sábado, 12 de outubro de 2013

Lendas Urbanas - 9. A Dupla Infernal



Tenacious D em: The Pick Of Destiny, 2006


Na goiana Vila da Pataca, encostadinha em Minas, os plantadores de tomates rasteiros, nas rodas de sábado na venda, mesmo quando fazem esforço não conseguem deixar de tocar no assunto que domina a região há mais de cinquenta anos, tempo de vida, pois, da maioria dos comensais: os dois meninos buchudos e catarrentos que, do dia pra noite (mais da noite que pro dia), de um jeito misterioso, viraram a maior dupla sertaneja desses brasis e que tais. Tal conto, pertinho de virar lenda, é parecido com um ou outro causo de mistagogia, que os compadres maçons costumam recitar quando querem deixar alguns indesejáveis, quase sempre boçais, do lado de fora de uma conversa. O negócio é que ninguém até hoje naquela bodega conseguiu descobrir quem foi que ensinou os dois mequetrefes a cantar daquele jeito, uma misturada grunhida tal e qual taquara rachada azeitada com o ramerrão da roda de carro de boi. Nenhuma alma viva daquela região assumira qualquer ascendência sobre ou sequer parentesco com aquele fenômeno. Donde é que aquilo tinha vindo, de que buraco tal aleivosia tinha nascido? Quem pariu Mateus? Todo mundo ali conhecia os dois malungos desde os cueiros, brincaram com eles, comeram do mesmo prato no eito, chuparam da mesma manga, beberam da mesma cacimba (alguns tinham até feito troca-troca)… Quando foi que a vida se tornou encruzilhada? Uns pra ali, outros pra cá, outros sei lá. Não havia um por ali que não apreciasse o melhor da música brasileira dos sertões, nos cantos aboiadores, nos repentes de tarefa ou de empreitada, nos versos satíricos e de folia, nas ladainhas santificadas de procissão e de novena… Porém, aquele modo de entoar era distante de todo e qualquer talento, destoava de tudo que era tradição. E mesmo assim, qual um feitiço tomara conta das mentes e corpos da juventude e, por incrível que pareça, das senhoras donas de casa e mães de família de tudo quanto é lugar. Que jugo era aquele? Nada naquela música dizia: é coisa de homem. Estava mais para um rebolar de trejeitos, um cacarejo pavoneador, uma tertúlia de salivas e líquidos corporais lambuzados com baba de moça e muita cachaça. Homem pra ser amado precisa macaquear sentimentos diante de mulher e daquele jeito? Onde é que andava a justiça do mundo numa hora daquela? De legítimo aquilo não tinha nada. Ali tinha dedo do sujo. Podiam ganhar rios de dinheiro, como de fato ganharam e ganhavam e ainda ganhariam, para comprar quantas fazendas quisessem, em qualquer estado desta esbórnia mas isto não tiraria jamais da cabeça de ninguém que naquele angu faltava azeitona. Tese parcialmente compartilhada pelo vigário, mesmo porque apadrinhara diante do divino as duas pobres criaturas quando crianças em mais pobre ainda idade agravado pelo fato de conseguir enxergar uma nesga de futuro através das boas e largas doações vinda agora do lado escuro da força assim denominada pelo pastor, que do alto do seu aparato político altamente mobilizado para as próximas eleições, proclamava: quem não anda com deus, anda com quem? Ao que o coro se arrepiava e mudava de assunto que aquilo não era hora de mexer com o que a gente não entende. Mas o que é mesmo que a gente não entende? Como é que aqueles dois saburrentos conseguiram fazer fortuna: isto é o que pega. Tem nada não. Mais dia menos dia, a verdade aparece.

E não é que tinham razão, um dia ela apareceu. E veio acompanhada. Era uma manhã como qualquer outra, todos estavam na lida como sempre, os cães tomavam sol na praça da matriz juntos a dois ou três desocupados como se tivessem vindo ao mundo para fazer exatamente o que faziam todo santo dia; o posto de saúde não despertava suspeitas de abrigar qualquer tipo de vida inteligente, embora corresse à boca pequena notícia de uma suposta invasão cubana, o que trazia certa apreensão à vila e adjacências, estresse maior que aquele causado pela última enchente que levou três quintos das propriedades pro lado ausente da vida e, como se não bastasse, depois de tantas desgraças – que parece não existir vasilha suficiente para contê-las e guardá-las, visto ser o mundo humano um vale de lágrimas e cavilações – aparece mais esta pra completar o quadro mais que sofrido desta gente escorraçada da sorte. Não é que logo ali, na esquina da barbearia, bem junto ao monumento cívico, do lado de lá da praça, no meio do único canteiro de flores daquele pacato e esquecido vilarejo, dois endiabradinhos, ruivos que nem chama de gasolina, nus tal e qual se vem ao mundo e ainda por cima com as vergonhas balançando, surgiram, olhos a fumegar rojões e as ventas arreganhadas a farejar fujões, batendo os pés fendidos nas gretas renhidas do chão cansado e poeirento enquanto gritavam, em praguejo, que dali não sairiam sem a sua (lá deles) justa paga: as almas da dupla sertaneja, prometida em tenra idade pelo próprio pai, já falecido, das criaturas. Deus nos acuda! O padre logo trouxe seu cordão de são francisco com seus cinco nós a lembrarem as cinco chagas de Cristo associadas às cinco virtudes do santo, um balde de água benta e uma estola novinha em folha, ricamente decorada com galões contrastantes com bordado e franja. O povo todo logo cercou o paço e após muito baraço e pregação não foi possível exorcizar os dois coisos que insistiam que dali não arredavam nem que chovesse canivete e ainda por cima exigiam a presença da dupla, a esta hora escondida e encolhida debaixo de cama da suntuosa mansão na fazenda Boa Esperança que, àquela altura dos acontecimentos de nada servia visto todos naquelas redondezas a terem perdido. Vira, mexe, negocia, conchava daqui e dali… Chegou-se a uma solução: ninguém perderia nada mas, uma coisa tinha que ficar patente: não se enrica em vão. Concordaram em deixar para as próximas gerações, numa salinha nos fundos da Câmara, a prova inconteste daquela assustadora verdade: o primeiro disco gravado pela famosa dupla. Lá, se botado pra tocar ao contrário a faixa quatro, em 78 rotações de qualquer vitrola, ouve-se o satânico acordo para quem tiver ouvidos pra ouvir em alto e bom som com eco estereofônico. Os danados se escafederam numa nuvem de mosquitos da dengue no lombo de duas vacas loucas e tudo voltou ao normal que ninguém é de ferro. Quem se deu bem foi o pastor que encontrou, no episódio, seu ovo de colombo e uma fonte de financiamento estável à sua candidatura vitoriosa a presidente da república.


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