sábado, 27 de abril de 2013

Toda História Mal Contada Merece Ser Bem Contada



À cidade de Atena são ofertados dons
Ilustração Grega, s/d



Uma história mal contada é uma falha de caráter”.
Arquibald Ondekende Vader,
Princípios e Regras da Narrativa, Toledo, 1245


Dê-me uma lenda e moverei o mundo
Abdara de Knossos,
O Príncipe dos Lírios, fragmento, 1650 a.C.


Conto o que ouvi: era belo o dia. Do próprio chão da Ática, no começo, nasceu Cécrops. Arbitrária a relação entre dia lindo e nascimento do herói. Assim, como é possível nascerem heróis em dias feios não há qualquer relação entre aparência e heroísmo. Portanto, não há porque induzir ao preconceito. Isto tornaria ilegítima a própria história. Ouvimos do narrador que Cécrops nasceu metade homem, metade serpente. Soa qual aberração. Graças aos céus, aparência e caráter não nascem gêmeas nem dos mesmos pais. E aqui tecemos conjecturas sobre o passado e o futuro do herói, na expectativa de que em algum canto desta narrativa a gente consiga descartar toda perversidade antes que nos tornemos meras anomalias. Atentem que é preciso compreender o truque do porque o obscuro não pode e não deve reinar para sempre porquanto é preciso nunca nos sentirmos desavergonhados da nossa ignorância.

Partamos. Temos um lugar e alguém impossível de passar desapercebido: Cécrops... Se desejarem podem chamá-lo de Acteu, Pandion, Erecteu ou Erictônio, pouco importa... São todos heróis imersos em seus mitos, à espera de uma nova versão que os explique ao futuro; que os livre das perversidades originais; que os legitime perante suas comunidades; que lhe deem nascedouros e sepulturas dignas do herói que se tornaram. Cécrops é muito gente boa, nos garante a história. Só não conheceu os pais. E isto já é o bastante para que uma história seja muito mal contada. Peço-vos um pouco de paciência, espírito de humanidade e juntos pensemos: para o bem da história alguém terá que adotá-lo, legitimá-lo, preencher as lacunas e os vazios gerados pelos excessos que o bastardaram, afinal Cécrops, apesar da aparência, é pacífico e criativo, sabe como construir casas, cultivar os campos, fabricar ferramentas, domesticar animais... Até ler e escrever ele sabe. Nobre é aquele que consegue superar o banal, o povo fala e ato contínuo o elegem governante daquela cidade que surge, bela e imponente, no solo fértil da Atica, apesar de feio, deformado, aberrante, excepcional, fora do padrão... vejam como são as coisas.

Contam os antigos que os deuses ficaram com olhos ciumentos ao presenciarem tal cena e não tardaram escolher, cada um, uma cidade onde pudessem ser particularmente honrados. Ponderadas as divinas opiniões, evidente tornou-se a necessidade de que os deuses fossem venerados pelos humanos. Notem que, invariavelmente onde estejam reunidos duas ou mais entidades, principalmente depois de esvaziados vários recipientes de substâncias estupefacientes, sempre acontece algo que tira todo mundo do sério. Não deu outra. Posídon e Atená escolheram a mesma cidade. Permitiriam os deuses, e estamos falando de deuses justos e bondosos, que estas duas vaidades entrem choque? Felizmente os deuses modernos sabem como exercitar o velho e eficaz bom senso. Precisamos de um árbitro que tenha arbítrio para resolver a questão. Zeus não titubeia e indica Cécrops juiz da contenda. Evidentemente tratava-se de um teste de caráter e ao perceberem a jogada, o povo juntou-se aglomerados na praça à espera dos divinos. Posídon chegou primeiro e logo partiu para uma série de demonstrações de força. Atená, assustada com os cavalos que seu tio fazia emergir da terra em passes mirabolantes de mágica, sorria para Cécrops que, acanhado, rogou silêncio. Satisfeito, pediu a cada deus um presente à cidade. Posídon, não vacilou e fez brotar da terra um oceano. Impressionante! Mas, ó desgraça: uma enchente de proporções catastróficas imundou o vale. Zeus, temendo ver submerso o Olimpo, interviu. Ordenou que a terra desse uma volta ao contrário em torno do sol e tudo foi restaurado num piscar de olhos. Passado o susto, todos os olhares se voltaram para Atená que, silenciosa e humilde, plantou uma muda de oliveira no cume de uma pequena colina. A árvore imediatamente cresceu frondosa e carregada de frutos. Aclamada pelo povo como benfeitora, a deusa foi considerada vitoriosa. Num estalar de dedos a Acrópole foi erguida e a cidade batizada com o nome de Atenas. Posídon, inconformado, retirou-se irritado com a decisão do povo. A deusa, conhecedora do temperamento do tio, tratou de correr até a oficina de Hefesto para cuidar da defesa da cidade.

Alheios ao perigo, os cidadãos inventaram as Panatenéias: jogos abertos a muitos propósitos, num clima de muita descontração e poucos comandos verbais. A começar com uma procissão de homens e mulheres a acompanharem um enfeitado touro pelas ruas da cidade, ao som de címbalos, tambores e flautas. Após o abate cerimonial, a carne do animal era distribuída entre a população e suas vísceras examinadas e lidas pelos adivinhos que proclamavam seus vaticínios a ouvidos atentos. Para finalizar o primeiro dia desta gênese, todos se dirigiam ao Estádio para assistirem as provas de atletismo e corrida de bigas. No dia seguinte, era a vez do Odeon receber os helenos. Primeiro, para escolha do jovem mais forte e belo. Depois, havia apresentações de musica, canto e dança seguidas de declamações de obras de poetas nacionais e, por fim, espetáculos teatrais. No terceiro dia, havia as provas de natação e remo. No quarto dia, era realizada a corrida do Archote e a impressionante Enkotyle (corrida de duplas, um às costas do outro, onde o “cavalo” de olhos vendados é guiado pela voz do “cavaleiro”). Na manhã do quinto e último dia, Atená entrou na cidade à frente de um numeroso exército. Abriam o desfile Estandartes e Fanfarra; logo em seguida veio a Cavalaria, os Hoplitas, os Arqueiros e finalmente as Balistras e as Catapultas. Uma festa pra Olimpíada alguma botar defeito.

Mas o que ninguém ficou sabendo, exceto a Musa e o poeta que dela ouviu e nos contou, é que enquanto todos se divertiam Atená tratava de concluir ajustes com vistas a dar proteção eterna à cidade. Venham comigo e acompanhem o sacrifício da portadora da égide, a deusa dos olhos glaucos, aquela que concebemos guerreira, virgem e imaculada, saída da cabeça do pai. Ao chegar na oficina do deformado irmão, encontra-o a lamentar a traição de Afrodite. Apaixonado e carente, inflama-se de desejo pela deusa e tenta possuí-la. Ela foge mas, seu perseguidor, embora coxo, a alcança. A deusa defende-se como pode mas, na luta, o sêmen incestuoso de Hefesto lhe cai na perna esquerda. Atená limpa-se com um floco de lã e o descarta na terra. Desta forma manteve a virgindade e trouxe à luz seu único filho: Cécrops. Nomeado “o nascido da terra”, tinha contudo, a aparência dividida entre o céu e a terra: metade humano metade serpente. Para não assustar o mundo, Atená decide ela mesma educar o menino, secretamente, no interior do templo. Visava torná-lo apto a assumir o trono de Atena e dar inicio a dinastia que gerou o maior herói da Atica: Teseu, o matador de Minotauros, o sempre lembrado exterminador de perversidades. 


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