sábado, 18 de maio de 2013

Lendas Urbanas - 3. A Colaboradora da Morte




Imagens Google, escultura em túmulo


Quando Viviane subiu os degraus da Faculdade de Psicologia, naquela manhã de terça corriqueiramente cinzenta, percebeu que não se sentia preparada para enfrentar a morte e, ao parar para respirar, descobriu que não conseguia lidar com suas próprias emoções e sentimentos. Isto disse ao Jacques, no interior do gabinete finamente decorado com símbolos sacrificiais, quando questionada pelo mentor sobre qual tema finalmente definira para sua monografia final e cujo título fora elaborado durante a noite passada em insônia – A dor da morte: palavras, gestos e atos em velórios e enterros. Disse mais: escolheria aleatoriamente três velórios e seguiria os féretros até a entrega dos corpos aos vermes. Não, não incluiria esta última frase na dissertação. Estava de fato interessada nos sentimentos das pessoas, nas reações delas. Desejava observar o quanto de reverência ainda havia. O que em nós se debatia diante do inexorável. Os clichês e as autenticidades. O quanto de respeito e sabedoria havia nos pequenos gestos e nas sussurradas palavras nalguns instantes de misterioso pudor, onde se via ela própria compelida a vênias diante de supremo poder. Talvez por sua origem católica e oito anos no Sacré-Coeur. Temor e louvor. Confusão. Não basta levar uma vida dedicada à caridade, o cultivo da esperança, não se envolver com o oculto, não fazer mal ao próximo e nem praticar a usura para, no além, não ter que passar por exaustivas burocracias para receber seu lugar de direito no céu? Para que se preocupar? Morrer, morreu! Não, não bastava. A morte é parte da existência. Estar vivo é ser finito. Praticamente é o único fato de que temos certeza. O indivíduo, ao nascer, inicia sua preparação para a morte, é tudo. E o modo como lidamos com a morte parecia-lhe ineficaz.

A exemplo da questão da origem e sentido da vida, Viviane travava um intenso debate interior sobre o que é a morte e no que consiste morrer. Nos clássicos, lera o conceito: parada das funções vitais; separação do corpo da alma; parada da respiração e das funções cardíacas e, mais recentemente, devido ao avanço da ciência e da tecnologia, cessação da função cerebral, dado que se pode manter as funções cardíacas e respiratórias enquanto nada se pode fazer para manter o cérebro funcionando. Mas isto não lhe dizia do porque do temor e da negação da realidade da morte. Porque desejamos tanto fugir a isto? Cedo ou tarde, temos que encará-la. E sabia por onde começar: admitir para si mesma esta possibilidade. Aceitar a realidade da própria morte. Desejava alcançar a paz interior e vir a contribuir para a tão necessária paz mundial. Desejava perceber o porque de termos transformado a morte em tabu, do porque ela ficar escondida das crianças, banida das conversas cotidianas? Sim, senhor, medo, medo dos sentimentos que possam aflorar, medo da intensidade das respostas. Para não lembrarmos da nossa finitude, talvez. Nós, os transitórios.

Munida das melhores e positivas intenções partiu para o campo. Seu tempo era pouco, perdera muito tempo pensando e agora tinha menos de um mês para apresentar suas conclusões. No primeiro velório, no próprio campus, assistiu a discursos e desfiles de egos e conflitos. O decano da faculdade história havia falecido na noite anterior, vítima de um ataque fulminante e seu velório deu-se ali mesmo, na reitoria. Munida de uma memória fotográfica, cuidava de registrar, nos mínimos detalhes, o conjunto e as nuances individuais. Após meia hora de enfado e nenhuma relevância, notou uma senhorinha, de vastos cabelos brancos, com uma mantilha antiga sobre a cabeça, praticamente flutuando entre as pessoas indiferentes à sua manifesta compaixão. Intrigada, Viviane tentou aproximar-se da idosa mas a perdeu de vista em meio ao burburinho. Após as palavras finais do reitor, o caixão foi fechado e todos sentiram um alívio por finalmente terem se livrado daquele entulho da ditadura, embora a família não tivesse nada a ver com isto.

Sentindo-se atrasada em relação a seus cálculos, chegou ao segundo velório levada pela tia da cantina num bairro popular, no alto de uma colina, longe do asfalto. Lugar adequado para se morrer de fome ou moléstia. A pobre criança, um anjinho, havia falecido nos braços da mãe, uma doméstica de hábitos primitivos, e agora repousava numa caixa de papelão decorada com folhas de celofane para não parecer um lixo qualquer. À volta, do irmãozinho defunto, cinco outros desnutridos, alheios às leis naturais e humanas e à meia dúzia de adultos que mastigavam uma veneranda salsicha a goles atrevidos de cana. O choro já havia sido esgotado em algumas poucas lágrimas. E em meio à valas, dejetos e varais de farrapos, Viviane sentiu a presença da velha. Daquela dos longos cabelos brancos. Desta vez teve a nítida impressão de que duas estrelas brilhavam no fundo daqueles tristes olhos voltados para o minúsculo corpico que jazia sobre uns restos de cadeiras e pensou ser visagem o beijo na testa que somente ela vira. O calor infernal e o odor encardido que varejava no ar, faziam a vida parecer uma alucinação.

Estava certa de que entrara num beco sem saída quando foi arrastada pelo pai ao velório de um velho amigo da família, um empresário bem sucedido. Todos ali foram convidados a dedo, não se permitia penetras. No entanto a velhinha lá estava e Viviane não conseguiu atinar quem a levara tão rápido ao cemitério pois, ao desembarcar do automóvel paterno, a vira ocupar lugar privilegiado diante do túmulo preparado para receber o ilustre inquilino. Quando a cerimônia terminou, Viviane cuidadosa, tratou de segui-la. Não perderia a oportunidade de conversar com aquela figura que, em todas as ocasiões, estava diante dos defuntos, como se fosse próxima. Disse ao pai que demoraria um pouco no campo santo, queria aproveitar para relaxar e meditar. O velho deu-lhe um beijo da bochecha, como sempre fazia desde tempos e cuidou de tirar a esposa daquele ambiente saturado de umidade.

Diante da sepultura 19, da quadra B, um belo monumento em mármore simbolizando a solidão adornava a cripta. Viviane aproximou-se e notou que a foto no túmulo era da mesma pessoa que ela tinha diante de si. Como isto é possível? Sem que tivesse tempo para demonstrar todo o seu espanto, todas as suas perguntas foram ali respondidas, num breve instante, num átimo de segundo. Vivi as absorveu como se fosse o próprio ar, ar que sentiu respirava agora num outro meio. O que és tu?, insistiu. - Sou uma colaboradora da morte, disse sem qualquer ponta de orgulho a mulher cujos olhos projetavam réstias. - Sou eu que passo o filme da vida, para orientar a alma até seu destino final. Viviane mal teve tempo de sacar qualquer argumento, de racionalizar qualquer emoção. Dentro dela uma sucessão de momentos; em suas retinas, imagens tatuadas dançaram; no seu coração, indeléveis lembranças, boas e más, feitos, perdas, amores, sonhos e desilusões... todas as suas esperanças desfilaram agradecidas. Duas lágrimas saudaram a vida razoável que levara. Não sentia nenhuma ponta de remorso. Apenas uma dor, levíssima dor, que insistia em antagonizar sua alegria. Quando os funcionários do cemitério a encontraram caída sobre o mármore, trazia afixado no rosto um sorriso lívido.


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