À cidade de Atena são ofertados dons
Ilustração Grega, s/d
“Uma
história mal contada é uma falha de caráter”.
Arquibald Ondekende Vader,
Princípios e Regras da Narrativa, Toledo, 1245
“Dê-me uma lenda e moverei o mundo”
Abdara de Knossos,
O Príncipe dos Lírios, fragmento, 1650 a.C.
Conto o
que ouvi: era belo o dia. Do próprio chão da Ática, no começo,
nasceu Cécrops. Arbitrária a relação entre dia lindo e nascimento
do herói. Assim, como é possível nascerem heróis em dias feios
não há qualquer relação entre aparência e heroísmo. Portanto,
não há porque induzir ao preconceito. Isto tornaria ilegítima a
própria história. Ouvimos do narrador que Cécrops nasceu metade
homem, metade serpente. Soa qual aberração. Graças aos céus,
aparência e caráter não nascem gêmeas nem dos mesmos pais. E aqui
tecemos conjecturas sobre o passado
e o futuro do herói, na expectativa de que em algum canto desta
narrativa a gente consiga descartar toda perversidade antes que nos
tornemos meras anomalias. Atentem que é preciso compreender o
truque do porque o obscuro não pode e não deve reinar para sempre
porquanto é preciso nunca nos sentirmos desavergonhados da nossa
ignorância.
Partamos.
Temos um lugar e alguém impossível de passar desapercebido:
Cécrops... Se desejarem podem chamá-lo de Acteu, Pandion, Erecteu
ou Erictônio, pouco importa... São todos heróis imersos em seus
mitos, à espera de uma nova versão que os explique ao futuro; que
os livre das perversidades originais; que os legitime perante suas
comunidades; que lhe deem nascedouros e sepulturas dignas do herói
que se tornaram. Cécrops é muito gente boa, nos garante a história.
Só não conheceu os pais. E isto já é o bastante para que uma
história seja muito mal contada. Peço-vos um pouco de paciência,
espírito de humanidade e juntos pensemos: para o bem da história
alguém terá que adotá-lo, legitimá-lo, preencher as lacunas e os
vazios gerados pelos excessos que o bastardaram, afinal Cécrops,
apesar da aparência, é pacífico e criativo, sabe como construir
casas, cultivar os campos, fabricar ferramentas, domesticar
animais... Até ler e escrever ele sabe. Nobre é aquele que consegue
superar o banal, o povo fala e ato contínuo o elegem governante
daquela cidade que surge, bela e imponente, no solo fértil da Atica,
apesar de feio, deformado, aberrante, excepcional, fora do padrão...
vejam como são as coisas.
Contam os
antigos que os deuses ficaram com olhos ciumentos ao presenciarem tal
cena e não tardaram escolher, cada um, uma cidade onde pudessem ser
particularmente honrados. Ponderadas as divinas opiniões, evidente
tornou-se a necessidade de que os deuses fossem venerados pelos
humanos. Notem que, invariavelmente onde estejam reunidos duas ou
mais entidades, principalmente depois de esvaziados vários
recipientes de substâncias estupefacientes, sempre acontece algo que
tira todo mundo do sério. Não deu outra. Posídon e Atená
escolheram a mesma cidade. Permitiriam os deuses, e estamos falando
de deuses justos e bondosos, que estas duas vaidades entrem choque?
Felizmente os deuses modernos sabem como exercitar o velho
e eficaz bom senso. Precisamos de um árbitro que
tenha arbítrio para resolver a questão.
Zeus
não titubeia e indica Cécrops juiz da contenda. Evidentemente
tratava-se de um teste de caráter e ao perceberem a jogada, o povo
juntou-se aglomerados na praça à espera dos divinos.
Posídon chegou primeiro e logo partiu para uma série de
demonstrações de força. Atená, assustada com os cavalos que seu
tio fazia emergir da terra em passes mirabolantes de mágica, sorria
para Cécrops que, acanhado, rogou silêncio. Satisfeito, pediu a
cada deus um presente à cidade. Posídon, não vacilou e fez brotar
da terra um oceano. Impressionante! Mas, ó desgraça: uma enchente
de proporções catastróficas imundou o vale. Zeus, temendo ver
submerso o Olimpo, interviu. Ordenou que a terra desse uma volta ao
contrário em torno do sol e tudo foi restaurado num piscar de
olhos. Passado o susto, todos os olhares se voltaram para Atená
que, silenciosa e humilde, plantou uma muda de oliveira no cume de
uma pequena colina. A árvore imediatamente cresceu frondosa e
carregada de frutos. Aclamada pelo povo como benfeitora, a deusa foi
considerada vitoriosa. Num estalar de dedos a Acrópole foi erguida e
a cidade batizada com o nome de Atenas. Posídon, inconformado,
retirou-se irritado com a decisão do povo. A deusa,
conhecedora do temperamento do tio, tratou de correr até a oficina
de Hefesto para cuidar da defesa da cidade.
Alheios
ao perigo, os cidadãos inventaram as Panatenéias: jogos
abertos a muitos propósitos, num clima de muita
descontração e poucos comandos verbais. A começar com uma
procissão de homens e mulheres a acompanharem um enfeitado touro
pelas ruas da cidade, ao som de címbalos, tambores e flautas. Após
o abate cerimonial, a carne do animal era distribuída entre a
população e suas vísceras examinadas e lidas pelos adivinhos que
proclamavam seus vaticínios a ouvidos atentos. Para finalizar o
primeiro dia desta gênese, todos se dirigiam ao Estádio para
assistirem as provas de atletismo e corrida de bigas. No dia
seguinte, era a vez do Odeon receber os helenos. Primeiro, para
escolha do jovem mais forte e belo. Depois, havia apresentações de
musica, canto e dança seguidas de declamações de obras de poetas
nacionais e, por fim, espetáculos teatrais. No terceiro dia, havia
as provas de natação e remo. No quarto dia, era realizada a corrida
do Archote e a impressionante Enkotyle (corrida
de duplas, um às costas do outro, onde o “cavalo” de olhos
vendados é guiado pela voz do “cavaleiro”). Na manhã do quinto
e último dia, Atená entrou na cidade à frente de um numeroso
exército. Abriam o desfile Estandartes e Fanfarra; logo em seguida
veio a Cavalaria, os Hoplitas, os Arqueiros e finalmente as Balistras
e as Catapultas. Uma festa pra Olimpíada alguma botar defeito.
Mas o que
ninguém ficou sabendo, exceto a Musa e o poeta que dela ouviu e nos
contou, é que enquanto todos se divertiam Atená tratava de concluir
ajustes com vistas a dar proteção eterna à cidade. Venham comigo e
acompanhem o sacrifício da portadora da égide, a deusa dos olhos
glaucos, aquela que concebemos guerreira, virgem e imaculada, saída
da cabeça do pai. Ao chegar na oficina do deformado irmão,
encontra-o a lamentar a traição de Afrodite. Apaixonado e carente,
inflama-se de desejo pela deusa e
tenta possuí-la. Ela foge mas, seu perseguidor, embora coxo, a
alcança. A deusa defende-se como pode mas, na luta, o sêmen
incestuoso de Hefesto lhe cai na perna esquerda. Atená limpa-se com
um floco de lã e o descarta na terra. Desta forma manteve a
virgindade e trouxe à luz seu único filho: Cécrops. Nomeado “o nascido da
terra”, tinha contudo, a aparência dividida entre o céu e a
terra: metade humano metade serpente. Para não assustar o mundo,
Atená decide ela mesma educar o menino, secretamente, no interior do
templo. Visava torná-lo apto a assumir o trono de Atena e dar
inicio a dinastia que gerou o maior herói da Atica: Teseu, o
matador de Minotauros, o sempre lembrado exterminador de
perversidades.
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