Fotograma do filme IT, baseado no livro de Stephen King
Sábado é
dia de levar os filhos para o parque. É dia de deitar na grama,
empinar pipa, jogar bola, tomar sorvete e comer tudo que é
“porcaria” para no final pra voltar pra casa feliz mas cansado de
dá dó. Sábado tem sido um dia igual para a família Corrêa. Seu
Corrêa, dona Corrêa e os dois correinhas (alegria e bagunça da
casa) têm cumprido este ritual desde sempre, desde que as crianças
quebraram o primeiro vaso da sala. Sabem como é, criança e bicho
precisam de espaço. Lei inexorável da natureza.
Espaço é
o que no falta no Parque das Araras, área central para onde
convergem todas as almas benditas, malditas e purgativas da cidade em
busca de pouso e descanso em meio a árvores centenárias, palmeiras
gritantes, sombras copiosas de acácias, jatobás e magnólias em
volta de jardins e suas variadas e perfumadas flores e seus lagos de
cisnes fidalgais. Em meio ao frenesi dos pássaros, micos e
borboletas, alguns prédios modernosos – galerias, anfiteatros e um
fenomenal Planetário – envoltos em heras de diversas procedências,
além de um parquinho enorme, brinquedos múltiplos, acessíveis a
todas as idades e, quadras, muitas quadras esportivas para todas as
praticas e gostos. Uma benção à saudosa memória da metrópole que
se vê condenada a repetir dezenas de vezes os mesmos erros de um
presente que não encontra saída no labirinto progressista que ao
mesmo tempo que atrai, repudia. Um caso de amor e ódio mal
resolvido. É isto que vemos todos os sábados no parque. Gente
encantada e gente desencantada. Entre os encantados, destaca-se a
família Corrêa e uma dúzia de esqueitistas que insistem em
desafiar as leis do movimento para deleite de umas cinco meninas.
Entre os desencantados: mendigos, leitoras de mãos, garotas e
garotos de programa, vendedores de água, guardas-civis e uma trupe
de palhaços que tenta animar os passantes com números de malabares
auxiliados por duas ou três piadas prontas paridas em circos
mambembes do tempo do onça.
Não é
comum palhaços darem o ar da graça em plena luz do dia nas
calçadas. Palhaços habitam circos e filmes. E embora tenham por
objetivo transmitirem alegria, quase sempre o fazem por motivos
escusos. Pintam o rosto para esconder alguma magoa, algum desgosto,
geralmente. No entanto, hoje é sábado e não é hora de se pensar
nestas coisas. Tanto assim que o casal Corrêa não reparam na trupe,
tampouco naquele que se destaca da paisagem por sua maquiagem
imensamente branca vazada por círculos vermelhos a exemplo de olhos
e que insiste em preferir o anonimato da sombra arbórea ou o oculto
de algum arbusto, alegremente sinistro. Os corrêa-mirins o notam,
sentem a sua risada rasgante e aquele hálito babado de caramelo
mascavo. Crianças adoram doces mas aquele arde. Na ânsia de
cuspirem, tropeçam e deixam escapar o saco de pipoca e duas bexigas
amarelas. Que há? Que há? O palhaço. Que palhaço? Aquele. Não
vejo palhaço algum.
A gente
só nota aquilo que interessa. E isto pode ser fatal. Não notar o
incomum. Aquele incomum que consegue tornar-se comum a ponto de
misturar-se a nós como se não fosse incomum. Onde mora o pecado. Ás
vezes paga-se caro, Às vezes isto basta para provocar uma comoção.
E o pior é que não basta. Nem para uns nem para outros. Pois
estamos sempre em busca da novidade. No caso da família Corrêa, a
novidade veio por conta deste incomum que está disposto a nos
ministrar uma terrível lição de moral que nos escapa, mas que o
move em direção ao riso mesmo que forçado. Ainda haverão de rir,
vocês que vaiaram! E acena. E atrai. E seduz, o danado. Sumiços
fugazes, flaches ali e aqui, sua imagem multiplicada e aquele timbre
zoando da escala, dissonante, troante, alucinadamente infantil e
irresponsável.
A Kombi
Azul estacionada no portão leste foi relatada pela gorda da
bicicleta, disposta a colaborar com os bons costumes. Quem mais viu?
Para onde foi? Que fazer, poderes divinos, agora que tudo está
perdido? Que não há mais motivo algum para vir passear no parque
aos sábados, que a pipa e a bola serão esquecidas no fundo da
garagem para sempre ou até enquanto existir garagem agora que não
há motivo nenhum para continuar vivendo nesta cidade que busca no
sequestro de inocentes um motivo para venda de milhões de jornais,
três longas metragem, quatro curtas, uma série de televisão com
mais de 30 capítulos, cinco livros de ficção, um dicionário,
dezenas de revistas, além de calhamaços de relatórios policiais,
pareceres autenticados pelos mais experimentados psiquiatras forenses
e exaustivas pesquisas sobre a violência nos grandes centros, tudo
pago com o dinheiro dos contribuintes, sem falar deste conto que não
constava dos planos originais do Criador e que ao invés de trazer
luz ao caso faz é jogar gasolina na brasa.
A
conclusão é de que aquele acontecido isolado no parque das araras,
agora diminuído e apequenado pela evasão dos seus frequentadores
temerosos de que suas ingenuidades deem motivos para aterrorizantes
manchetes que só fomentam o medo e a incerteza de estar vivo nesta
parte do planeta, trouxe à tona pavorosos meandros de uma rede
organizada mundialmente com o objetivo de comercializar órgãos e
caracteres humanos. Quando a polícia invadiu a suposta sede da
organização, na fronteira entre Portugal e Espanha, em plena crise
do euro, foram encontradas robustas provas de que a empresa atuava também no
ramo da escravatura sexual sem distinção de idade, cor, raça,
credo e posição social, fortemente subsidiada por um velho e
teimoso xeique das arábias, afofado em petrodólares, sequioso da
toda poderosa e divina misericórdia de Alá visto que, pecador, não
via saída senão investir pesado na pesquisa e desenvolvimento de
alta tecnologia que lhe desse a plena e total imortalidade.
Presos
alguns piabas, o caso foi perdendo vigor até cair no completo
esquecimento e só fazer parte da sessão coruja do principal canal
de televisão em algumas sextas-feiras treze. O palhaço? Fora visto
ainda por várias crianças cujos pais não conseguem enxergar o que
está a um palmo adiante dos seus próprios narizes. E virou lenda, a
criatura. Simplesmente designada nos círculos fechados de uns poucos
grupos que insistem em manter vivos os medos da infância, como a
Coisa: aquilo que a gente não pode mencionar sob pena de trazer-lhe à vida
e permitir sua trajetória recomeçada de sangue e desespero. Um sério
candidato a acordar numa tarde em plena Marginal, ao lado de um baú
repleto de variados trajes de palhaços, estojos de maquiagem e
inúmeras fotografias de crianças sorridentes sentadas diante de um
improvisado picadeiro, dentro de uma Kombi Azul. Escandalosa é a
vida. Cínico o autor.
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