Imagens Google, escultura em túmulo
Quando
Viviane subiu os degraus da Faculdade de Psicologia, naquela manhã
de terça corriqueiramente cinzenta, percebeu que não se sentia
preparada para enfrentar a morte e, ao parar para respirar,
descobriu que não conseguia lidar com suas próprias emoções e
sentimentos. Isto disse ao Jacques, no interior do gabinete finamente
decorado com símbolos sacrificiais, quando questionada pelo mentor
sobre qual tema finalmente definira para sua monografia final e cujo
título fora elaborado durante a noite passada em insônia – A
dor da morte: palavras, gestos e atos em velórios e enterros.
Disse mais: escolheria aleatoriamente três velórios e seguiria os
féretros até a entrega dos corpos aos vermes. Não, não incluiria
esta última frase na dissertação. Estava de fato interessada nos
sentimentos das pessoas, nas reações delas. Desejava observar o
quanto de reverência ainda havia. O que em nós se debatia diante do
inexorável. Os clichês e as autenticidades. O quanto de respeito e
sabedoria havia nos pequenos gestos e nas sussurradas palavras
nalguns instantes de misterioso pudor, onde se via ela própria
compelida a vênias diante de supremo poder. Talvez por sua origem
católica e oito anos no Sacré-Coeur. Temor e louvor. Confusão. Não
basta levar uma vida dedicada à caridade, o cultivo da esperança,
não se envolver com o oculto, não fazer mal ao próximo e nem
praticar a usura para, no além, não ter que passar por exaustivas
burocracias para receber seu lugar de direito no céu? Para que se
preocupar? Morrer, morreu! Não, não bastava. A morte é parte da
existência. Estar vivo é ser finito. Praticamente é o único fato
de que temos certeza. O indivíduo, ao nascer, inicia sua preparação
para a morte, é tudo. E o modo
como lidamos com a morte parecia-lhe ineficaz.
A exemplo
da questão da origem e sentido da vida, Viviane travava um intenso
debate interior sobre o que é a morte e no que consiste morrer. Nos
clássicos, lera o conceito: parada das funções vitais; separação
do corpo da alma; parada da respiração e das funções cardíacas
e, mais recentemente, devido ao avanço da ciência e da tecnologia,
cessação da função cerebral, dado que se pode manter as funções
cardíacas e respiratórias enquanto nada se pode fazer para manter o
cérebro funcionando. Mas isto não lhe dizia do porque do temor e da
negação da realidade da morte. Porque desejamos tanto fugir a isto?
Cedo ou tarde, temos que encará-la. E sabia por onde começar:
admitir para si mesma esta possibilidade. Aceitar a realidade da
própria morte. Desejava alcançar a paz interior e vir a contribuir
para a tão necessária paz mundial. Desejava perceber o porque de
termos transformado a morte em tabu, do porque ela ficar escondida
das crianças, banida das conversas cotidianas? Sim, senhor, medo,
medo dos sentimentos que possam aflorar, medo da intensidade das
respostas. Para não lembrarmos da nossa finitude, talvez. Nós, os
transitórios.
Munida
das melhores e positivas intenções partiu para o campo. Seu tempo
era pouco, perdera muito tempo pensando e agora tinha menos de um mês
para apresentar suas conclusões. No primeiro velório, no próprio
campus, assistiu a discursos e desfiles de egos e conflitos. O decano
da faculdade história havia falecido na noite anterior, vítima de
um ataque fulminante e seu velório deu-se ali mesmo, na reitoria.
Munida de uma memória fotográfica, cuidava de registrar, nos
mínimos detalhes, o conjunto e as nuances individuais. Após meia
hora de enfado e nenhuma relevância, notou uma senhorinha, de vastos
cabelos brancos, com uma mantilha antiga sobre a cabeça,
praticamente flutuando entre as pessoas indiferentes à sua manifesta
compaixão. Intrigada, Viviane tentou aproximar-se da idosa mas a
perdeu de vista em meio ao burburinho. Após as palavras finais do
reitor, o caixão foi fechado e todos sentiram um alívio por
finalmente terem se livrado daquele entulho da ditadura, embora a
família não tivesse nada a ver com isto.
Sentindo-se
atrasada em relação a seus cálculos, chegou ao segundo velório
levada pela tia da cantina num bairro popular, no alto de uma colina,
longe do asfalto. Lugar adequado para se morrer de fome ou moléstia.
A pobre criança, um anjinho, havia falecido nos braços da mãe, uma
doméstica de hábitos primitivos, e agora repousava numa caixa de
papelão decorada com folhas de celofane para não parecer um lixo
qualquer. À volta, do irmãozinho defunto, cinco outros desnutridos,
alheios às leis naturais e humanas e à meia dúzia de adultos que
mastigavam uma veneranda salsicha a goles atrevidos de cana. O choro
já havia sido esgotado em algumas poucas lágrimas. E em meio à
valas, dejetos e varais de farrapos, Viviane sentiu a presença da
velha. Daquela dos longos cabelos brancos. Desta vez teve a nítida
impressão de que duas estrelas brilhavam no fundo daqueles tristes
olhos voltados para o minúsculo corpico que jazia sobre uns restos
de cadeiras e pensou ser visagem o beijo na testa que somente ela vira. O calor infernal e o odor encardido que varejava no ar, faziam a vida parecer uma alucinação.
Estava certa de que entrara num beco sem saída quando foi arrastada pelo pai
ao velório de um velho amigo da família, um empresário bem
sucedido. Todos ali foram convidados a dedo, não se permitia
penetras. No entanto a velhinha lá estava e Viviane não conseguiu
atinar quem a levara tão rápido ao cemitério pois, ao desembarcar
do automóvel paterno, a vira ocupar lugar privilegiado diante do
túmulo preparado para receber o ilustre inquilino. Quando a
cerimônia terminou, Viviane cuidadosa, tratou de segui-la. Não
perderia a oportunidade de conversar com aquela figura que, em todas
as ocasiões, estava diante dos defuntos, como se fosse próxima.
Disse ao pai que demoraria um pouco no campo santo, queria aproveitar
para relaxar e meditar. O velho deu-lhe um beijo da bochecha, como
sempre fazia desde tempos e cuidou de tirar a esposa daquele ambiente
saturado de umidade.
Diante da
sepultura 19, da quadra B, um belo monumento em mármore simbolizando
a solidão adornava a cripta. Viviane aproximou-se e notou que a foto
no túmulo era da mesma pessoa que ela tinha diante de si. Como isto
é possível? Sem que tivesse tempo para demonstrar todo o seu
espanto, todas as suas perguntas foram ali respondidas, num breve
instante, num átimo de segundo. Vivi as absorveu como se fosse o
próprio ar, ar que sentiu respirava agora num outro meio. O que és
tu?, insistiu. - Sou uma colaboradora da morte, disse sem
qualquer ponta de orgulho a mulher cujos olhos projetavam réstias. -
Sou eu que passo o filme da vida, para orientar a alma até seu
destino final. Viviane mal teve tempo de sacar qualquer
argumento, de racionalizar qualquer emoção. Dentro dela uma sucessão de momentos; em suas retinas, imagens tatuadas dançaram; no seu coração, indeléveis lembranças, boas e más, feitos, perdas, amores, sonhos e desilusões... todas as suas esperanças
desfilaram agradecidas. Duas lágrimas saudaram a vida razoável que
levara. Não sentia nenhuma ponta de remorso. Apenas uma dor, levíssima
dor, que insistia em antagonizar sua alegria. Quando os funcionários
do cemitério a encontraram caída sobre o mármore, trazia afixado
no rosto um sorriso lívido.
😊
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