Tenacious D em: The Pick Of Destiny, 2006
Na goiana Vila da Pataca,
encostadinha em Minas, os plantadores de tomates rasteiros, nas rodas
de sábado na venda, mesmo quando fazem esforço não conseguem
deixar de tocar no assunto que domina a região há mais de cinquenta
anos, tempo de vida, pois, da maioria dos comensais: os dois meninos
buchudos e catarrentos que, do dia pra noite (mais da noite que pro
dia), de um jeito misterioso, viraram a maior dupla sertaneja desses
brasis e que tais. Tal conto, pertinho de virar lenda, é parecido
com um ou outro causo de mistagogia, que os compadres maçons
costumam recitar quando querem deixar alguns indesejáveis, quase
sempre boçais, do lado de fora de uma conversa. O negócio é que
ninguém até hoje naquela bodega conseguiu descobrir quem foi que
ensinou os dois mequetrefes a cantar daquele jeito, uma misturada
grunhida tal e qual taquara rachada azeitada com o ramerrão da roda
de carro de boi. Nenhuma alma viva daquela região assumira qualquer
ascendência sobre ou sequer parentesco com aquele fenômeno. Donde é
que aquilo tinha vindo, de que buraco tal aleivosia tinha nascido?
Quem pariu Mateus? Todo mundo ali conhecia os dois malungos desde os
cueiros, brincaram com eles, comeram do mesmo prato no eito, chuparam
da mesma manga, beberam da mesma cacimba (alguns tinham até feito
troca-troca)… Quando foi que a vida se tornou encruzilhada? Uns pra
ali, outros pra cá, outros sei lá. Não havia um por ali que não
apreciasse o melhor da música brasileira dos sertões, nos cantos
aboiadores, nos repentes de tarefa ou de empreitada, nos versos
satíricos e de folia, nas ladainhas santificadas de procissão e de
novena… Porém, aquele modo de entoar era distante de todo e
qualquer talento, destoava de tudo que era tradição. E mesmo assim,
qual um feitiço tomara conta das mentes e corpos da juventude e, por
incrível que pareça, das senhoras donas de casa e mães de família
de tudo quanto é lugar. Que jugo era aquele? Nada naquela música
dizia: é coisa de homem. Estava mais para um rebolar de trejeitos,
um cacarejo pavoneador, uma tertúlia de salivas e líquidos
corporais lambuzados com baba de moça e muita cachaça. Homem pra
ser amado precisa macaquear sentimentos diante de mulher e daquele
jeito? Onde é que andava a justiça do mundo numa hora daquela? De
legítimo aquilo não tinha nada. Ali tinha dedo do sujo. Podiam
ganhar rios de dinheiro, como de fato ganharam e ganhavam e ainda
ganhariam, para comprar quantas fazendas quisessem, em qualquer
estado desta esbórnia mas isto não tiraria jamais da cabeça de
ninguém que naquele angu faltava azeitona. Tese parcialmente
compartilhada pelo vigário, mesmo porque apadrinhara diante do
divino as duas pobres criaturas quando crianças em mais pobre ainda
idade agravado pelo fato de conseguir enxergar uma nesga de futuro
através das boas e largas doações vinda agora do lado escuro da
força assim denominada pelo pastor, que do alto do seu aparato
político altamente mobilizado para as próximas eleições,
proclamava: quem não anda com deus, anda com quem? Ao que o coro se
arrepiava e mudava de assunto que aquilo não era hora de mexer com o
que a gente não entende. Mas o que é mesmo que a gente não
entende? Como é que aqueles dois saburrentos conseguiram fazer
fortuna: isto é o que pega. Tem nada não. Mais dia menos dia, a
verdade aparece.
E não é que tinham razão, um dia ela apareceu. E
veio acompanhada. Era uma manhã como qualquer outra, todos estavam
na lida como sempre, os cães tomavam sol na praça da matriz juntos
a dois ou três desocupados como se tivessem vindo ao mundo para
fazer exatamente o que faziam todo santo dia; o posto de saúde não
despertava suspeitas de abrigar qualquer tipo de vida inteligente,
embora corresse à boca pequena notícia de uma suposta invasão
cubana, o que trazia certa apreensão à vila e adjacências,
estresse maior que aquele causado pela última enchente que levou
três quintos das propriedades pro lado ausente da vida e, como se
não bastasse, depois de tantas desgraças – que parece não
existir vasilha suficiente para contê-las e guardá-las, visto ser o
mundo humano um vale de lágrimas e cavilações – aparece mais
esta pra completar o quadro mais que sofrido desta gente escorraçada
da sorte. Não é que logo ali, na esquina da barbearia, bem junto ao
monumento cívico, do lado de lá da praça, no meio do único
canteiro de flores daquele pacato e esquecido vilarejo, dois
endiabradinhos, ruivos que nem chama de gasolina, nus tal e qual se
vem ao mundo e ainda por cima com as vergonhas balançando, surgiram,
olhos a fumegar rojões e as ventas arreganhadas a farejar fujões,
batendo os pés fendidos nas gretas renhidas do chão cansado e
poeirento enquanto gritavam, em praguejo, que dali não sairiam sem a
sua (lá deles) justa paga: as almas da dupla sertaneja, prometida em
tenra idade pelo próprio pai, já falecido, das criaturas. Deus nos
acuda! O padre logo trouxe seu cordão de são francisco com seus
cinco nós a lembrarem as cinco chagas de Cristo associadas às cinco
virtudes do santo, um balde de água benta e uma estola novinha em
folha, ricamente decorada com galões contrastantes com bordado e
franja. O povo todo logo cercou o paço e após muito baraço e
pregação não foi possível exorcizar os dois coisos que insistiam
que dali não arredavam nem que chovesse canivete e ainda por cima
exigiam a presença da dupla, a esta hora escondida e encolhida
debaixo de cama da suntuosa mansão na fazenda Boa Esperança que,
àquela altura dos acontecimentos de nada servia visto todos naquelas
redondezas a terem perdido. Vira, mexe, negocia, conchava daqui e
dali… Chegou-se a uma solução: ninguém perderia nada mas, uma
coisa tinha que ficar patente: não se enrica em vão. Concordaram em
deixar para as próximas gerações, numa salinha nos fundos da
Câmara, a prova inconteste daquela assustadora verdade: o primeiro
disco gravado pela famosa dupla. Lá, se botado pra tocar ao
contrário a faixa quatro, em 78 rotações de qualquer vitrola,
ouve-se o satânico acordo para quem tiver ouvidos pra ouvir em alto
e bom som com eco estereofônico. Os danados se escafederam numa
nuvem de mosquitos da dengue no lombo de duas vacas loucas e tudo
voltou ao normal que ninguém é de ferro. Quem se deu bem foi o
pastor que encontrou, no episódio, seu ovo de colombo e uma fonte de
financiamento estável à sua candidatura vitoriosa a presidente da
república.
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