sábado, 5 de outubro de 2013

Lendas Urbanas - 8. Boa Noite, Cinderela!


Malévola, Angelina Jolie, 2013



Vó Emília sabia das coisas. Nunca triscara um dedo num filho, não era adepta de castigo físico. Acreditava que espancar diminuía, senão anulava, a autoestima. Autodidata, desenvolvera um profundo senso ético e pedagógico, talvez pelo fato de ter nascido estrábica, corcunda e coxa. Nas suas rodas de histórias, após o jantar, num época em que a palavra era mais forte que a imagem, vovó, num ritual costumeiro, tinha sempre um acontecimento para ilustrar suas apreensões que só muito mais tarde, chegávamos a compreender. Recentemente, pouco antes de partir, rodeada dos netos, bisnetos e um trineto, não precisou bifurcar a língua para nos sacudir com mais uma das suas.

Finalmente sexta. Quem mora em cidade sabe do que estou falando. A perspectiva do final de semana equivale a uma carta de alforria – sensação de absoluta liberdade. E quando se é solteiro então, um mar de possibilidades se espraia. Um chopinho aqui, outro ali e o celular não para de trabalhar: conjecturas, buscas, acertos e revisões do roteiro pro sábado que se aproxima.

Sempre aberto as nuances que uma noite de sexta encerra, Adalberto sorveu mais um gole do energético e olhou em torno, certo de que, dali a pouco ela entraria e viria ao seu encontro com um sorriso de ninfa estampado na face de deusa. Rosto é tudo, afirmou. O corpo conta mas, se não tiver um rosto bonito, fica difícil. Qualquer ponto fora da curva chama muito a atenção. Quem vê cara, vê coração, sim senhor.

A turma tinha se separado, cada um seguindo o próprio instinto. Nada de caça em bando, isto era para amadores. Bando, só no dia seguinte ao confrontar as estratégias e resultados. Verdadeiro lobo solitário, Adalberto prostrou-se num dos cantos do balcão donde teria visão privilegiada, panorâmica. Dali, seria possível escolher o alvo e partir para o ataque com alguma vantagem sobre os concorrentes. Mas estava difícil. O que surgira até então ou estava acompanhada ou se enquadrava nas suas restrições ou demonstrava pouco interesse no seu olhar pidão, levemente blasé. Não estava a perigo. Mantinha a necessidade alimentada (pelo menos duas vezes por semana), o que lhe conferia um ar vitorioso, bem sucedido, de macho alfa. Se não fosse por amor, por uma promessa de romance, que o saldo bancário entrasse no jogo e bancasse o prazer, não podia era ficar na mão.

No quinto drinque, quando seus comparsas, não tão seletivos, já estavam providenciando os últimos ajustes para uma saída gloriosa, com suas devidas porções do botim, Adalberto, consternado com o insucesso, preparava sua retirada em direção à vitrine da Cidade Jardim. Enquanto fazia seus cálculos, repassava na mente as contumazes companhias de horas tão carentes, sentiu uma voz, meio tom acima do normal, perfeitamente afinada, lembrar-lhe que a noite ainda era criança. Estranhou o clichê e virou-se apressado para dar de cara com um metro de setenta de pura sedução, decentemente rubra, dos pés à cabeça. Mais tarde recordaria que falhara na primeira impressão. Pasmo, fixou-se naquela boca, obra de escultor consciencioso e realista, de enormes lábios a causarem vergonha a todos os beijos que dera e daria na vida, tamanha volúpia inspirava aqueles polposos beiços, tingidos de um escarlate beirando a indecência. Não, não era efeito do álcool. Era além, algo transcendental. Sexo com uma criatura daquelas, seria vivenciar do sagrado. Não precisava dizer mais nada, estava dentro.

Lembrou-se do artigo que lera em ElHombre – 10 coisas que inspiram confiança nas mulheres e pensou colocar à prova ao menos dois pontos: falar pouco de si e comentar sobre sua paixão esportiva. Mal teve tempo de balbuciar seu improviso. Ela, confiante, de passagem pela cidade, gostaria de saber se os nativos eram tudo que ouvira falar na sua interiorana, aconchegante e hospitaleira cidadezinha. A honra era dele, conhecer alguém com disposição de testar hipóteses. E já que não estava ali para discussões teóricas, concordou em esticar a noite até o apartamento mais próximo, no caso o dela. Os últimos serão os primeiros, bendita santa da última hora.

Temerário! Apenas no dia seguinte, pode considerar o que acontecera de fato, que encontro fora aquele, quem era aquela mulher e mais: como viera parar naquela banheira, coberto de gelo. Dopado. Sim, fora dopado e arrastado até aquele quarto de quinta. Lembrou-se da beldade a oferecer-lhe uma taça de espumante e depois... Nada, zero, buraco negro. Ao lado, sobre um banco de madeira, um bilhete, onde leu, escrita com letra impecável, a sentença que o fez deveras acordar: 'Ligue logo para um hospital se planeja continuar vivo'. Uma dor aguda apossou-se do seu flanco direito. Ao apalpar-se sentiu algo incomum. Com dificuldade, levantou-se e procurou um espelho. 'Belezura de merda, só queria o meu rim'”.


Diante de uma plateia boquiaberta, vovó sorriu e gritou: “Quem quer biscoito?”. Guiado por sua magia, levantei o braço por primeiro e saí arrastando minhas finadas e mixurucas canelas.  


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