Cena do curta metragem Mamá
Direção de Andrés Muschietti, 2008
Ao
inaugurar esta série penso: Estamos sempre em busca de algo novo,
algo que traga encanto às nossas vidinhas enfadadas de rotinas.
Sistemático, não fujo à regra. Invento modos e traçados. Repito usos
comuns bastante eficazes na batalha contra a pasmaceira. Eu, contador
de história, não inventei o nó. Apenas ofereço um ponto de
modo que o novelo ganhe volume e substância na imaginação do ouvinte
co-e-re-contador. Fiel ao adágio, apresento-vos minhas versões de
algumas Lendas Urbanas bastante difundidas. Como diria qualquer
Vulcano: “Vida longa e Prosperidade”.
“A
história é um jogo da memória.
Cada vez
que lembramos de algo
é
porque nasceu uma coisa nova no mundo.
Só não
coma palito de fósforo”.
Seu Toinho
Véra
Mestre
nas artes encantatórias
(1860-1958)
No
primeiro dia de aula, Jennifer, que ainda não havia digerido muito
bem aquela mudança de endereço e, dado os seus sentidos ultra
sensíveis, alimentados por vastas e profundas teorias de
conspiração, percebeu na parede lateral do primeiro corredor da
escola uma placa com os seguintes dizeres: “Aqui nasceu e
encontra-se enterrada Esmeralda Dias (1866-1891). Que sua alma possa
um dia encontrar a felicidade”.
No dia
seguinte, perguntou ao professor de história, o cara menos estúpido
daquele antro de almas penadas, o que significava aquilo. O jovem
respondeu que não era nada, que devia ser brincadeira do pessoal do
terceiro ano. Quando deu-lhe as costas ele acrescentou: - É
melhor ficar esperta. Eles adoram judiar dos novatos. Aquelas
poucas palavras, quem poderia imaginar, selou uma amizade que duraria
o tempo que a filha do casal de bancários, transferidos da capital
para aquele fim de mundo, permaneceu entre nós.
Ao
contrário dos da sua idade, ela passou a preferir a companhia do
professor e costumeiramente o visitava em sua casa. Os pais,
inicialmente, não viram com bons olhos aquele relacionamento mas, ao
perceberem que o temperamento da filha havia sofrido uma ligeira
modificação (só não atinaram se para melhor), acabaram por
decidir dar-lhe completa liberdade de movimentos. Quem sabe assim
conseguiriam alcançar a serenidade necessária para tocar o dia a
dia. Porém, serenidade era o que menos havia na conturbada vida de
Jennifer. Às voltas com a hostilidade dos colegas que espalharam
pela escola inteira seu envolvimento com as “artes das trevas”,
não raro era acusada de emporcalhar-se com salgadinhos e cigarros.
Ela ria e debochava daqueles manés, pouco se lixando para o que
achassem ou pensassem dela, até que um dia o professor perdeu o
controle.
- Sei
lá... Acho que posso acabar apaixonado por você.
- Você
apaixonado por mim?! Tá louco?
- Porque,
não sou capaz de amar.
- Nunca
me passou pela cabeça namorar quem quer que seja, muito menos você.
Não,
aquela amizade não podia continuar. Ele, a colocá-la naquela
situação! Quem ele pensava que era para vir com aquela história de
paixão? O mundo não tinha mesmo solução, precisava encontrar um
refúgio, precisava fugir de tudo aquilo. Reparem que ela não sabia
que o amigo tinha um medo danado de se envolver. Pela cabeça do
franzino professor costumava passar uns pensamentos um tanto quanto
sinistros, sei lá, coisas de maldição, pecado... Coisas que
costumavam arrepiar-lhe os cabelos da nuca cada vez que ocorria-lhe
lembrar-se de algumas passagens do seu sistemático passado. Vinha
evitando a todo custo “contaminar” a menina mas, a carne, como
todos sabem, é fraca e a alma perversa, ao ficar entre a cruz e a
espada optou por despejar seus dissolutos desejos sobre aquele pobre
coração que, sem ferramentas adequadas para lidar com qualquer
situação, saiu em debandada. Ficaram
de cara virada durante boa parte do semestre. Jennifer, matando aula,
indo trancar-se no banheiro para dar asas a sua imaginação. Ele, a
inventar desculpas para encobrir suas fugas. E a pensar ainda que
talvez a amasse.
Porém, o
que se passava na cabeça da menina, Honório só veio a saber
naquela noite quando, preparando-se para dormir, ela chegou e disse
que tinha finalmente juntado as pontas do novelo. Queria apenas que
ele ouvisse a redação que acabara de escrever. Que tudo nesta vida
estava em sincronismo e que o que acontecia ali poderia muito bem
acontecer aqui e foi por aí, tropeçando nos dedos e a enrolar-se
nas palavras tingidas de pensamentos turvos e lacrimosos.
- Presta
atenção, me veio assim, claro como água: Esmeralda foi uma
moça muito bonita. Quando completou 14 anos de idade, seus pais, por
problemas financeiros, viram-se na contingência de entregá-la em
casamento a um dos barões do Império, vinte e um anos mais velho
que ela. Aquilo não podia mesmo dar certo. Na noite de núpcias,
para desespero de todos, ela fugiu para a Capital, na companhia de um
sargento de milicia. O marido a persegui durante anos, até que a
surpreendeu num quarto de hotel barato e a afogou no vaso sanitário.
A mãe, inconsolada, trouxe o corpo da filha embalsamado dentro de
uma urna de vidro. Deixou-a exposta por duas semanas, para visitação
pública. Depois de vários pesadelos, decidiu sepultá-la ali mesmo
no interior do quarto. Esmeralda, que até hoje não sabe que morreu,
continua vagando pelos cômodos da escola, em busca de paz para a sua
pequena alma atormentada. E acrescentou com um sorriso semelhante
a um esgar.
- Já
pensou se pudéssemos invocá-la?
- Pelo
amor de Deus, não mexe com isto, Jennifer.
- Que
pode acontecer?
- Não
sei... E é disto que tenho medo.
Os
portões foram fechados na hora marcada. Honório viu o carro do
diretor virar a esquina e ganhar o esquecimento. Correu para o fundo
do prédio. Queria chegar a tempo. Sabia que Jennifer estava
determinada. Não conseguira demovê-la da ideia de chafurdar-se nas
teias do obscurantismo em busca de sentido para o que não fazia
sentido algum. Jennifer inventara suas próprias regras, criara seu
próprio método de crença e defesa e agora, guiada por uma intuição
cega, deu três descargas, chutou o vaso sanitário uma vez, falou
três palavrões e encarou o espelho. Honório contava poder
impedir-lhe mas suas pernas tremeram ao dobrar o último corredor e
conteve o fôlego por alguns instantes. Tempo suficiente para
Jennifer pronunciar as fatídicas palavras : - Vem loira! Vem
loira! Vem... Honório entrou no banheiro e gritou: - Por
favor, outra vez não! Tarde
demais. O espectro do que teria sido Esmeralda não aguardou
completar a terceira frase. Materializou-se às costas do professor
que não teve como esboçar qualquer reação diante do arrepio
gelado que invadiu-lhe a alma senão estancar e sentir o golpe
esgotar-lhe por completo. Jennifer gritou um grito mudo. O cadáver
perfumado de Esmeralda flutuou em sua direção, agarrou-a pelos
ombros e tascou-lhe um beijo com hálito de cemitério. A essência
da garota foi sugada pelo ectoplasma sedento de afeto. Jennifer
sentiu suas carnes deslocaram-se dos ossos e sumiu-lhe a sensação
de gravidade. Quando deu por si, havia uma barreira entre o lá e o
cá. A polícia não duvidou da culpa do professor sabendo-se
completamente incapaz de responder aonde fora parar o corpo de
delito? Honório sabia mas, não quis explicar. Alguém acreditaria?
Aceitou a sentença com a maior naturalidade. A partir daquele dia
quem entrasse naquele recinto não conseguia evitar sentir um certo
perfume adocicado a escorrer dos encardidos azulejos e penetrar nas
narinas de modo indelével ao mesmo tempo em que uma sumida voz
parecia clamar algo bem distante num vazio imaculadamente preservado.
Honório assustou-se, doze anos depois, quando ouviu no noticiário
algo sobre algumas meninas da sétima série afirmarem terem visto o que
poderia ser uma garota implorando ajuda de dentro do espelho do
banheiro da escola. Como um bom professor de história ele sabe que
há uma tendência a se repetir erros passados. O que só faz
aumentar sua angústia. Afinal, mais dia menos dia, terá de
enfrentar o mesmo problema.
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