição
Cortez & Alba, 1956


Estava a mãe naqueles dias. O corpo: um peso, um fardo, um ônus. A alma: uma ardência, uma ausência, um buraco sem fim. E as crianças pra lá e pra cá. Pressão e fervura. Nestas horas não há remédio senão…

– Era uma vez, um velho… Bem velho, decadente, sujo… Com um saco nas costas.
– Papai Noel?
– Não, Leon, Papai Leon.
– O que ele faz?
– Carrega crianças desobedientes para bem longe.
– O porteiro falou que existe um velho que rouba crianças que saem de suas casas sem um adulto.
– E ele faz o que com as crianças?
– Sabão e botões.
– Não quero virar sabão.
– Socorro, mãezinha.
– Bem, hoje não amarrarei uma fita vermelha no pé da cama de vocês.

Naquela noite a mãe foi dormir com um vulcão na cabeça. Quem disse que conseguiu dormir. No dia seguinte, aqueles dias estavam piores. O corpo e alma daquele jeitinho. E as crianças pra lá e pra cá.

– Era uma vez, um velho… Bem velho, decadente, sujo… Com um saco nas costas.
– Papai Leon?
– O próprio.
– Não gosto dele.
– Ele também não gosta de crianças desobedientes.
– Não sou desobediente.
– Só quando não me desobedecem.
– Estou desobedecendo agora?
– Agora não, mas…
– A professora falou que os anjos não gostam de gente que vai dormir com raiva.

Mais uma vez a mãe foi dormir. Lava escorrendo pelos buracos da face. E mais uma noite longe de dormir. No dia seguinte, não sentiu o corpo e não sentiu a alma enquanto as crianças pulavam daqui pra lá e de lá pra cá.

– Era uma vez, um velho… Bem velho, decadente, sujo… Com um saco nas costas.
– Esse velho existe mesmo?
– Claro, seu bobo… O que você acha que aconteceu com o filho da professora?
– Ele foi morar com a vó no interior, sua descerebrada.
– Não sou não.
– É sim, um zumbi comeu teu cérebro.
– Chega.
– Foi ela quem começou.
– Mentira, foi ele.

Apesar das marteladas, das adagas afiadas, da pressão e da fervura, a mãe foi dormir mais uma vez pensando que dormiria porém, quando estava quase agarrada ao sono, uma mão suja e fedida a sufocou. Quando conseguiu respirar estava dentro de um saco em meio a uma gente que, por não saber o que lhes sucedia, andava pra lá e pra cá, derretendo-se por qualquer coisa. Aquela noite durou mais que uma simples noite. Durou mais que um instante, durou uma vida. Inteira. Teria durado mais não fossem mãozinhas aparecerem e a tirarem de lá. Quando abriu os olhos, seus dois anjinhos acarinhavam sua testa.

– Mamãe gritava. Viemos ajudar.

Abraçou-os e chorou. Achada. Nunca mais perdida. Não tanto quanto fora até aquele instante. Ainda era noite e lá fora, um velho sujo ajeitava um enorme saco nas costas, profundamente chateado.




sábado, 12 de outubro de 2013

Lendas Urbanas - 9. A Dupla Infernal



Tenacious D em: The Pick Of Destiny, 2006


Na goiana Vila da Pataca, encostadinha em Minas, os plantadores de tomates rasteiros, nas rodas de sábado na venda, mesmo quando fazem esforço não conseguem deixar de tocar no assunto que domina a região há mais de cinquenta anos, tempo de vida, pois, da maioria dos comensais: os dois meninos buchudos e catarrentos que, do dia pra noite (mais da noite que pro dia), de um jeito misterioso, viraram a maior dupla sertaneja desses brasis e que tais. Tal conto, pertinho de virar lenda, é parecido com um ou outro causo de mistagogia, que os compadres maçons costumam recitar quando querem deixar alguns indesejáveis, quase sempre boçais, do lado de fora de uma conversa. O negócio é que ninguém até hoje naquela bodega conseguiu descobrir quem foi que ensinou os dois mequetrefes a cantar daquele jeito, uma misturada grunhida tal e qual taquara rachada azeitada com o ramerrão da roda de carro de boi. Nenhuma alma viva daquela região assumira qualquer ascendência sobre ou sequer parentesco com aquele fenômeno. Donde é que aquilo tinha vindo, de que buraco tal aleivosia tinha nascido? Quem pariu Mateus? Todo mundo ali conhecia os dois malungos desde os cueiros, brincaram com eles, comeram do mesmo prato no eito, chuparam da mesma manga, beberam da mesma cacimba (alguns tinham até feito troca-troca)… Quando foi que a vida se tornou encruzilhada? Uns pra ali, outros pra cá, outros sei lá. Não havia um por ali que não apreciasse o melhor da música brasileira dos sertões, nos cantos aboiadores, nos repentes de tarefa ou de empreitada, nos versos satíricos e de folia, nas ladainhas santificadas de procissão e de novena… Porém, aquele modo de entoar era distante de todo e qualquer talento, destoava de tudo que era tradição. E mesmo assim, qual um feitiço tomara conta das mentes e corpos da juventude e, por incrível que pareça, das senhoras donas de casa e mães de família de tudo quanto é lugar. Que jugo era aquele? Nada naquela música dizia: é coisa de homem. Estava mais para um rebolar de trejeitos, um cacarejo pavoneador, uma tertúlia de salivas e líquidos corporais lambuzados com baba de moça e muita cachaça. Homem pra ser amado precisa macaquear sentimentos diante de mulher e daquele jeito? Onde é que andava a justiça do mundo numa hora daquela? De legítimo aquilo não tinha nada. Ali tinha dedo do sujo. Podiam ganhar rios de dinheiro, como de fato ganharam e ganhavam e ainda ganhariam, para comprar quantas fazendas quisessem, em qualquer estado desta esbórnia mas isto não tiraria jamais da cabeça de ninguém que naquele angu faltava azeitona. Tese parcialmente compartilhada pelo vigário, mesmo porque apadrinhara diante do divino as duas pobres criaturas quando crianças em mais pobre ainda idade agravado pelo fato de conseguir enxergar uma nesga de futuro através das boas e largas doações vinda agora do lado escuro da força assim denominada pelo pastor, que do alto do seu aparato político altamente mobilizado para as próximas eleições, proclamava: quem não anda com deus, anda com quem? Ao que o coro se arrepiava e mudava de assunto que aquilo não era hora de mexer com o que a gente não entende. Mas o que é mesmo que a gente não entende? Como é que aqueles dois saburrentos conseguiram fazer fortuna: isto é o que pega. Tem nada não. Mais dia menos dia, a verdade aparece.

E não é que tinham razão, um dia ela apareceu. E veio acompanhada. Era uma manhã como qualquer outra, todos estavam na lida como sempre, os cães tomavam sol na praça da matriz juntos a dois ou três desocupados como se tivessem vindo ao mundo para fazer exatamente o que faziam todo santo dia; o posto de saúde não despertava suspeitas de abrigar qualquer tipo de vida inteligente, embora corresse à boca pequena notícia de uma suposta invasão cubana, o que trazia certa apreensão à vila e adjacências, estresse maior que aquele causado pela última enchente que levou três quintos das propriedades pro lado ausente da vida e, como se não bastasse, depois de tantas desgraças – que parece não existir vasilha suficiente para contê-las e guardá-las, visto ser o mundo humano um vale de lágrimas e cavilações – aparece mais esta pra completar o quadro mais que sofrido desta gente escorraçada da sorte. Não é que logo ali, na esquina da barbearia, bem junto ao monumento cívico, do lado de lá da praça, no meio do único canteiro de flores daquele pacato e esquecido vilarejo, dois endiabradinhos, ruivos que nem chama de gasolina, nus tal e qual se vem ao mundo e ainda por cima com as vergonhas balançando, surgiram, olhos a fumegar rojões e as ventas arreganhadas a farejar fujões, batendo os pés fendidos nas gretas renhidas do chão cansado e poeirento enquanto gritavam, em praguejo, que dali não sairiam sem a sua (lá deles) justa paga: as almas da dupla sertaneja, prometida em tenra idade pelo próprio pai, já falecido, das criaturas. Deus nos acuda! O padre logo trouxe seu cordão de são francisco com seus cinco nós a lembrarem as cinco chagas de Cristo associadas às cinco virtudes do santo, um balde de água benta e uma estola novinha em folha, ricamente decorada com galões contrastantes com bordado e franja. O povo todo logo cercou o paço e após muito baraço e pregação não foi possível exorcizar os dois coisos que insistiam que dali não arredavam nem que chovesse canivete e ainda por cima exigiam a presença da dupla, a esta hora escondida e encolhida debaixo de cama da suntuosa mansão na fazenda Boa Esperança que, àquela altura dos acontecimentos de nada servia visto todos naquelas redondezas a terem perdido. Vira, mexe, negocia, conchava daqui e dali… Chegou-se a uma solução: ninguém perderia nada mas, uma coisa tinha que ficar patente: não se enrica em vão. Concordaram em deixar para as próximas gerações, numa salinha nos fundos da Câmara, a prova inconteste daquela assustadora verdade: o primeiro disco gravado pela famosa dupla. Lá, se botado pra tocar ao contrário a faixa quatro, em 78 rotações de qualquer vitrola, ouve-se o satânico acordo para quem tiver ouvidos pra ouvir em alto e bom som com eco estereofônico. Os danados se escafederam numa nuvem de mosquitos da dengue no lombo de duas vacas loucas e tudo voltou ao normal que ninguém é de ferro. Quem se deu bem foi o pastor que encontrou, no episódio, seu ovo de colombo e uma fonte de financiamento estável à sua candidatura vitoriosa a presidente da república.


sábado, 5 de outubro de 2013

Lendas Urbanas - 8. Boa Noite, Cinderela!


Malévola, Angelina Jolie, 2013



Vó Emília sabia das coisas. Nunca triscara um dedo num filho, não era adepta de castigo físico. Acreditava que espancar diminuía, senão anulava, a autoestima. Autodidata, desenvolvera um profundo senso ético e pedagógico, talvez pelo fato de ter nascido estrábica, corcunda e coxa. Nas suas rodas de histórias, após o jantar, num época em que a palavra era mais forte que a imagem, vovó, num ritual costumeiro, tinha sempre um acontecimento para ilustrar suas apreensões que só muito mais tarde, chegávamos a compreender. Recentemente, pouco antes de partir, rodeada dos netos, bisnetos e um trineto, não precisou bifurcar a língua para nos sacudir com mais uma das suas.

Finalmente sexta. Quem mora em cidade sabe do que estou falando. A perspectiva do final de semana equivale a uma carta de alforria – sensação de absoluta liberdade. E quando se é solteiro então, um mar de possibilidades se espraia. Um chopinho aqui, outro ali e o celular não para de trabalhar: conjecturas, buscas, acertos e revisões do roteiro pro sábado que se aproxima.

Sempre aberto as nuances que uma noite de sexta encerra, Adalberto sorveu mais um gole do energético e olhou em torno, certo de que, dali a pouco ela entraria e viria ao seu encontro com um sorriso de ninfa estampado na face de deusa. Rosto é tudo, afirmou. O corpo conta mas, se não tiver um rosto bonito, fica difícil. Qualquer ponto fora da curva chama muito a atenção. Quem vê cara, vê coração, sim senhor.

A turma tinha se separado, cada um seguindo o próprio instinto. Nada de caça em bando, isto era para amadores. Bando, só no dia seguinte ao confrontar as estratégias e resultados. Verdadeiro lobo solitário, Adalberto prostrou-se num dos cantos do balcão donde teria visão privilegiada, panorâmica. Dali, seria possível escolher o alvo e partir para o ataque com alguma vantagem sobre os concorrentes. Mas estava difícil. O que surgira até então ou estava acompanhada ou se enquadrava nas suas restrições ou demonstrava pouco interesse no seu olhar pidão, levemente blasé. Não estava a perigo. Mantinha a necessidade alimentada (pelo menos duas vezes por semana), o que lhe conferia um ar vitorioso, bem sucedido, de macho alfa. Se não fosse por amor, por uma promessa de romance, que o saldo bancário entrasse no jogo e bancasse o prazer, não podia era ficar na mão.

No quinto drinque, quando seus comparsas, não tão seletivos, já estavam providenciando os últimos ajustes para uma saída gloriosa, com suas devidas porções do botim, Adalberto, consternado com o insucesso, preparava sua retirada em direção à vitrine da Cidade Jardim. Enquanto fazia seus cálculos, repassava na mente as contumazes companhias de horas tão carentes, sentiu uma voz, meio tom acima do normal, perfeitamente afinada, lembrar-lhe que a noite ainda era criança. Estranhou o clichê e virou-se apressado para dar de cara com um metro de setenta de pura sedução, decentemente rubra, dos pés à cabeça. Mais tarde recordaria que falhara na primeira impressão. Pasmo, fixou-se naquela boca, obra de escultor consciencioso e realista, de enormes lábios a causarem vergonha a todos os beijos que dera e daria na vida, tamanha volúpia inspirava aqueles polposos beiços, tingidos de um escarlate beirando a indecência. Não, não era efeito do álcool. Era além, algo transcendental. Sexo com uma criatura daquelas, seria vivenciar do sagrado. Não precisava dizer mais nada, estava dentro.

Lembrou-se do artigo que lera em ElHombre – 10 coisas que inspiram confiança nas mulheres e pensou colocar à prova ao menos dois pontos: falar pouco de si e comentar sobre sua paixão esportiva. Mal teve tempo de balbuciar seu improviso. Ela, confiante, de passagem pela cidade, gostaria de saber se os nativos eram tudo que ouvira falar na sua interiorana, aconchegante e hospitaleira cidadezinha. A honra era dele, conhecer alguém com disposição de testar hipóteses. E já que não estava ali para discussões teóricas, concordou em esticar a noite até o apartamento mais próximo, no caso o dela. Os últimos serão os primeiros, bendita santa da última hora.

Temerário! Apenas no dia seguinte, pode considerar o que acontecera de fato, que encontro fora aquele, quem era aquela mulher e mais: como viera parar naquela banheira, coberto de gelo. Dopado. Sim, fora dopado e arrastado até aquele quarto de quinta. Lembrou-se da beldade a oferecer-lhe uma taça de espumante e depois... Nada, zero, buraco negro. Ao lado, sobre um banco de madeira, um bilhete, onde leu, escrita com letra impecável, a sentença que o fez deveras acordar: 'Ligue logo para um hospital se planeja continuar vivo'. Uma dor aguda apossou-se do seu flanco direito. Ao apalpar-se sentiu algo incomum. Com dificuldade, levantou-se e procurou um espelho. 'Belezura de merda, só queria o meu rim'”.


Diante de uma plateia boquiaberta, vovó sorriu e gritou: “Quem quer biscoito?”. Guiado por sua magia, levantei o braço por primeiro e saí arrastando minhas finadas e mixurucas canelas.  


sábado, 24 de agosto de 2013

Lendas Urbanas - 7. A Mulher do Táxi



Alamoa, in lingalog.net



Após um longo e cansativo dia de trabalho, Almeida decidiu que era hora de fechar a bodega. Deixou seu último cliente no local combinado e, ao encaminhar-se para casa, avistou no cruzamento da Eusébio com Cardeal uma linda mulher a acenar-lhe que parasse. Separado a mais de ano, aquela é uma visão animadora. De animar defunto, ponderou e parou.

Você pode me levar para passear?”, disse de modo suave a impedir que o taxista recusasse. Enquanto seu lado direito repetia que aquela era uma hora bastante imprópria para um passeio pela cidade, o lado esquerdo pontificava que a necessidade faz o ladrão e que não é todo dia que a gente pode tomar um vinho do Porto.

Leve-me aos lugares mais bonitos que você conhece”. O pedido elevou a temperatura do conflito. Alguém, de parar o comércio, disposta a passear pela cidade com ele! Considerado este último ponto, o lado esquerdo venceu. “Por favor, abra a porta, não posso tocar na maçaneta”. O que é estranho atiça ainda mais a curiosidade.

Guia turístico por uma madrugada é uma experiência marcante. Imaginem os coelhos que poderiam sair daquela cartola? Teria muito a comentar com os parceiros de ponto no dia seguinte. O problema era que a moça não abria o flanco, preocupada que estava com os cartões postais da cidade. Extravagante. Certamente uma excêntrica. E com gosto duvidoso. Talvez gostos perigosos, gritou ameaçador o lado direito diante dos argumentos afrodisíacos do antagonista que insistia: sigamos em frente e quem sabe, no final, num passe de mágica, sejamos convidados para tomar um café no apê. Café vai, café vem... Convém deixarmos uma coisa esclarecida: molecagens, nem pensar. Nada de safadezas, pirações... Longe qualquer novidade, que gostava mesmo era do tradicional e pronto. Bastava aquele enredo, permitir-se levar pelos caprichos turísticos de uma desconhecida que em todos os lugares que parava, comportava-se como uma criança deslumbrada: rodopiava, ria, impressionada com a paisagem como se fora a primeira vez que a vira, embora lamentasse não poder tocar nas coisas.

Próximo da aurora, a moça pediu para regressar. O encanto inicial já houvera sido desfeito diante daquele desfile de esquisitices. Só restava ao taxista entregar-se à sua persona profissional e pensar no valor da corrida. “Deixe-me no meu ponto de partida”. Estacionou o carro. Ela agradeceu e saiu. Ao tentar lembrar-lhe do pagamento, foi interrompido: “Não trouxe dinheiro comigo. Fique com o meu endereço. Passe lá mais tarde”. Entre irritado, intrigado e com um tosco fio de esperança, Almeida aceitou, despediu-se e foi embora. O cansaço e o sono, tinha-lhe também retirado por completo o ímpeto.

Dormiu até às dez pras três. Mais ou menos cinco da tarde, perfumado, tocou a campainha de um sobrado no bairro dos Pinheiros. Uma idosa atendeu. Ouviu com lágrimas nos olhos uma implausível narrativa. Gentilmente, pediu que entrasse e sentasse enquanto buscava algo para que visse. Dirigiu-se até um console na sala e de cima dele pegou um porta retrato. “Era esta moça?” A mesma. “Minha filha morreu a cinco anos atrás, num acidente de carro, quando passeava pela cidade, como fazia todo ano, na data do seu aniversário”. Os olhos de Almeida não saíram em disparada pela rua graças a armação pesada dos seus óculos.



sábado, 17 de agosto de 2013

Lendas Urbanas - 6. O Cachecol Amaldiçoado

Fréderik Peeters, Portraits as Living Deads, 2008



A moça morava na periferia. Todo dia caminhava até a rua do comércio para procurar emprego e olhar as vitrines. Emprego estava difícil – muito – e olhar as vitrines era de graça.

Um dia, passando em frente a uma barraca de camelô, viu exposto um cachecol. Não era um cachecol comum, era aquele cachecol. Enorme, cinco cores... flores e animais bordados. Quanto? Uma mixaria, cabível à bolsa da moça que sonhava em trabalhar e estudar pra ser alguém na vida. Comprou a peça e voltou para casa, desempregada mas feliz. A escolher a melhor ocasião na qual usar aquela novidade que, certamente, a destacaria em qualquer ambiente.

Naquela noite sonhou. Um sonho terminado em pesadelo. Uma mulher enforcada com seu lindo cachecol. Acordou ofegante e nem esperou o dia amanhecer, a moça. Buscou a irmã mais nova e, suada, deu-lhe o cachecol de presente. A garota sonolenta e sorridente colocou a peça em volta do pescoço e imediatamente sobreveio-lhe uma ânsia de vômito seguida de desmaio. Assustada, a moça arrancou a peça do pescoço da irmã. Durante todo o dia a menina reclamou de uma forte dor de garganta. Que não sumia, nem mesmo após o uso de conhecidas pomadas e unguentos.

Naquele tarde, a melhor amiga veio visitá-la e soube da história. Do poder maléfico que a linda peça exercia sobre quem a usasse. Brincou que não era possível. E quis usar o cachecol. Pra quê! Foi como se uma coleira de fogo estivesse atada ao seu pescoço e gemeu e gritou, sufocada pela dor.

Chateada, a moça decidiu devolver o cachecol. Mas o camelô não estava mais lá. Uma mendiga, ao ver o objeto implorou, aos berros, que tirassem aquilo de perto dela. A moça perguntou se ela conhecia aquele cachecol. A pobre mulher, enlouquecida, proferindo palavras desconexas deu a entender que àquela peça estava relacionada uma história macabra. História de um crime medonho. A moça, intrigada, prestou atenção nalgumas palavras, correu até a biblioteca da escola do seu bairro, procurou a professora responsável e clamou por auxílio, precisava de ajuda para descobrir o que estava por trás daquele mistério.

Não foi difícil. À professora bastou a menção de duas ou três palavras. Acessou o velho computador e verificou fragmentos da história. Leitura de alguns recortes de jornais velhos, consulta a uma revista de época e alguns telefonemas, foi o bastante para aquele enredo ganhar consistência e veracidade.

Resumo: final dos anos 60, Lourdes, uma mulher bonita e independente, era casada com Hélio – homem muito ciumento. Certa noite, esposa e marido discutem. Num acesso de raiva, ele a enforca com seu próprio cachecol e consegue escapar da justiça humana.

No começo da manhã, a moça aguardava a abertura do portão do cemitério da colina. Não foi difícil encontrar o túmulo da desventurada Lourdes. Seu retrato havia sofrido a ação do tempo mas ainda se podia verificar que fora uma mulher de muitos encantos. Diante do vaso com meia dúzia de rosas murchas, a moça depositou o cachecol sem dizer palavra.

Naquela noite, dormiu feito anjo. E sonhou. Um sonho tranquilo. Um sonho em que era visitada por uma agradecida Lourdes.




sábado, 1 de junho de 2013

Lendas Urbanas - 5. O Ritual


Fotograma de Os Três, filme de Nando Olival, 2011.


Quando o empresário me procurou, eu já havia pulado fora do rumoroso caso dos dados bancários de badalado congressista, acusado de prevaricação. Fui abandonado no meio da cruzada por quase todos meus amigos mas continuei na esperança de que daquele mato saísse algum coelho. Que nada! Não consegui provar meu ponto de vista e ainda tive que desembolsar, por sentença, dois patrimônios e meio de tudo que nunca tive. Jogado sobre um arremedo de sofá, com uma ressaca de matar o guarda, fui surpreendido, no meu escritório, nos fundos do salão de beleza da Odete, nos arredores de Brasília, por aqueles cem quilos de pura arrogância ordenando que eu investigasse o passado drogado da namoradinha do seu filho. A principio relutei em aceitar o trabalho mas o dinheiro era gordo e eu estava naquela fase em que vendia o almoço para comprar o jantar. No final da semana seguinte fui apresentar um relatório e para meu espanto fui despedido. Devia esquecer tudo. Claro que recebi meus honorários mas saí com a impressão de que tinha feito papel de otário. Abri o coração à minha senhoria. Dete me aconselhou conversar com um jornalista conhecido – o Correio da Alvorada certamente compraria a história. Para quem vive na incerteza, garantir o aluguel é prioridade absoluta. Claro que o interesse era todo dela mas podia dar certo e não custava nada ver se a coisa gerava audiência. Não tinha assinado nada, não estava preso por nenhuma clausula de confidencialidade, portanto iria aproveitar. E foi assim que no domingo seguinte, a história ocupou duas páginas do matutino e ainda rendeu duas reportagens televisivas. Mas o resultado não deu pro gasto. Fui desacreditado na mídia por força do poder do meu antigo empregador. Passo agora por mentiroso, ficcionista fracassado que só pensa em dinheiro. Mas para que vocês possam julgar por si mesmos decidi publicar breve relato em blog amigo, a pedidos. Que a nossa classe média é um horror ninguém duvida. Cortejar forças ocultas para garantir privilégios sempre fez parte do seu sonho de consumo. Confira trechos da reportagem assinada por Davi Cardoso, leia o laudo do IC, autenticado pelo perito Godofredo Colina e forme seu próprio juízo antes que algum especialista o faça por você.

(…) “Por volta das três horas da tarde do dia 18 de Junho de 2005, uma garota foi encontrada nua vagando pela DF 001 ao lado do Parque Nacional. Pouca informação pode fornecer à polícia devido ao avançado estado de confusão mental. Tinha o corpo coberto por marcas de sevícia. No dia seguinte, às margens da Barragem Santa Maria, os corpos de dois jovens foram encontrados por um guarda-florestal que não quis se identificar. Quando os investigadores chegaram ao local encontraram a cabeça de um deles estraçalhada a golpes de objeto penetrante e, vinte metros dali o corpo do segundo com os órgãos genitais dilacerados. Para o detetive encarregado, o caso estava encerrado: o trio desaparecido desde março fora finalmente encontrado. A moça foi encaminhada a uma ala psiquiátrica e os cadáveres entregues às famílias para os procedimentos funerários”.

(…) No mês de abril de 2008, na manhã do dia quatorze, quando estava se despedindo do plantão, o delegado 1ª Classe Lázaro Pocomanto, da 21ª DP, recebeu das mãos de um motobói um embrulho contendo uma câmera digital bastante danificada. Levada à perícia do Instituto de Criminalística da Unicamp, revelou pertencer a um dos infelizes da tragédia do Torto, como ficou conhecido o caso. O vídeo é precário mas as imagens são contundentes. Veiculado no YouTube, atingiu num só dia a surpreendente marca de 10 milhões de acessos. Foi retirado do ar, por ordem judicial. Contudo não evitou que alguém gravasse num servidor independente as cenas ilustrativas da desgraça que pesa sobre os ombros de um magnata da construção civil, do chefe de gabinete de um importante ministério e dum coronel aviador aposentado da FAB. A polícia nega a autenticidade da prova e ameaça processar qualquer um que apareça com qualquer relato sobre o caso”.
...

Instituto de Criminalística – Unicamp – São Paulo - Laudo Final – Vídeo Câmera HP 275 Plus

Primeiro Quadro – Três jovens, na faixa dos 20 anos, dentro de um carro, impacientes com a hora. A moça fala ao celular e logo depois diz que o seu velho está enchendo o saco com aquela história de casamento. O rapaz no banco do carona fala que o país irá passar por uma mudança radical e que eles serão os arautos duma nova religião.

Segundo Quadro – O trio caminha por um trecho de mata serrada. O jovem identificado como Eduardo diz que o amigo Castro encontrou o local e que ele, Castro, é um tirano, que acha que sabe tudo. Eduardo deseja que fique claro que tudo que o Castro sabe foi ele, Eduardo, quem ensinou.

Terceiro Quadro – Eduardo: “A noite está perfeita, quente. Temos uma linda lua nova. Cenário ideal para reviver o grande Horthembrak. Por favor, não tentem fazer isso em casa. É perigoso”.

Quarto Quadro – Eduardo: “Vamos desenhar uma imensa letra “c” no chão com este pó de carvão. A abertura deve ficar em oposição a Belém. Glória, localize os pontos cardeais e acenda uma vela em cada ponto. Castro, antes de você entrar na letra, deve contorná-la dezoito vezes no sentido anti-horário. Estando lá dentro você deve queimar a página da bíblia com o Gênesis 1-6, entendeu? Agora, volte os pés na direção sudoeste, ajoelhe-se e encoste a testa no chão. Clame. Glória e eu, protegido no círculo de sal, repetiremos a invocação. (…) firmamentum in medio aquarum et separet aquas ab aquis quae superius sicut inferius et quae inferius sicut quae superius ad perpetranda miracula rei unius... (Observação do perito da Unicamp: 'cortei a parte restante para evitar que crentes fanáticos detonem este laudo').

Quinto Quadro – Castro: (Possuído) “Vocês são infantis. Acreditam mesmo que uma moça estuprada vai nos atormentar após a morte? Se viva, mal pode defender-se, por que teria forças depois de morta? Hoje plantarei minha semente. Pro nosso sucesso devemos sacrificar a vadia (Agarra Glória)”.

Sexto Quadro – Eduardo: “O que fiz é monstruoso mas necessário. Foi para o bem de todos. Horthembrak agrediu muito a Glória, eu também bati nela. Depois bati nele também. Nos batemos muito. Acertei ele com um cano, foi a única maneira de parar tudo aquilo”.

Sétimo Quadro – Eduardo (visivelmente cansado, parece que correu léguas): “Não amanhece, estou com medo. Que foi isto? Sinto como se houvesse uma multidão atrás de mim. E esta sensação que não passa! Minha boca e meu anus parecem habitados por vermes. (Grita) Não tenho medo dos seus olhos vermelhos nem de seus membros enormes, espírito asqueroso". 
...

Em tempo: No começo do ano, li na coluna do Adroaldo que Glória finalmente voltou ao convívio da família, após uma longa temporada no Hospital Naval. Ao que tudo indica sua gravidez segue sem qualquer anormalidade.


sábado, 25 de maio de 2013

Lendas Urbanas - 4. A Sonda



O Paranoico, cartoon do Camaleão, 2000



Junho, 24:
Sinto que estou sendo observado. Quem se interessaria por minhas esquisitices?

Agosto, 30:
Manhã: O telefone toca, alguém respira e desliga. Tarde: Agora foi a campainha – quando olhei pelo olho mágico, nada, ninguém. Noite: Juro que deixei o pacote de leite na prateleira de cima da geladeira e o encontro aonde? - Na grade superior da porta. Muito estranho.

Dezembro, 31:
Fotografei todo o apartamento, comodo por comodo, detalhe por detalhe. Quando voltar confiro tudo.

Fevereiro, 2:
Janice não quer mais falar comigo. Astrologia pode? Gozado, ela.

Abril, 18:
Como foi possível meu chefe saber do meu protesto se sussurrei aquele pensamento pro espelho do banheiro da área de serviço? Aqui tem coisa.

Maio, 30:
Acredite se quiser, o que anda acontecendo comigo está além da imaginação.

Julho, 21:
Janice disse que devo procurar ajuda. Não dá pra confiar em ninguém.

Outubro, 12:
Tudo bem, vou dar um tempo. Agora não é hora de pensar num novo emprego. Posso viver com a indenização uns seis meses.

Novembro, 15:
Aquele carinha não me é estranho. Donde será que o conheço? É possível que esteja me seguindo. Muita coincidência. Se ele aparecer na padaria amanhã , vou encarar.

Janeiro, 25:
Heleno (nome de guerra, claro) é franzino e cegueta. Foi logo dizendo que eu preciso ver as provas guardadas a sete chaves no porão da velha fábrica abandonada onde, nos últimos cinco anos, vive escondido de tudo e de todos. A conferir.

Março, 29:
Como nunca percebi?... Bem aqui, diante dos meus olhos... sempre ao alcance da minha mão... desde quando?

Abril, 17:
Realmente, como disse Carl Sagan um ano antes de morrer: “Não pensar na possibilidade de que exista vida lá fora, é um absurdo”.

Maio, 1:
Devemos resistir ou, em breve, seremos transformados em autômatos a serviços de propósitos escusos.

Agosto, 13:
Heleno finalmente mostrou-me os documentos secretos. Sim, a NASA sabe de tudo.

Novembro, 2:
Fato inegável: fomos invadidos. Sondas extraterrestres passeiam por aí.

Dezembro, 25:
As provas são contundentes. Planejamos invadir o complexo. Temos que desativar a produção.

Abril, 21:
Conseguimos chegar até a central de controle. Fomos surpreendidos por guardas de cabeças redondas e negras. Heleno foi morto. Malditos.

Outubro, 31:
Vou cair na clandestinidade. A você que, porventura, leia este diário lanço a pergunta que levou-me a esta inacreditável aventura: porque as esferográficas BIC sempre aparecem em diferentes lugares e nunca nos questionamos se realmente as havíamos deixado onde as encontramos? Fique esperto. Ao se deparar com estas canetas, principalmente com a super perigosa BIC Verde, todo cuidado é pouco. Nunca deixa-a presa à sua orelha. Além de enviar dados para o espaço, consegue influenciar de modo drástico seu modo de pensar. Não se renda à manipulação marciana. Lembre-se: a Terra nos pertence. Vida longa e próspera enquanto a luta continua.  


sábado, 18 de maio de 2013

Lendas Urbanas - 3. A Colaboradora da Morte




Imagens Google, escultura em túmulo


Quando Viviane subiu os degraus da Faculdade de Psicologia, naquela manhã de terça corriqueiramente cinzenta, percebeu que não se sentia preparada para enfrentar a morte e, ao parar para respirar, descobriu que não conseguia lidar com suas próprias emoções e sentimentos. Isto disse ao Jacques, no interior do gabinete finamente decorado com símbolos sacrificiais, quando questionada pelo mentor sobre qual tema finalmente definira para sua monografia final e cujo título fora elaborado durante a noite passada em insônia – A dor da morte: palavras, gestos e atos em velórios e enterros. Disse mais: escolheria aleatoriamente três velórios e seguiria os féretros até a entrega dos corpos aos vermes. Não, não incluiria esta última frase na dissertação. Estava de fato interessada nos sentimentos das pessoas, nas reações delas. Desejava observar o quanto de reverência ainda havia. O que em nós se debatia diante do inexorável. Os clichês e as autenticidades. O quanto de respeito e sabedoria havia nos pequenos gestos e nas sussurradas palavras nalguns instantes de misterioso pudor, onde se via ela própria compelida a vênias diante de supremo poder. Talvez por sua origem católica e oito anos no Sacré-Coeur. Temor e louvor. Confusão. Não basta levar uma vida dedicada à caridade, o cultivo da esperança, não se envolver com o oculto, não fazer mal ao próximo e nem praticar a usura para, no além, não ter que passar por exaustivas burocracias para receber seu lugar de direito no céu? Para que se preocupar? Morrer, morreu! Não, não bastava. A morte é parte da existência. Estar vivo é ser finito. Praticamente é o único fato de que temos certeza. O indivíduo, ao nascer, inicia sua preparação para a morte, é tudo. E o modo como lidamos com a morte parecia-lhe ineficaz.

A exemplo da questão da origem e sentido da vida, Viviane travava um intenso debate interior sobre o que é a morte e no que consiste morrer. Nos clássicos, lera o conceito: parada das funções vitais; separação do corpo da alma; parada da respiração e das funções cardíacas e, mais recentemente, devido ao avanço da ciência e da tecnologia, cessação da função cerebral, dado que se pode manter as funções cardíacas e respiratórias enquanto nada se pode fazer para manter o cérebro funcionando. Mas isto não lhe dizia do porque do temor e da negação da realidade da morte. Porque desejamos tanto fugir a isto? Cedo ou tarde, temos que encará-la. E sabia por onde começar: admitir para si mesma esta possibilidade. Aceitar a realidade da própria morte. Desejava alcançar a paz interior e vir a contribuir para a tão necessária paz mundial. Desejava perceber o porque de termos transformado a morte em tabu, do porque ela ficar escondida das crianças, banida das conversas cotidianas? Sim, senhor, medo, medo dos sentimentos que possam aflorar, medo da intensidade das respostas. Para não lembrarmos da nossa finitude, talvez. Nós, os transitórios.

Munida das melhores e positivas intenções partiu para o campo. Seu tempo era pouco, perdera muito tempo pensando e agora tinha menos de um mês para apresentar suas conclusões. No primeiro velório, no próprio campus, assistiu a discursos e desfiles de egos e conflitos. O decano da faculdade história havia falecido na noite anterior, vítima de um ataque fulminante e seu velório deu-se ali mesmo, na reitoria. Munida de uma memória fotográfica, cuidava de registrar, nos mínimos detalhes, o conjunto e as nuances individuais. Após meia hora de enfado e nenhuma relevância, notou uma senhorinha, de vastos cabelos brancos, com uma mantilha antiga sobre a cabeça, praticamente flutuando entre as pessoas indiferentes à sua manifesta compaixão. Intrigada, Viviane tentou aproximar-se da idosa mas a perdeu de vista em meio ao burburinho. Após as palavras finais do reitor, o caixão foi fechado e todos sentiram um alívio por finalmente terem se livrado daquele entulho da ditadura, embora a família não tivesse nada a ver com isto.

Sentindo-se atrasada em relação a seus cálculos, chegou ao segundo velório levada pela tia da cantina num bairro popular, no alto de uma colina, longe do asfalto. Lugar adequado para se morrer de fome ou moléstia. A pobre criança, um anjinho, havia falecido nos braços da mãe, uma doméstica de hábitos primitivos, e agora repousava numa caixa de papelão decorada com folhas de celofane para não parecer um lixo qualquer. À volta, do irmãozinho defunto, cinco outros desnutridos, alheios às leis naturais e humanas e à meia dúzia de adultos que mastigavam uma veneranda salsicha a goles atrevidos de cana. O choro já havia sido esgotado em algumas poucas lágrimas. E em meio à valas, dejetos e varais de farrapos, Viviane sentiu a presença da velha. Daquela dos longos cabelos brancos. Desta vez teve a nítida impressão de que duas estrelas brilhavam no fundo daqueles tristes olhos voltados para o minúsculo corpico que jazia sobre uns restos de cadeiras e pensou ser visagem o beijo na testa que somente ela vira. O calor infernal e o odor encardido que varejava no ar, faziam a vida parecer uma alucinação.

Estava certa de que entrara num beco sem saída quando foi arrastada pelo pai ao velório de um velho amigo da família, um empresário bem sucedido. Todos ali foram convidados a dedo, não se permitia penetras. No entanto a velhinha lá estava e Viviane não conseguiu atinar quem a levara tão rápido ao cemitério pois, ao desembarcar do automóvel paterno, a vira ocupar lugar privilegiado diante do túmulo preparado para receber o ilustre inquilino. Quando a cerimônia terminou, Viviane cuidadosa, tratou de segui-la. Não perderia a oportunidade de conversar com aquela figura que, em todas as ocasiões, estava diante dos defuntos, como se fosse próxima. Disse ao pai que demoraria um pouco no campo santo, queria aproveitar para relaxar e meditar. O velho deu-lhe um beijo da bochecha, como sempre fazia desde tempos e cuidou de tirar a esposa daquele ambiente saturado de umidade.

Diante da sepultura 19, da quadra B, um belo monumento em mármore simbolizando a solidão adornava a cripta. Viviane aproximou-se e notou que a foto no túmulo era da mesma pessoa que ela tinha diante de si. Como isto é possível? Sem que tivesse tempo para demonstrar todo o seu espanto, todas as suas perguntas foram ali respondidas, num breve instante, num átimo de segundo. Vivi as absorveu como se fosse o próprio ar, ar que sentiu respirava agora num outro meio. O que és tu?, insistiu. - Sou uma colaboradora da morte, disse sem qualquer ponta de orgulho a mulher cujos olhos projetavam réstias. - Sou eu que passo o filme da vida, para orientar a alma até seu destino final. Viviane mal teve tempo de sacar qualquer argumento, de racionalizar qualquer emoção. Dentro dela uma sucessão de momentos; em suas retinas, imagens tatuadas dançaram; no seu coração, indeléveis lembranças, boas e más, feitos, perdas, amores, sonhos e desilusões... todas as suas esperanças desfilaram agradecidas. Duas lágrimas saudaram a vida razoável que levara. Não sentia nenhuma ponta de remorso. Apenas uma dor, levíssima dor, que insistia em antagonizar sua alegria. Quando os funcionários do cemitério a encontraram caída sobre o mármore, trazia afixado no rosto um sorriso lívido.


sábado, 11 de maio de 2013

Lendas Urbanas - 2. O Palhaço da Kombi Azul



Fotograma do filme IT, baseado no livro de Stephen King


Sábado é dia de levar os filhos para o parque. É dia de deitar na grama, empinar pipa, jogar bola, tomar sorvete e comer tudo que é “porcaria” para no final pra voltar pra casa feliz mas cansado de dá dó. Sábado tem sido um dia igual para a família Corrêa. Seu Corrêa, dona Corrêa e os dois correinhas (alegria e bagunça da casa) têm cumprido este ritual desde sempre, desde que as crianças quebraram o primeiro vaso da sala. Sabem como é, criança e bicho precisam de espaço. Lei inexorável da natureza.

Espaço é o que no falta no Parque das Araras, área central para onde convergem todas as almas benditas, malditas e purgativas da cidade em busca de pouso e descanso em meio a árvores centenárias, palmeiras gritantes, sombras copiosas de acácias, jatobás e magnólias em volta de jardins e suas variadas e perfumadas flores e seus lagos de cisnes fidalgais. Em meio ao frenesi dos pássaros, micos e borboletas, alguns prédios modernosos – galerias, anfiteatros e um fenomenal Planetário – envoltos em heras de diversas procedências, além de um parquinho enorme, brinquedos múltiplos, acessíveis a todas as idades e, quadras, muitas quadras esportivas para todas as praticas e gostos. Uma benção à saudosa memória da metrópole que se vê condenada a repetir dezenas de vezes os mesmos erros de um presente que não encontra saída no labirinto progressista que ao mesmo tempo que atrai, repudia. Um caso de amor e ódio mal resolvido. É isto que vemos todos os sábados no parque. Gente encantada e gente desencantada. Entre os encantados, destaca-se a família Corrêa e uma dúzia de esqueitistas que insistem em desafiar as leis do movimento para deleite de umas cinco meninas. Entre os desencantados: mendigos, leitoras de mãos, garotas e garotos de programa, vendedores de água, guardas-civis e uma trupe de palhaços que tenta animar os passantes com números de malabares auxiliados por duas ou três piadas prontas paridas em circos mambembes do tempo do onça.

Não é comum palhaços darem o ar da graça em plena luz do dia nas calçadas. Palhaços habitam circos e filmes. E embora tenham por objetivo transmitirem alegria, quase sempre o fazem por motivos escusos. Pintam o rosto para esconder alguma magoa, algum desgosto, geralmente. No entanto, hoje é sábado e não é hora de se pensar nestas coisas. Tanto assim que o casal Corrêa não reparam na trupe, tampouco naquele que se destaca da paisagem por sua maquiagem imensamente branca vazada por círculos vermelhos a exemplo de olhos e que insiste em preferir o anonimato da sombra arbórea ou o oculto de algum arbusto, alegremente sinistro. Os corrêa-mirins o notam, sentem a sua risada rasgante e aquele hálito babado de caramelo mascavo. Crianças adoram doces mas aquele arde. Na ânsia de cuspirem, tropeçam e deixam escapar o saco de pipoca e duas bexigas amarelas. Que há? Que há? O palhaço. Que palhaço? Aquele. Não vejo palhaço algum.

A gente só nota aquilo que interessa. E isto pode ser fatal. Não notar o incomum. Aquele incomum que consegue tornar-se comum a ponto de misturar-se a nós como se não fosse incomum. Onde mora o pecado. Ás vezes paga-se caro, Às vezes isto basta para provocar uma comoção. E o pior é que não basta. Nem para uns nem para outros. Pois estamos sempre em busca da novidade. No caso da família Corrêa, a novidade veio por conta deste incomum que está disposto a nos ministrar uma terrível lição de moral que nos escapa, mas que o move em direção ao riso mesmo que forçado. Ainda haverão de rir, vocês que vaiaram! E acena. E atrai. E seduz, o danado. Sumiços fugazes, flaches ali e aqui, sua imagem multiplicada e aquele timbre zoando da escala, dissonante, troante, alucinadamente infantil e irresponsável.

A Kombi Azul estacionada no portão leste foi relatada pela gorda da bicicleta, disposta a colaborar com os bons costumes. Quem mais viu? Para onde foi? Que fazer, poderes divinos, agora que tudo está perdido? Que não há mais motivo algum para vir passear no parque aos sábados, que a pipa e a bola serão esquecidas no fundo da garagem para sempre ou até enquanto existir garagem agora que não há motivo nenhum para continuar vivendo nesta cidade que busca no sequestro de inocentes um motivo para venda de milhões de jornais, três longas metragem, quatro curtas, uma série de televisão com mais de 30 capítulos, cinco livros de ficção, um dicionário, dezenas de revistas, além de calhamaços de relatórios policiais, pareceres autenticados pelos mais experimentados psiquiatras forenses e exaustivas pesquisas sobre a violência nos grandes centros, tudo pago com o dinheiro dos contribuintes, sem falar deste conto que não constava dos planos originais do Criador e que ao invés de trazer luz ao caso faz é jogar gasolina na brasa.

A conclusão é de que aquele acontecido isolado no parque das araras, agora diminuído e apequenado pela evasão dos seus frequentadores temerosos de que suas ingenuidades deem motivos para aterrorizantes manchetes que só fomentam o medo e a incerteza de estar vivo nesta parte do planeta, trouxe à tona pavorosos meandros de uma rede organizada mundialmente com o objetivo de comercializar órgãos e caracteres humanos. Quando a polícia invadiu a suposta sede da organização, na fronteira entre Portugal e Espanha, em plena crise do euro, foram encontradas robustas provas de que a empresa atuava também no ramo da escravatura sexual sem distinção de idade, cor, raça, credo e posição social, fortemente subsidiada por um velho e teimoso xeique das arábias, afofado em petrodólares, sequioso da toda poderosa e divina misericórdia de Alá visto que, pecador, não via saída senão investir pesado na pesquisa e desenvolvimento de alta tecnologia que lhe desse a plena e total imortalidade.

Presos alguns piabas, o caso foi perdendo vigor até cair no completo esquecimento e só fazer parte da sessão coruja do principal canal de televisão em algumas sextas-feiras treze. O palhaço? Fora visto ainda por várias crianças cujos pais não conseguem enxergar o que está a um palmo adiante dos seus próprios narizes. E virou lenda, a criatura. Simplesmente designada nos círculos fechados de uns poucos grupos que insistem em manter vivos os medos da infância, como a Coisa: aquilo que a gente não pode mencionar sob pena de trazer-lhe à vida e permitir sua trajetória recomeçada de sangue e desespero. Um sério candidato a acordar numa tarde em plena Marginal, ao lado de um baú repleto de variados trajes de palhaços, estojos de maquiagem e inúmeras fotografias de crianças sorridentes sentadas diante de um improvisado picadeiro, dentro de uma Kombi Azul. Escandalosa é a vida. Cínico o autor. 


sábado, 4 de maio de 2013

Lendas Urbanas - 1. A Garota do Espelho




Cena do curta metragem Mamá 
Direção de Andrés Muschietti, 2008


Ao inaugurar esta série penso: Estamos sempre em busca de algo novo, algo que traga encanto às nossas vidinhas enfadadas de rotinas. Sistemático, não fujo à regra. Invento modos e traçados. Repito usos comuns bastante eficazes na batalha contra a pasmaceira. Eu, contador de história, não inventei o nó. Apenas ofereço um ponto de modo que o novelo ganhe volume e substância na imaginação do ouvinte co-e-re-contador. Fiel ao adágio, apresento-vos minhas versões de algumas Lendas Urbanas bastante difundidas. Como diria qualquer Vulcano: “Vida longa e Prosperidade”.



A história é um jogo da memória.
Cada vez que lembramos de algo
é porque nasceu uma coisa nova no mundo.
Só não coma palito de fósforo”.
Seu Toinho Véra
Mestre nas artes encantatórias
(1860-1958)

No primeiro dia de aula, Jennifer, que ainda não havia digerido muito bem aquela mudança de endereço e, dado os seus sentidos ultra sensíveis, alimentados por vastas e profundas teorias de conspiração, percebeu na parede lateral do primeiro corredor da escola uma placa com os seguintes dizeres: “Aqui nasceu e encontra-se enterrada Esmeralda Dias (1866-1891). Que sua alma possa um dia encontrar a felicidade”.

No dia seguinte, perguntou ao professor de história, o cara menos estúpido daquele antro de almas penadas, o que significava aquilo. O jovem respondeu que não era nada, que devia ser brincadeira do pessoal do terceiro ano. Quando deu-lhe as costas ele acrescentou: - É melhor ficar esperta. Eles adoram judiar dos novatos. Aquelas poucas palavras, quem poderia imaginar, selou uma amizade que duraria o tempo que a filha do casal de bancários, transferidos da capital para aquele fim de mundo, permaneceu entre nós.

Ao contrário dos da sua idade, ela passou a preferir a companhia do professor e costumeiramente o visitava em sua casa. Os pais, inicialmente, não viram com bons olhos aquele relacionamento mas, ao perceberem que o temperamento da filha havia sofrido uma ligeira modificação (só não atinaram se para melhor), acabaram por decidir dar-lhe completa liberdade de movimentos. Quem sabe assim conseguiriam alcançar a serenidade necessária para tocar o dia a dia. Porém, serenidade era o que menos havia na conturbada vida de Jennifer. Às voltas com a hostilidade dos colegas que espalharam pela escola inteira seu envolvimento com as “artes das trevas”, não raro era acusada de emporcalhar-se com salgadinhos e cigarros. Ela ria e debochava daqueles manés, pouco se lixando para o que achassem ou pensassem dela, até que um dia o professor perdeu o controle.
- Sei lá... Acho que posso acabar apaixonado por você.
- Você apaixonado por mim?! Tá louco?
- Porque, não sou capaz de amar.
- Nunca me passou pela cabeça namorar quem quer que seja, muito menos você.

Não, aquela amizade não podia continuar. Ele, a colocá-la naquela situação! Quem ele pensava que era para vir com aquela história de paixão? O mundo não tinha mesmo solução, precisava encontrar um refúgio, precisava fugir de tudo aquilo. Reparem que ela não sabia que o amigo tinha um medo danado de se envolver. Pela cabeça do franzino professor costumava passar uns pensamentos um tanto quanto sinistros, sei lá, coisas de maldição, pecado... Coisas que costumavam arrepiar-lhe os cabelos da nuca cada vez que ocorria-lhe lembrar-se de algumas passagens do seu sistemático passado. Vinha evitando a todo custo “contaminar” a menina mas, a carne, como todos sabem, é fraca e a alma perversa, ao ficar entre a cruz e a espada optou por despejar seus dissolutos desejos sobre aquele pobre coração que, sem ferramentas adequadas para lidar com qualquer situação, saiu em debandada. Ficaram de cara virada durante boa parte do semestre. Jennifer, matando aula, indo trancar-se no banheiro para dar asas a sua imaginação. Ele, a inventar desculpas para encobrir suas fugas. E a pensar ainda que talvez a amasse.

Porém, o que se passava na cabeça da menina, Honório só veio a saber naquela noite quando, preparando-se para dormir, ela chegou e disse que tinha finalmente juntado as pontas do novelo. Queria apenas que ele ouvisse a redação que acabara de escrever. Que tudo nesta vida estava em sincronismo e que o que acontecia ali poderia muito bem acontecer aqui e foi por aí, tropeçando nos dedos e a enrolar-se nas palavras tingidas de pensamentos turvos e lacrimosos.
- Presta atenção, me veio assim, claro como água: Esmeralda foi uma moça muito bonita. Quando completou 14 anos de idade, seus pais, por problemas financeiros, viram-se na contingência de entregá-la em casamento a um dos barões do Império, vinte e um anos mais velho que ela. Aquilo não podia mesmo dar certo. Na noite de núpcias, para desespero de todos, ela fugiu para a Capital, na companhia de um sargento de milicia. O marido a persegui durante anos, até que a surpreendeu num quarto de hotel barato e a afogou no vaso sanitário. A mãe, inconsolada, trouxe o corpo da filha embalsamado dentro de uma urna de vidro. Deixou-a exposta por duas semanas, para visitação pública. Depois de vários pesadelos, decidiu sepultá-la ali mesmo no interior do quarto. Esmeralda, que até hoje não sabe que morreu, continua vagando pelos cômodos da escola, em busca de paz para a sua pequena alma atormentada. E acrescentou com um sorriso semelhante a um esgar.
Já pensou se pudéssemos invocá-la?
- Pelo amor de Deus, não mexe com isto, Jennifer.
- Que pode acontecer?
Não sei... E é disto que tenho medo.

Os portões foram fechados na hora marcada. Honório viu o carro do diretor virar a esquina e ganhar o esquecimento. Correu para o fundo do prédio. Queria chegar a tempo. Sabia que Jennifer estava determinada. Não conseguira demovê-la da ideia de chafurdar-se nas teias do obscurantismo em busca de sentido para o que não fazia sentido algum. Jennifer inventara suas próprias regras, criara seu próprio método de crença e defesa e agora, guiada por uma intuição cega, deu três descargas, chutou o vaso sanitário uma vez, falou três palavrões e encarou o espelho. Honório contava poder impedir-lhe mas suas pernas tremeram ao dobrar o último corredor e conteve o fôlego por alguns instantes. Tempo suficiente para Jennifer pronunciar as fatídicas palavras : - Vem loira! Vem loira! Vem... Honório entrou no banheiro e gritou: - Por favor, outra vez não! Tarde demais. O espectro do que teria sido Esmeralda não aguardou completar a terceira frase. Materializou-se às costas do professor que não teve como esboçar qualquer reação diante do arrepio gelado que invadiu-lhe a alma senão estancar e sentir o golpe esgotar-lhe por completo. Jennifer gritou um grito mudo. O cadáver perfumado de Esmeralda flutuou em sua direção, agarrou-a pelos ombros e tascou-lhe um beijo com hálito de cemitério. A essência da garota foi sugada pelo ectoplasma sedento de afeto. Jennifer sentiu suas carnes deslocaram-se dos ossos e sumiu-lhe a sensação de gravidade. Quando deu por si, havia uma barreira entre o lá e o cá. A polícia não duvidou da culpa do professor sabendo-se completamente incapaz de responder aonde fora parar o corpo de delito? Honório sabia mas, não quis explicar. Alguém acreditaria? Aceitou a sentença com a maior naturalidade. A partir daquele dia quem entrasse naquele recinto não conseguia evitar sentir um certo perfume adocicado a escorrer dos encardidos azulejos e penetrar nas narinas de modo indelével ao mesmo tempo em que uma sumida voz parecia clamar algo bem distante num vazio imaculadamente preservado. Honório assustou-se, doze anos depois, quando ouviu no noticiário algo sobre algumas meninas da sétima série afirmarem terem visto o que poderia ser uma garota implorando ajuda de dentro do espelho do banheiro da escola. Como um bom professor de história ele sabe que há uma tendência a se repetir erros passados. O que só faz aumentar sua angústia. Afinal, mais dia menos dia, terá de enfrentar o mesmo problema.