sábado, 11 de maio de 2013

Lendas Urbanas - 2. O Palhaço da Kombi Azul



Fotograma do filme IT, baseado no livro de Stephen King


Sábado é dia de levar os filhos para o parque. É dia de deitar na grama, empinar pipa, jogar bola, tomar sorvete e comer tudo que é “porcaria” para no final pra voltar pra casa feliz mas cansado de dá dó. Sábado tem sido um dia igual para a família Corrêa. Seu Corrêa, dona Corrêa e os dois correinhas (alegria e bagunça da casa) têm cumprido este ritual desde sempre, desde que as crianças quebraram o primeiro vaso da sala. Sabem como é, criança e bicho precisam de espaço. Lei inexorável da natureza.

Espaço é o que no falta no Parque das Araras, área central para onde convergem todas as almas benditas, malditas e purgativas da cidade em busca de pouso e descanso em meio a árvores centenárias, palmeiras gritantes, sombras copiosas de acácias, jatobás e magnólias em volta de jardins e suas variadas e perfumadas flores e seus lagos de cisnes fidalgais. Em meio ao frenesi dos pássaros, micos e borboletas, alguns prédios modernosos – galerias, anfiteatros e um fenomenal Planetário – envoltos em heras de diversas procedências, além de um parquinho enorme, brinquedos múltiplos, acessíveis a todas as idades e, quadras, muitas quadras esportivas para todas as praticas e gostos. Uma benção à saudosa memória da metrópole que se vê condenada a repetir dezenas de vezes os mesmos erros de um presente que não encontra saída no labirinto progressista que ao mesmo tempo que atrai, repudia. Um caso de amor e ódio mal resolvido. É isto que vemos todos os sábados no parque. Gente encantada e gente desencantada. Entre os encantados, destaca-se a família Corrêa e uma dúzia de esqueitistas que insistem em desafiar as leis do movimento para deleite de umas cinco meninas. Entre os desencantados: mendigos, leitoras de mãos, garotas e garotos de programa, vendedores de água, guardas-civis e uma trupe de palhaços que tenta animar os passantes com números de malabares auxiliados por duas ou três piadas prontas paridas em circos mambembes do tempo do onça.

Não é comum palhaços darem o ar da graça em plena luz do dia nas calçadas. Palhaços habitam circos e filmes. E embora tenham por objetivo transmitirem alegria, quase sempre o fazem por motivos escusos. Pintam o rosto para esconder alguma magoa, algum desgosto, geralmente. No entanto, hoje é sábado e não é hora de se pensar nestas coisas. Tanto assim que o casal Corrêa não reparam na trupe, tampouco naquele que se destaca da paisagem por sua maquiagem imensamente branca vazada por círculos vermelhos a exemplo de olhos e que insiste em preferir o anonimato da sombra arbórea ou o oculto de algum arbusto, alegremente sinistro. Os corrêa-mirins o notam, sentem a sua risada rasgante e aquele hálito babado de caramelo mascavo. Crianças adoram doces mas aquele arde. Na ânsia de cuspirem, tropeçam e deixam escapar o saco de pipoca e duas bexigas amarelas. Que há? Que há? O palhaço. Que palhaço? Aquele. Não vejo palhaço algum.

A gente só nota aquilo que interessa. E isto pode ser fatal. Não notar o incomum. Aquele incomum que consegue tornar-se comum a ponto de misturar-se a nós como se não fosse incomum. Onde mora o pecado. Ás vezes paga-se caro, Às vezes isto basta para provocar uma comoção. E o pior é que não basta. Nem para uns nem para outros. Pois estamos sempre em busca da novidade. No caso da família Corrêa, a novidade veio por conta deste incomum que está disposto a nos ministrar uma terrível lição de moral que nos escapa, mas que o move em direção ao riso mesmo que forçado. Ainda haverão de rir, vocês que vaiaram! E acena. E atrai. E seduz, o danado. Sumiços fugazes, flaches ali e aqui, sua imagem multiplicada e aquele timbre zoando da escala, dissonante, troante, alucinadamente infantil e irresponsável.

A Kombi Azul estacionada no portão leste foi relatada pela gorda da bicicleta, disposta a colaborar com os bons costumes. Quem mais viu? Para onde foi? Que fazer, poderes divinos, agora que tudo está perdido? Que não há mais motivo algum para vir passear no parque aos sábados, que a pipa e a bola serão esquecidas no fundo da garagem para sempre ou até enquanto existir garagem agora que não há motivo nenhum para continuar vivendo nesta cidade que busca no sequestro de inocentes um motivo para venda de milhões de jornais, três longas metragem, quatro curtas, uma série de televisão com mais de 30 capítulos, cinco livros de ficção, um dicionário, dezenas de revistas, além de calhamaços de relatórios policiais, pareceres autenticados pelos mais experimentados psiquiatras forenses e exaustivas pesquisas sobre a violência nos grandes centros, tudo pago com o dinheiro dos contribuintes, sem falar deste conto que não constava dos planos originais do Criador e que ao invés de trazer luz ao caso faz é jogar gasolina na brasa.

A conclusão é de que aquele acontecido isolado no parque das araras, agora diminuído e apequenado pela evasão dos seus frequentadores temerosos de que suas ingenuidades deem motivos para aterrorizantes manchetes que só fomentam o medo e a incerteza de estar vivo nesta parte do planeta, trouxe à tona pavorosos meandros de uma rede organizada mundialmente com o objetivo de comercializar órgãos e caracteres humanos. Quando a polícia invadiu a suposta sede da organização, na fronteira entre Portugal e Espanha, em plena crise do euro, foram encontradas robustas provas de que a empresa atuava também no ramo da escravatura sexual sem distinção de idade, cor, raça, credo e posição social, fortemente subsidiada por um velho e teimoso xeique das arábias, afofado em petrodólares, sequioso da toda poderosa e divina misericórdia de Alá visto que, pecador, não via saída senão investir pesado na pesquisa e desenvolvimento de alta tecnologia que lhe desse a plena e total imortalidade.

Presos alguns piabas, o caso foi perdendo vigor até cair no completo esquecimento e só fazer parte da sessão coruja do principal canal de televisão em algumas sextas-feiras treze. O palhaço? Fora visto ainda por várias crianças cujos pais não conseguem enxergar o que está a um palmo adiante dos seus próprios narizes. E virou lenda, a criatura. Simplesmente designada nos círculos fechados de uns poucos grupos que insistem em manter vivos os medos da infância, como a Coisa: aquilo que a gente não pode mencionar sob pena de trazer-lhe à vida e permitir sua trajetória recomeçada de sangue e desespero. Um sério candidato a acordar numa tarde em plena Marginal, ao lado de um baú repleto de variados trajes de palhaços, estojos de maquiagem e inúmeras fotografias de crianças sorridentes sentadas diante de um improvisado picadeiro, dentro de uma Kombi Azul. Escandalosa é a vida. Cínico o autor. 


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