Malévola, Angelina Jolie, 2013
Vó Emília sabia das
coisas. Nunca triscara um dedo num filho, não era adepta de castigo
físico. Acreditava que espancar diminuía, senão anulava, a
autoestima. Autodidata, desenvolvera um profundo senso ético e
pedagógico, talvez pelo fato de ter nascido estrábica, corcunda e
coxa. Nas suas rodas de histórias, após o jantar, num época em que
a palavra era mais forte que a imagem, vovó, num ritual costumeiro,
tinha sempre um acontecimento para ilustrar suas apreensões que só
muito mais tarde, chegávamos a compreender. Recentemente, pouco
antes de partir, rodeada dos netos, bisnetos e um trineto, não precisou bifurcar a língua para nos sacudir com mais uma das suas.
“Finalmente sexta. Quem
mora em cidade sabe do que estou falando. A perspectiva do final de
semana equivale a uma carta de alforria – sensação de absoluta
liberdade. E quando se é solteiro então, um mar de possibilidades
se espraia. Um chopinho aqui, outro ali e o celular não para de
trabalhar: conjecturas, buscas, acertos e revisões do roteiro pro
sábado que se aproxima.
Sempre aberto as nuances
que uma noite de sexta encerra, Adalberto sorveu mais um gole do
energético e olhou em torno, certo de que, dali a pouco ela entraria
e viria ao seu encontro com um sorriso de ninfa estampado na face de
deusa. Rosto é tudo, afirmou. O corpo conta mas, se não tiver um
rosto bonito, fica difícil. Qualquer ponto fora da curva chama muito
a atenção. Quem vê cara, vê coração, sim senhor.
A turma tinha se
separado, cada um seguindo o próprio instinto. Nada de caça em
bando, isto era para amadores. Bando, só no dia seguinte ao
confrontar as estratégias e resultados. Verdadeiro lobo solitário,
Adalberto prostrou-se num dos cantos do balcão donde teria visão
privilegiada, panorâmica. Dali, seria possível escolher o alvo e
partir para o ataque com alguma vantagem sobre os concorrentes. Mas
estava difícil. O que surgira até então ou estava acompanhada ou
se enquadrava nas suas restrições ou demonstrava pouco interesse no
seu olhar pidão, levemente blasé. Não estava a perigo. Mantinha a
necessidade alimentada (pelo menos duas vezes por semana), o que lhe
conferia um ar vitorioso, bem sucedido, de macho alfa. Se não fosse
por amor, por uma promessa de romance, que o saldo bancário entrasse
no jogo e bancasse o prazer, não podia era ficar na mão.
No quinto drinque, quando
seus comparsas, não tão seletivos, já estavam providenciando os
últimos ajustes para uma saída gloriosa, com suas devidas porções
do botim, Adalberto, consternado com o insucesso, preparava sua
retirada em direção à vitrine da Cidade Jardim. Enquanto fazia
seus cálculos, repassava na mente as contumazes companhias de horas
tão carentes, sentiu uma voz, meio tom acima do normal,
perfeitamente afinada, lembrar-lhe que a noite ainda era criança.
Estranhou o clichê e virou-se apressado para dar de cara com um
metro de setenta de pura sedução, decentemente rubra, dos pés à
cabeça. Mais tarde recordaria que falhara na primeira impressão.
Pasmo, fixou-se naquela boca, obra de escultor consciencioso e
realista, de enormes lábios a causarem vergonha a todos os beijos
que dera e daria na vida, tamanha volúpia inspirava aqueles polposos
beiços, tingidos de um escarlate beirando a indecência. Não, não
era efeito do álcool. Era além, algo transcendental. Sexo com uma
criatura daquelas, seria vivenciar do sagrado. Não precisava dizer
mais nada, estava dentro.
Lembrou-se do artigo que
lera em ElHombre – 10 coisas que inspiram confiança nas
mulheres e pensou colocar à prova ao menos dois pontos: falar
pouco de si e comentar sobre sua paixão esportiva. Mal teve tempo de
balbuciar seu improviso. Ela, confiante, de passagem pela cidade,
gostaria de saber se os nativos eram tudo que ouvira falar na sua
interiorana, aconchegante e hospitaleira cidadezinha. A honra era
dele, conhecer alguém com disposição de testar hipóteses. E já
que não estava ali para discussões teóricas, concordou em esticar
a noite até o apartamento mais próximo, no caso o dela. Os últimos
serão os primeiros, bendita santa da última hora.
Temerário! Apenas no dia
seguinte, pode considerar o que acontecera de fato, que encontro fora
aquele, quem era aquela mulher e mais: como viera parar naquela
banheira, coberto de gelo. Dopado. Sim, fora dopado e arrastado até
aquele quarto de quinta. Lembrou-se da beldade a oferecer-lhe uma
taça de espumante e depois... Nada, zero, buraco negro. Ao lado,
sobre um banco de madeira, um bilhete, onde leu, escrita com letra
impecável, a sentença que o fez deveras acordar: 'Ligue logo para
um hospital se planeja continuar vivo'. Uma dor aguda apossou-se do
seu flanco direito. Ao apalpar-se sentiu algo incomum. Com
dificuldade, levantou-se e procurou um espelho. 'Belezura de merda,
só queria o meu rim'”.
Diante de uma plateia
boquiaberta, vovó sorriu e gritou: “Quem quer biscoito?”. Guiado por sua magia, levantei o braço por primeiro e saí arrastando minhas
finadas e mixurucas canelas.
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