sábado, 4 de maio de 2013

Lendas Urbanas - 1. A Garota do Espelho




Cena do curta metragem Mamá 
Direção de Andrés Muschietti, 2008


Ao inaugurar esta série penso: Estamos sempre em busca de algo novo, algo que traga encanto às nossas vidinhas enfadadas de rotinas. Sistemático, não fujo à regra. Invento modos e traçados. Repito usos comuns bastante eficazes na batalha contra a pasmaceira. Eu, contador de história, não inventei o nó. Apenas ofereço um ponto de modo que o novelo ganhe volume e substância na imaginação do ouvinte co-e-re-contador. Fiel ao adágio, apresento-vos minhas versões de algumas Lendas Urbanas bastante difundidas. Como diria qualquer Vulcano: “Vida longa e Prosperidade”.



A história é um jogo da memória.
Cada vez que lembramos de algo
é porque nasceu uma coisa nova no mundo.
Só não coma palito de fósforo”.
Seu Toinho Véra
Mestre nas artes encantatórias
(1860-1958)

No primeiro dia de aula, Jennifer, que ainda não havia digerido muito bem aquela mudança de endereço e, dado os seus sentidos ultra sensíveis, alimentados por vastas e profundas teorias de conspiração, percebeu na parede lateral do primeiro corredor da escola uma placa com os seguintes dizeres: “Aqui nasceu e encontra-se enterrada Esmeralda Dias (1866-1891). Que sua alma possa um dia encontrar a felicidade”.

No dia seguinte, perguntou ao professor de história, o cara menos estúpido daquele antro de almas penadas, o que significava aquilo. O jovem respondeu que não era nada, que devia ser brincadeira do pessoal do terceiro ano. Quando deu-lhe as costas ele acrescentou: - É melhor ficar esperta. Eles adoram judiar dos novatos. Aquelas poucas palavras, quem poderia imaginar, selou uma amizade que duraria o tempo que a filha do casal de bancários, transferidos da capital para aquele fim de mundo, permaneceu entre nós.

Ao contrário dos da sua idade, ela passou a preferir a companhia do professor e costumeiramente o visitava em sua casa. Os pais, inicialmente, não viram com bons olhos aquele relacionamento mas, ao perceberem que o temperamento da filha havia sofrido uma ligeira modificação (só não atinaram se para melhor), acabaram por decidir dar-lhe completa liberdade de movimentos. Quem sabe assim conseguiriam alcançar a serenidade necessária para tocar o dia a dia. Porém, serenidade era o que menos havia na conturbada vida de Jennifer. Às voltas com a hostilidade dos colegas que espalharam pela escola inteira seu envolvimento com as “artes das trevas”, não raro era acusada de emporcalhar-se com salgadinhos e cigarros. Ela ria e debochava daqueles manés, pouco se lixando para o que achassem ou pensassem dela, até que um dia o professor perdeu o controle.
- Sei lá... Acho que posso acabar apaixonado por você.
- Você apaixonado por mim?! Tá louco?
- Porque, não sou capaz de amar.
- Nunca me passou pela cabeça namorar quem quer que seja, muito menos você.

Não, aquela amizade não podia continuar. Ele, a colocá-la naquela situação! Quem ele pensava que era para vir com aquela história de paixão? O mundo não tinha mesmo solução, precisava encontrar um refúgio, precisava fugir de tudo aquilo. Reparem que ela não sabia que o amigo tinha um medo danado de se envolver. Pela cabeça do franzino professor costumava passar uns pensamentos um tanto quanto sinistros, sei lá, coisas de maldição, pecado... Coisas que costumavam arrepiar-lhe os cabelos da nuca cada vez que ocorria-lhe lembrar-se de algumas passagens do seu sistemático passado. Vinha evitando a todo custo “contaminar” a menina mas, a carne, como todos sabem, é fraca e a alma perversa, ao ficar entre a cruz e a espada optou por despejar seus dissolutos desejos sobre aquele pobre coração que, sem ferramentas adequadas para lidar com qualquer situação, saiu em debandada. Ficaram de cara virada durante boa parte do semestre. Jennifer, matando aula, indo trancar-se no banheiro para dar asas a sua imaginação. Ele, a inventar desculpas para encobrir suas fugas. E a pensar ainda que talvez a amasse.

Porém, o que se passava na cabeça da menina, Honório só veio a saber naquela noite quando, preparando-se para dormir, ela chegou e disse que tinha finalmente juntado as pontas do novelo. Queria apenas que ele ouvisse a redação que acabara de escrever. Que tudo nesta vida estava em sincronismo e que o que acontecia ali poderia muito bem acontecer aqui e foi por aí, tropeçando nos dedos e a enrolar-se nas palavras tingidas de pensamentos turvos e lacrimosos.
- Presta atenção, me veio assim, claro como água: Esmeralda foi uma moça muito bonita. Quando completou 14 anos de idade, seus pais, por problemas financeiros, viram-se na contingência de entregá-la em casamento a um dos barões do Império, vinte e um anos mais velho que ela. Aquilo não podia mesmo dar certo. Na noite de núpcias, para desespero de todos, ela fugiu para a Capital, na companhia de um sargento de milicia. O marido a persegui durante anos, até que a surpreendeu num quarto de hotel barato e a afogou no vaso sanitário. A mãe, inconsolada, trouxe o corpo da filha embalsamado dentro de uma urna de vidro. Deixou-a exposta por duas semanas, para visitação pública. Depois de vários pesadelos, decidiu sepultá-la ali mesmo no interior do quarto. Esmeralda, que até hoje não sabe que morreu, continua vagando pelos cômodos da escola, em busca de paz para a sua pequena alma atormentada. E acrescentou com um sorriso semelhante a um esgar.
Já pensou se pudéssemos invocá-la?
- Pelo amor de Deus, não mexe com isto, Jennifer.
- Que pode acontecer?
Não sei... E é disto que tenho medo.

Os portões foram fechados na hora marcada. Honório viu o carro do diretor virar a esquina e ganhar o esquecimento. Correu para o fundo do prédio. Queria chegar a tempo. Sabia que Jennifer estava determinada. Não conseguira demovê-la da ideia de chafurdar-se nas teias do obscurantismo em busca de sentido para o que não fazia sentido algum. Jennifer inventara suas próprias regras, criara seu próprio método de crença e defesa e agora, guiada por uma intuição cega, deu três descargas, chutou o vaso sanitário uma vez, falou três palavrões e encarou o espelho. Honório contava poder impedir-lhe mas suas pernas tremeram ao dobrar o último corredor e conteve o fôlego por alguns instantes. Tempo suficiente para Jennifer pronunciar as fatídicas palavras : - Vem loira! Vem loira! Vem... Honório entrou no banheiro e gritou: - Por favor, outra vez não! Tarde demais. O espectro do que teria sido Esmeralda não aguardou completar a terceira frase. Materializou-se às costas do professor que não teve como esboçar qualquer reação diante do arrepio gelado que invadiu-lhe a alma senão estancar e sentir o golpe esgotar-lhe por completo. Jennifer gritou um grito mudo. O cadáver perfumado de Esmeralda flutuou em sua direção, agarrou-a pelos ombros e tascou-lhe um beijo com hálito de cemitério. A essência da garota foi sugada pelo ectoplasma sedento de afeto. Jennifer sentiu suas carnes deslocaram-se dos ossos e sumiu-lhe a sensação de gravidade. Quando deu por si, havia uma barreira entre o lá e o cá. A polícia não duvidou da culpa do professor sabendo-se completamente incapaz de responder aonde fora parar o corpo de delito? Honório sabia mas, não quis explicar. Alguém acreditaria? Aceitou a sentença com a maior naturalidade. A partir daquele dia quem entrasse naquele recinto não conseguia evitar sentir um certo perfume adocicado a escorrer dos encardidos azulejos e penetrar nas narinas de modo indelével ao mesmo tempo em que uma sumida voz parecia clamar algo bem distante num vazio imaculadamente preservado. Honório assustou-se, doze anos depois, quando ouviu no noticiário algo sobre algumas meninas da sétima série afirmarem terem visto o que poderia ser uma garota implorando ajuda de dentro do espelho do banheiro da escola. Como um bom professor de história ele sabe que há uma tendência a se repetir erros passados. O que só faz aumentar sua angústia. Afinal, mais dia menos dia, terá de enfrentar o mesmo problema.



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