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sábado, 17 de março de 2018

quantos você matou hoje, senhor homem de bem?


Google Imagens, tratada por Silvio Nunes



bota as cartas na mesa: - ele não mudará...
… continuará levantando às cinco, levando o filho à escola e chegando sempre quinze minutos adiantados na sua estação de trabalho.
… continuará tomando seu cafezinho, trocando meia duzia de palavras com seus vizinhos de baia... produzirá relatórios, participará de reuniões e ouvirá do chefe severas recomendações para que cumpra as metas senão já sabe, né.
… continuará sentido a pressão, engolindo seco e perguntando-se pra que metas, pra quê, se o que vive é uma eterna emergência… pra que planejar, gastar horas a fio produzindo cálculos, elaborando planilhas, cronograma se se passa todas as jornadas resolvendo pepinos e criando outros.
… mesmo tendo pensamentos fora da curva, não mudará porque continuará almoçando em míseros sete minutos, tempo suficiente para empurrar os bocados goela abaixo sob goles nervosos de refrigerante com 5,1% de suco natural da fruta, ele que acredita em tudo que a propaganda e a mídia diz.
… e sairá depois da hora, hoje, amanhã, sempre e apesar de não ter pela sogra nenhuma estima, sabe que sem ela para pegar a criança na escola a vida seria um inferno, afinal a a patroa age igualzinho a ele… aliás os dois fazem bem estarem casados, tamanha identidade de propósitos e nenhuma vocação para serem felizes.
… e olhará para o tablet com a esperança de algum contentamento em páginas pornôs mas o sexo e a culpa o fará pensar no filho… sabe que mesmo que ligue para a criança pedindo desculpas, no final irá perguntar qual joguinho o filhão quer que o papai leve de noite para casa… sabe que o mino não evitará rancores pelas inúmeras ausências e incapacidade de ser pai.
… porque sente-se culpado por ter vendido a alma por um preço muito além do que realmente vale… ele que não vale o que ganha, não vale, sabe que não vale e o pior é que não consegue dar finalidade ao dinheiro porque simplesmente não tem tempo para pensar no que fazer com todo aquele dinheiro que ganha a mais… então, poupa, poupa para talvez, no futuro comprar… comprar… comprar qualquer coisa… dar um carro do ano para o filho, mandá-lo pra melhor faculdade estrangeira… dar voltas ao mundo… viajar… ir para a puta que o pariu, para a porra de qualquer lugar… chegar pro agente de viagem e dizer: me vê aí uma passagem para paris que eu estou afim de comer um croissant de merda na beirada daquela bosta do rio sena.
… não ele, filho de ninguém que chegou onde chegou graças a luta da mãe ignorante, malamada, desprezada, maltratada, fudida e mal paga, que teve que fazer das tripas coração pra dar-lhe de comer, vesti-lo, aguentar seus calundus, suas manhas, seus desejos idiotas, suas lambanças… fazendo todos os seus gostos e depois se culpando pela merda de vida que não soube viver.
… não mudará porque a realidadezinha que o diabo criou para ele é a cópia cuspida e escarrada do paraíso que sua mãe sonhou… pena que ela não tenha aguentado o tranco e morrido antes de ver o que ele conseguiu… de ver o que ele ainda pode conseguir, mais adiante, se continuar engolindo seco e disfarçando como faz todo santo dia.
… porque sente-se parte de uma maioria… sente-se como um dente de uma engrenagem… sabe que iguais a ele existem milhões e todo dia milhares são fabricados e jogados nesses mundinhos particulares, onde trabalharão, terão filhos, ganharão mais que precisam, não saberão bem o que fazer com a riqueza que possuem, temerão o mundo em volta, gastarão por impulso, acumularão, acumularão e se esvairão num imenso poço de nada, mau hálito e canceres, onde nem a mais ácida das drogas conseguirá livrar a cara do sujeito… pelo contrário, tudo parece aguçar o sentimento de inutilidade, de coisa nenhuma… tudo contribui para potencializar o desejo de sair atirando por aí com uma arma letal, a mais letal que o dinheiro possa comprar… mas, como é um merda, o cocô do cavalo manco do bandido escroto, vai deixando por isso mesmo e dando esporro na empregada, no rapaz do almoxarifado, na moça do supermercado… censurando e punindo o diferente, o gay, a feminista, o gordo, o feio, o miserável que pede esmola no farol, a puta preta e pobre que faz ponto naquela praça onde sonha um dia plantar uma estátua sua comendo a bunda de uma estrela de cinema… como mudar tudo isso?… essa doença… como curar?… como tolerar essa sombra que cobriu a casa, senão pelo prazer de cometer atrocidades com o homem de bem que ele ostenta toda manhã quando ao entrar e sair do escritório?



sábado, 24 de fevereiro de 2018

Um Grão de Montanha


Montanhas, Omar Rayo, 1955








O que não tem conserto, consertado está”
Ibraim Al’Xazira de Saragoça
Mestre Cervejeiro, século XI




Um filho tinha pais bastantes idosos. Embora o peso fosse considerável, carregava-os nos ombros para onde quer que fosse. Para complicar, os velhos levavam, cada um, uma montanha sobre a cabeça. Andar daquele jeito tornara-se insuportável.

O filho pediu aos pais que abandonassem aquele excesso. Os velhos responderam que não, que estavam acostumados; que as montanhas eram tudo que herdaram de seus antepassados e que, sem aquele peso, ficariam tão leves a ponto de saírem à deriva pelo espaço, igual um balão desgovernado, indo aonde o vento os levasse.

O filho, então, procurou um homem engenhoso e falou-lhe do problema. O perito perguntou ao velho o que mais gostaria de aproveitar na vida. Recebeu como resposta: admirar uma bela paisagem. Ao perguntar à velha, ela não hesitou: cuidar de um belo jardim.

O homem habilidoso trouxe suas ferramentas e esculpiu sobre a cabeça do velho uma linda paisagem; sobre a cabeça da velha, um primoroso jardim. Ao fim, os dois ficaram ansiosos para contemplarem o resultado da obra.

O homem astuto disse que, pra isso, precisava retirá-las de sobre suas cabeças… Os velhos relutaram mas acabaram concordando. E ficaram tão encantados com o que viram que desceram dos ombros do filho e, como um último favor, pediram ao artista que colocasse sobre suas cabeças um grão da montanha correspondente, para que seus antepassados não se sentissem ultrajados.

E o filho daí então podia fazer suas caminhadas aliviado, afinal seu velho pai, até o último dos seus dias, dedicou-se a admirar a linda paisagem enquanto a velha mãe não se cansava de cuidar do belo jardim. 




sábado, 17 de fevereiro de 2018

um conto dialógico


Indoor dialogue, Wojciech Siudmak, 1998


- abre a porta
- me deixa
- estou preocupado
- com o quê
- com a tua saúde
- me esquece
- me deixa entrar
- não, não há mais nada entre nós
- dá mais uma chance
- sem volta
- verdade
- nunca menti pra você
- e eu nunca dissimulei
- é você é verdadeiro eu que não percebi
- a vida só tem graça quando estamos juntos
- não posso impedir tuas fantasias
- não quero ficar sozinho
- é tão dificil
- o quê
- isso
- o que nos impede
- teu desatino meu medo
- você é muito mais forte que eu
- quero ficar sozinha
- podemos ser amigos?
- melhor não
- então é isso adeus
- adeus
- quando te conheci durante aquela caminhada já havia desistido mas o teu olhar me mostrou que ainda havia possibilidade foi isso que me fez voltar no dia seguinte e te procurar pelo caminho quando te encontrei sentada debaixo daquela figueira foi como se o universo nascesse em mim
- chega te imploro não me tortures mais


- aquele ali o que fez?
- muita manguaça… pintou e bordou...
- dê uns tabefes e bota na rua… o magrelo?
- ladrão mixuruca
- trabalha pra quem?
- independente
- bota na limpeza… e esse, agarrado às grades?
- agrediu a mulher
- ela enfeitou tua cabeça, foi?… é mudo, é?
- está catatônico desde que chegou… deve ter tomado droga pesada
- a mulher deu queixa?
- deu
- não tô afim de preencher papelada… bota na cela com o “mãe de todos”…
- “mãe de todos” já passou da hora pra ser solto...
- alguém intercedeu por ele?
- até agora não...
- taí… deixa o psicopata brincar
- o senhor é o delegado
- qualquer coisa me chama no celular...


sábado, 30 de dezembro de 2017

Eram os deuses nanos-filósofos-cirurgiões?

Never, never land, Leonard McGurr, 2003



Diferentemente de outras anomalias que costumam preferir o espaço sideral e/ou privado, essa se deu, em público, numa das avenidas mais movimentadas da capital. A boa notícia é que não ocorreram maiores consequências que alguns para-lamas amassados, tropeções, encontrões e esbarrões entre transeuntes. Infortúnio mesmo, sofreu um ambulante: sua banca de bijuterias encontrava-se nas mesmas coordenadas onde a rachadura espaço-temporal aconteceu, num corte que ultrapassou os limites do asfalto. Em meio ao alvoroço, ninguém percebeu um filete gelatinoso esgueirar-se da fenda e escorrer direto para boca de lobo mais próxima. Noticiários noturnos foram unânimes em redundâncias: os mesmos especialistas, as mesmas platitudes. Enfadado, deixei-os falando sozinhos e fui abrir um envelope pardo, que me foi deixado à porta, sem qualquer sobrescrito. Como costumo enviar originais, cogitei tratar-se de resposta de algum editor aos meus insistentes pedidos de consideração mas, para minha renovada decepção, não havia missiva alguma, apenas um pendrive.
Deseja que tudo seja transcrito de modo que você entenda? Essa foi a mensagem logo que dei o enter. Sim, claro… Óbvio. Mas não era óbvio que surgisse uma animação (bem elaborada, por sinal). O pequeno conto era sobre um sujeito que fugia da dimensão n e vinha atazanar a nossa. Causou-me espécie o nome do personagem. Se fosse tentar explicar diria tratar-se de um extenso vocábulo formado de consoantes entrelaçadas por onomatopeias explosivas. Impronunciável. Bagunça pra mais de metro. Pensei no meu vizinho sabichão. Talvez fosse ele a brincar com minhas idiossincrasias... Mas logo mudei o foco e intuí que aquilo poderia ser uma espécie de vírus. Alguma má consciência estava tentando tornar-se senhor do meu sistema nervoso central e essa suspeição me fez coçar mais ainda minhas perebas.
Todos os canais continuavam a repetir os mesmos informes sobre o estranho fenômeno, ocorrido no centro da cidade, em pleno horário de pico. A essa altura eu já estava bastante arrependido por ter autorizado o download, pois de nada adiantava passar e repassar um antivírus free, o pobre não dava conta do recado. A animação restava indelével no meu computador. Quando senti chamas consumirem meu estomago, lembrei da Caixa de Pandora, ajeitei a bunda na cadeira, respirei fundo e… Apertei o play. Decidi ver até onde aquilo me levaria. E tal qual na realidade, tudo começou com um rasgo no tecido espacial e uma criatura, com poderes extraordinários, comparece disposto a barbarizar. Conflito em estado bruto.
Desse ponto em diante, tudo pareceu correr simultaneamente: animação e realidade se abraçaram num ponto quântico qualquer, tornando difícil dizer quem era a bola e quem era o pé. Tanto lá quanto cá, a gelatina que ninguém viu escorrer direto para a boca de lobo mais próxima, misturou-se às porcarias que todo bom e velho esgoto nutre e cultiva e logo estava plenamente adaptada ao nosso ambiente, tendo nesse meio tempo, escrutinado o mais fundo da alma humana e selecionado, para seu uso privado, o nosso mais pavoroso medo. Confortavelmente integrado ao papel, ele enfiou-se num terno de grife, botou alguns diplomas na parede, ensopou o cabelo de gel, amaciou a voz e largou-se a promover, pra quem quisesse ouvir, preleções performáticas sobre a-arte-de-empreender-qualquer-coisa-sem-jamais-ter-empreendido-coisa-alguma. Ao término das palestras, fogos de artifícios ululavam dentro das nossas cabeças. Tudo muito fácil, sem exigir prática ou qualquer habilidade. Mas como dizia minha mãe, no começo tudo são rosas. E aí, quando o pessoal se deu conta, o diabo não era mais como sempre fora pintado. Conquistado corações e mentes de deus e todo mundo, chegou a hora da fatura. E não foi difícil perceber onde tínhamos nos metido. Estávamos totalmente imersos num mundo que nos excluía. Um mundo cujo único propósito era a manutenção, a ferro e a fogo, de uma senhora maldade. Ele tinha usado contra nós nossos próprios demônios e, após nos seduzir, tal qual Fausto, agora nos consumia, delicada e civilizadamente.
A animação deu um salto no tempo, distanciou-se da realidade o suficiente para que eu compreendesse umas coisinhas. Convencido do diagnóstico, demorei para aceitar o tratamento. Embora tenha sido alertado quanto a possibilidade da solução deus ex-machina, posso lhes garantir que o final não se baseou no que assisti pelo computador, mas naquilo que senti com esses nervos que um dia a terra há de comer.
Enquanto ele traçava melífluos arabescos no especto sonoro, deitando falação sobre os efeitos deletérios da separação igreja-estado e acólitos ministravam oficinas da célebre terapia do banho-frio para educar tentações e rebeldias, as aranhas apareceram. Metálicas e sibilantes, voaram de lá pra cá e de cá pra lá, como cães farejadores. De repente, cintilaram faíscas dos seus múltiplos olhos, deram meia volta e, céleres, reuniram-se em torno d’ele, envolvendo-o numa teia líquida esférica e perfeita. Brados de protestos se elevaram aos céus mas não impediram que um cilindro prateado, interminavelmente comprido, de mais ou menos uns cinco centímetros de diâmetro, descesse sobre o casulo transparente e, de uma única aspirada, sugá-lo inteirinho sabe-se--pra-onde-pra-fazer-o-quê, no mesmo instante em que descobri, tatuada em mim, a pergunta crucial: eram os deuses nanos-filósofos-cirurgiões?
No dia seguinte, ao receber o salário semanal de um contrato intermitente que mantenho como deliveryman numa boutique de coxinhas, consegui pagar a primeira prestação de um antivírus que cumpriu com o papel. A animação foi finalmente deletada da minha máquina mas, fiquei com a sensação de que o ontem jamais existiu. Parece que o ontem sumiu do mapa. Em vista disso, decidi que o melhor era dar sequência à corrente. Conseguiu de um parça meu - guerrilheiro urbano - que trabalha no almoxarifado de uma multinacional, o fornecimento de quantos envelopes pardos eu precise para a empreitada de fazer chegar a cada casa dessa cidade, um pendrive de presente. Espero que, quanto mais gente interagir com a mensagem, mais próximo ficarei da verdade: preciso saber se ontem, com toda aquela teia estranha de acontecimentos, pode constar, como fiel e verídico, no meu banco de memória. 


sábado, 23 de dezembro de 2017

O sorteio

The State Lottery, Vincent Van Gogh, 1882



Batista foi pego com a mão na botija. Sentindo-se protegido pelo moletom de segunda doado pela patroa da mulher e pelo par de tênis, quase novo, encontrado no bazar da caridade do centro espírita siriús de nazaré, partiu para o hiper disposto a fazer seu menino se lambuzar de iogurte com mel. Vinha de olho, não era de hoje, naquela embalagem familiar exibida no panfleto promocional.

Para simular familiaridade foi logo cumprimentando o vigilante. Pegou um carrinho e rumou, sem pressa, para área das delícias. O moletom (um número maior que o seu) daria uma boa cobertura. Após demonstrar interesse em vários produtos, conferir-lhes o preço no verificador, balançar a cabeça várias vezes em sinal de reprovação, enfiou no bolso o litro e meio da gostosura, a repetir, pra si, que aquela atitude era legítima, mesmo sua apropriação ter sido considerada indébita pelo alarme tonitruante da loja. Detectada a falha, todo o aparato de segurança foi acionado. Um senhor que assistiu a cena comentou, orgulhoso, ao repórter da noite, que presenciara uma demonstração eficaz e imprescindível do sistema de repressão ao crime, logo interrompido pelo âncora que acrescentou: mesmo sendo o segundo maior consumidor dos recursos da empresa, perdendo apenas para a diretoria, a existência do departamento de prevenção ao crime encontrava-se plenamente justificada.

Algemado, amordaçado, encapuzado e bastante machucado, Batista foi levado aos fundos da loja. Lá, uma cela, com grossas grades de titânio, paredes de cimento armado com vinte centímetros de largura, ambiente blindado e totalmente fora de controle, o aguardava imersa numa penumbra estéril e fria.

Vivíamos sob vigilância de inúmeros exércitos particulares, todos com poder de polícia decretados logo após as últimas privatizações, a da água e do ar. Ao Estado, denunciado como o grande mal da civilização, cabia apenas implementar sua própria extinção. Dos antigos poderes, restava um quase nada do judiciário, o mínimo para fazer cumprir sentenças. Para essa justiça, fora criado um algoritmo que sorteava juiz, júri, promotores, advogados e meirinhos, todos remunerados com verbas exorbitantes destinadas a cada julgamento - que era único, espetacular e com vários níveis de apelações (o que ensejava um sem fim de recursos, possibilitando aos sortudos sorteados encomendarem suas casas de praia, a viagem dos sonhos ou funeral na lua). Absolvições existiam mas, somente nos casos de cleptomania devidamente atestados por uma dezena de psiquiatras forenses, todos particulares. Tudo corria dentro da mais estrita legalidade. A Constituição era bastante clara, os pais-legisladores foram econômicos e enfáticos: a inveja é pecado e toda cobiça será castigada. Acreditavam que quanto maior o ruído provocado pelos homens de bem, menos delinquentes e transgressores haveriam na praça. E, numa sociedade onde todos aguardam recompensa, alguém tem que pagar o pato, pois não existe almoço grátis. E naquela tarde, Batista caíra na malha fina.

O público esfregou as mãos; a bolsa deu um up; o dólar disparou, imediatamente estabilizado por uma alta significativa nas comódites; o desempenho satisfatório das aplicações em letras do tesouro baseada nas oscilações dos preços no varejo, elevaram o euro a patamares nunca vistos. Feitos os cálculos, computados os prejuízos futuros daquela nefanda ação e realizada uma ponderação entre as projeções dos diversos institutos quanto ao comportamento futuro dos mercados, foi em vão a luta dos desenvolvimentistas. Mais uma vez se viram derrotados pela pertinácia dos neocon’s (ala majoritária dos cabeças pretas do partido liberal conservador). Na quebra de braço secular entre a produção e o rentismo, mais uma vez, os progressistas levaram a pior. Especialistas alinhados vieram a público garantir que, levada em consideração premissas históricas da newsociology (doutrina científica baseada exclusivamente no senso comum) ao final tudo se ajeitaria em torno de uns 40% de valorização nas ações dos dois mais prestigiados laboratórios de dramaturgia, exatamente aqueles encarregados da educação de massa, presencial e à distância, nos três níveis básicos.

Apostadores soltaram na rede um vídeo-boato atestando a irrelevância do caso nº 10987B856/17, instruído na segunda vara de direito penal da capital. Colocavam todas suas fichas na hipótese de que tudo seria esquecido por volta da quarta ou quinta instância. Mas, tiveram que morder a língua e se, ainda estivesse na moda o uso de chapéu, teriam sido obrigados e comê-los. Aquele foi um espetáculo ímpar, durou década e meia para ser concluído. Gerou um volume assustador de apostas, milhares de petições, manchetes, artigos, teses, filmes, peças de teatro e uma infinidade de comentários na rede social, além de generosas e polpudas contribuições da indústria alimentícia para a construção de novos presídios.

Finalmente, às cinco da tarde daquela sexta-feira, ninguém voltou pra casa. Todos se prostraram diante de aparelhos televisivos - acontecia o julgamento da última apelação feita pela equipe de advogados da defesa. Sob escolta armada, vigiado por câmeras estrategicamente colocadas nos pontos nevrálgicos, acompanhado com baraço e pregação, o réu foi conduzido sob os olhares silenciosos da população até a presença do juiz- superior-e-supremo encarregado da leitura da decisão unânime do vigésimo quinto júri. Ninguém duvidava, Batista seria, em definitivo, declarado culpado. Como era de praxe, o magistrado nem chegou a desdobrar a folha de papel com a decisão. Tão logo, a sessão foi aberta com a pompa tradicional, ele anunciou a sentença: duzentos anos de trabalhos forçados, cumpridos em confecções de roupas masculinas.

A sociedade respirou aliviada. O crime fora punido, a justiça realizada e a vida seguiu. Porém, daí a poucos dias, já era visível o estado deplorável das pessoas. Possuídos por aquela melancolia característica, aquele ar blasé tomando conta das fisionomias… Continuar assim, tudo iria por água abaixo. O sistema não aguentaria tamanha apatia. Algo precisava ser feito. Alguém tinha que ser induzido ao crime. E, na calada da noite, o algoritmo sorteou.




sábado, 17 de junho de 2017

Piéta

Piéta, Bernard Buffet, 1948



No ano de 2050, os padres passaram a controlar todo o mercado negro dos costumes. Sexo, drogas, armas… Todos os vícios e pecados finalmente encontraram a legalidade através da Igreja. “Foi a maneira encontrada para conter a bestialidade humana”, disse o porta-voz da Santa Cúpula, em entrevista recente.
Ao assumir a tutela dessa economia, a Igreja extinguiu a violência entre os indivíduos e garantiu para si o monopólio da crueldade. Com isso, o assassinato teve sua prática ritualizada e ninguém mais precisaria desafiar a lei para conseguir um baseado, uma carreira de cocaína ou uma AK47: bastava passar no confessionário mais próximo e fazer sua solicitação. O clérigo de plantão lhe aviaria uma receita devidamente autenticada. Sexo gostoso? Apresente-se num dos muitos mosteiros, pague a taxa regular, submeta-se a alguns exames médicos e a um intensivo de preliminares que uma noviça ou noviço se colocará à sua disposição. Taras? Esse serviço especial, cheio de novidades, possui um extenso cardápio que contempla desde canibalismo até zoofilia. Quem passar dos limites é castigado e pronto.
Mas, o que significa agora passar dos limites? Se o indivíduo pode tudo (desde que pague é claro) e conta com uma organização milenar capaz de satisfazer todo e qualquer desejo, o que configura uma transgressão? Aqui entra o arbítrio do controlador. O eclesiástico ao abençoar sua perversão, o faz conclamando-o a se manter dentro de certos parâmetros. Isto é, você pode ser ateu, iconoclasta, professar outras fés ou até mesmo adorar o demo, porém, nunca, jamais, em hipótese alguma, menospreze, deprecie, macule, zombe ou destrua símbolos religiosos. De tal infração não cabe recurso: é morte certa, longa e dolorosamente, como só o Igreja se autoriza fazer.
...

Às 16:18 do junho 17 de 2052, Maciel, após semanas procurando uma maneira de chegar junto, finalmente encontrou uma brecha para aproximar-se da moça. Nenhum conhecido por perto… Um carro lá no fim da rua, todas as janelas fechadas naquele entardecer calorento… Se até as câmeras pareciam focadas em outros ângulos, ele, não sem alguma timidez, finalmente, enxergou a possibilidade de afogar o ganso.
– Posso ver a licença?
Era importante. A prova de que a prestadora de serviço havia sido aprovada pela Santa Vigilância Sanitária para exercer a atividade autonomamente. A moça abriu a bolsa e quase esfregou na cara dele a carteirinha devidamente autenticada pela Diocese. Após as consultas de praxe sobre preço, local e duração, pigarreou e quis saber se havia espaço para algo, digamos, diferenciado.
- Depende, arregalou a moça o seu olho esquerdo. - Se estás pensando em estacionar seu carrinho na garagem dos fundos pode tirar seu periquito do poleiro. Sou uma profissional juramentada, transo apenas para fins de procriação. Essa é a minha obra.
“Tem mérito”. Não era nenhuma porra louca, se via. Sentiu que faria um sexo seguro e produtivo. Mas não era tudo. Havia aquilo… o danado do algo mais. Como explicar à moça?
- Faço um boquete que é uma beleza. Mas, aviso que não engulo, recolho para depósito no banco de sêmen da paróquia… Em troca você tem direito a um cupom de desconto.
- Claro.
- Então… Vamos fazer neném?
- Só uma coisinha…
- O sexímetro está ligado…
- Não quero propriamente algo convencional…
- Não tenho nenhum problema em lhe bater uma com os pés, com os peitos ou com a língua… Se desejar, deixo gozar no meu orifício auditivo...
"Pobrezinha, tão contraditória", pensou buscando coragem para se expressar. - Tudo bem... Quero que você me bata uma, aconchegada no meu colo, enquanto chupa meu peitinho e eu enfio o dedo no seu… Você sabe.
- Pera aí, tinha esquecido que esse negócio de masturbação tem lá suas especificidades... Preciso consultar o vigário online…
- Não. Esquece…
E desapareceu. Pelo resto da vida continuou seu sexo seguro consigo mesmo, visualizando a Piéta e suando bicas de pavor de ser flagrado pela vigilância.




sábado, 3 de junho de 2017

A Parede

The Wall, Abbas Kiorostami, 2010

Quando acordou, espichou o olho para o lado e desolado, constatou que, mais uma vez, não teria com quem brigar: a mulher não estava, partira em mais das suas viagens de turismo cultural.
A caminho da piscina, deu um pescoção na empregada e encontrou alívio ao exigir que ela engolisse o choro e parasse de praguejar.
Durante o café, diante da tela de plasma, o âncora de dentes alvíssimos levou-o a chafurdar em assassinatos, assaltos, perseguições policiais, rebeliões em presídio, acidentes a dar com pau, brigas domésticas etc., etc., etc… E para coroar a mundiça, vidrou uma mesa redonda com especialistas que discutiam leis mais severas, pena de morte e a decretação do juízo final.
– Vê só, Mercedes, assim funciona a coisa: cria-se medo pra que compremos segurança. Adoro esse sistema.
Saiu cantarolando em direção ao arsenal. Primeiro vestiu o hauberk, um lorigão ou simplesmente cota de malha (macacão de aço apto a resistir a qualquer petardo). Por cima, uma camisa de cambraia de linho egípcio, na cor neve. Em seguida, escolheu um retilíneo terno pós-flandriano cinza capital e gravata sedosa Sancler du Mont na cor azul ianque – um luxo. Para coroar tamanha elegância, colocou na cintura um eficiente Colt 45; na axila, a amada Glock – invisível a detectores de metal; no bolso interno do paletó, uma PPK – pra se sentir James Bond; e, na virilha, a Armatix iP1, cuja trava eletrônica permite apenas ao dono empunhar e disparar. Finalmente, checou a Uzi na valise e conferiu a trava de segurança do imprescindível rifle de assalto F2000.
Ao dirigir-se à garagem, socou as costelas da lacaia que, dramaticamente, deixou-se cair, feito saco velho de batatas, no piso de marmóre de Estremoz da cozinha decorada com o melhor que o mogno amazônico e o aço alemão podem oferecer a uma dona de casa.
Fazendo juz à sua reputação de macho alfa, solicitou, energicamente, que a doméstica parasse com aquele piti e desse um brilho adicional no seu Testoni confeccionado com os melhores couros de jacarés, forrado com pele de cabra marroquina, encimado por uma fivela de ouro 24 quilates.
O Land Rover blindado, motor V-8, 503 cavalos de potência já o aguardava urrando tal qual um grizzly no cio. O sistema de defesa e ataque (devidamente importado de Israel), imediatamente foi colocado em estado de alerta, pronto para ser acionado assim que necessário.
Ao parar no semáforo, o segurança eletrônico avisou da presença de um indesejável e famélico malabarista. Ato contínuo, a mira foi travada e sem que houvesse contagem regressiva, bum… Mais um zé-ninguém, devida e eficazmente, pulverizado para todo o sempre, amém.
Após ouvir o adagio da New World Symphony de Dvorak e, alcançada a paz, colocou pra cantar seus Pirelli 235/40R19 Pzero XL NeroGT 96Y compradas no black de um mecânico dissidente da Fórmula 1. Porém, logo teve que frear bruscamente: uma manifestação monstro de prejudicados barrou-lhe o caminho. Sem titubear, ligou o automático, passou por cima de uma centena de pessoas e continuaria seu trajeto não fosse um policial, montado numa 950 cilindradas o alcançar.
– Sim, senhor… Que bagunça, hein?
– Presumo que saiba com quem está falando?
– Saber eu sei. Mas tudo tem lá seu limite: não se pode simplesmente sair por aí espalhando merda na nossa cidade linda e limpa… Sinto muito mas, tenho que multá-lo…
– Sabemos que existe um remédio para isso, pois não?
– Depende…
– Alguma sugestão?
– Se me permite… Por acaso, tenho um primo… Um minutinho… Nabuco, sou eu… Olha só, um conhecido meu, gente fina, fez uma cagada homérica na Juvenal Peixoto… Dá pra mandar uma equipe?… Beleza… Você é o cara… Outro… Um cheiro no sovaco…
Deixou um cartão com o guarda e seguiu sem perceber que a felicidade tem prazo de validade. Ao sair do elevador no 45º andar da sede da empresa, foi recepcionado, aos gritos, pelo presidente do maior conglomerado da paróquia no ramo das coisas que todo mundo deseja, ou desejará um dia, caso continue a aparecer na mídia e consiga manter patrocínio de todos os eventos esportivos capazes de juntar multidões. O pobre homem tinha os fiscais do governo em seus calcanhares e temia que aquelas canetas caprichosas e desprovidas de civilidade pudesse macular o honrado nome da empresa… Onde estava a lista dos políticos alugados? Quem são os juízes e procuradores a soldo? E mais: queria, agora mesmo em sua mesa, um arrojado plano de marketing que fulminasse a concorrência e otimizasse os lucros. Foi quando ele solicitou cinco minutos, para chutar alguns traseiros e, ato contínuo, trouxe a solução na ponta da língua: vincular todos os produtos, fossem quais fossem, à lógica infantil…
– Nos dias de hoje, explicou, por falta de espaço e hiperatividade das crianças, os pais fazem de tudo para mantê-las quietas… O negócio é oferecer tudo como se fosse doce ou brinquedo.
– Genial, aplaudiu o chefe. - Agora vamos até a varanda do 2º andar, mijar na cabeça de alguns transeuntes.
– Adoraria mas, infelizmente, tenho ainda que apalpar umas buzanfas...
Até a hora do almoço, ainda encontrou tempo para sussurrar obscenidades no ouvido de duas secretárias e, na saída, sem perder o bom humor, passou uma rasteira no porteiro e saiu assobiando Singin' in the Rain, certo de que vivia no melhor dos mundos.
No majestoso clube (edifício neocolonial com fachada neoclássica decorada com imensos painéis concretistas acima de qualquer suspeita, devidamente planejado para disfarçar as fissuras oblíquas que lhe atacavam os pilares de baixo para cima) alojou-se, na sua poltrona predileta e logo uma generosa dose do velho Macallan (single malt de 64 anos) achegou-se à sua mão esquerda, enquanto seus olhos ávidos de entertenimento, repousaram na tela de 75 polegadas exatamente no instante em que o “aquele canal” dava inicio ao leilão do dia: 72 virgens, 450 kg de coca, 200 fuzis metralhadora com 10000 cartuchos cada um, 30 misseis terra-ar, 25 terra-terra e duas belezuras de 100 megatons, cada uma, novinhas em folha.
Após saborear testículos de antílope indianos marinados no leite de onça-parda e arrematar algumas coisinhas, bateu soninho. No caminho de casa, esforçando-se para não cochilar, abateu, sem misericórdia, cinco travestis e uma puta balzaca.
Na segurança do lar, encontrou a família reunida.
– Quanto tempo ainda pra você chegar à presidência? Não aguento mais a Liliexbeth agindo como se fosse madre superiora. Ela é mulher muito cruel, sabia?
– E as minhas gracinhas… Não vão apresentar os convidados?
– Pai, este é o meu marido. Estamos de partida para o Paraguai, disse o pimpolho.
– E esta é a minha noiva, falou a caçula. Mas ainda não é nada definitivo.
– Mas assim não terei posteridade!
Uma sonora gargalhada preencheu o espaço. Comportamento incomum naquele ambiente no melhor estilo “ostenta que te fa bene”.
– O que há contigo, Jêninho? Sempre vivemos no agora, sentenciou a esposa.
Diante da janela blindada com vidro SR 5096, soube que deveria pensar um pouco mais naquelas palavras, porém seus olhos não conseguiam desgrudar do impávido colosso que cercava sua propriedade.
– Alguma alteração?
– Nenhuma, doutor. Continua fitando a parede.
– Vamos introduzir, então, a Clozapina de 100.


sábado, 20 de maio de 2017

O Circo da Onça Parda


The Wheel of Life, Stanley Pinker, 1974


A Onça sonhava em ser estrela de Hollywood. Mas como morava na Cochinchina, pediu dinheiro emprestado a uma tia, comprou uma lona e montou um circo.
No dia seguinte contratou um Domador de Pulgas, três Girafas Bailarinas, quatro Besouros Palhaços, cinco Araras Malabaristas, seis Jiboias Equilibristas, sete Macacos Trapezistas e saiu pelo mundo fazendo graça. Mas o seu grande trunfo, aquilo que chamava mesmo atenção, era o número final do espetáculo: uma peça teatral, escrita, dirigida e protagonizada por ela. E para alcançar o sucesso, a Onça desenvolvera uma engenhosa estratégia. Em cada localidade que chegava, botava seu bloco na rua à procura do assunto mais comentado. A partir daí, criava um roteiro, trocava os nomes, acrescentava alguns quiproquós, enfiava meia dúzia de piadas e zás… Não tinha erro: casa cheira todo dia.
Tinha mesmo talento pra coisa, a Onça. O que ninguém sabia era que ela se valia de uma arma secreta. Para não depender apenas da equipe, mantinha escondido no seu trailer um sistema de escuta, inventado por ela a partir de apostilas de um curso de eletrônica por correspondência. Esse equipamento lhe permitia ouvir até pensamentos. Era só apontar a antena na direção do alvo para ouvir até as batidas do coração da pessoa, estivesse onde estivesse. Desta forma, a Onça conseguia ouvir tudo que não se costumam falar na presença de estranhos e também aquilo que nem às paredes se tem coragem de confessar. Desse modo, não existia segredo para a Onça e esse era o seu segredo. Até que o circo chegou na Vila do Poxaréu.
Logo após o desfile das atrações pela rua principal do vilarejo, a Onça falou que ia tirar um cochilo, correu pro trailer e apontou o radar na direção das casas. Logo captou uma conversa estranha. Gravou que a Família Bovina se gabava de colocar água no leite e assim aumentar os lucros sem aumentar a produção. Gravou também a Família Abelha comentando que vendiam melaço de cana misturado com suco de milho como se fosse mel puro. E conseguiu escutar que a Família Leão vendia proteção e segurança enquanto chefiava uma quadrilha de Hienas e Fossas assaltantes.
De posse dessas e de outras histórias cabeludas, a Onça preparou sua apresentação da noite, certa de que estouraria a boca do balão. Afinal, todo mundo gosta de histórias escabrosas, pensou esfregando uma mão na outra.
Mas, o tiro saiu pela culatra. Quando o público viu a encenação, não houve quem conseguisse segurar a turba. Uns exigiam saber como foi que a Onça conseguiu acesso àquelas informações e quais eram suas fontes; outros alegavam que tudo não passava de uma campanha de difamação contra famílias eminentes da cidade. O que ninguém podia negar era que, nunca na história de Poxaréu se tinha ouvido falar de tanta corrupção.
O delegado emitiu ordem de condução coercitiva para que a Onça comparecesse ao tribunal, porém quando os guardas vieram prendê-la, encontraram o povaréu pronto pra tocar fogo no circo e prender os artistas, para sempre, num buraco bem fundo, no meio da floresta, sem pão nem água, para que morressem à míngua. Formou-se uma confusão, um empurra-empurra dos diabos. A Onça aproveitou uma brecha, tentou sair de fininho pra se livrar do equipamento secreto mas, alguém a segurou pelo rabo e, após descobrirem fitas e mais fitas de gravações clandestinas no seu camarim, não pensaram duas vezes: levaram-na presa para responder pelos crimes de lesa-pátria e alta traição.
No julgamento, alegou em sua defesa que apenas encenou a verdade. Se a maioria da população fosse mesmo direita, como afirmavam ser, deviam mesmo era prender e condenar os poderosos que vinha enganando todo mundo desde muito tempo.
O júri deliberou e decidiu que, pela culpa de indiscrição, a Onça teria seu equipamento destruído e um chip seria implantado na sua orelha – cada vez que tentasse ouvir uma conversa alheia receberia uma descarga elétrica. O circo pode seguir caminho mas, a trupe foi avisada de que jamais deveriam colocar os pés de novo na cidade, sob pena de morte bastante dolorosa.
Desde aquele dia, o Circo da Onça Parda nunca mais foi o mesmo. Gato escaldado tem medo de água fria, não é assim? Hoje, sobrevivem assim-assim, levam a vidinha, apresentam velhos números, fazem as mesmas piadas, encenam as mesmas peças... O problema é que, sem entusiasmo, o sucesso não bate duas vezes na mesma porta. 
Quanto a Vila do Poxaréu, depois da partida do circo, o povo decidiu processar os corruptos. Mas como eles dominavam e dominam os poderes locais, acabou acontecendo o que todos estão acostumados: deram uma mudada para que tudo continuasse como estava. 


sábado, 6 de maio de 2017

Cariátide

Pórtico do Museu de São Petersburgo
Entrada Histórica



Dois humanos se encontraram diante de uma cerrada névoa. No ponto que estavam não se enxergava um palmo adiante do nariz.
Um deles sugeriu subir nos ombros do outro para ver se conseguiria avistar o horizonte e que depois trocariam de posição. O primeiro concordou e o segundo subiu em suas costas e lá se estabeleceu.
Por vezes, o primeiro tentou saber o que se passava acima da sua cabeça e o segundo respondia que logo desceria; que logo o outro subiria para ver com os próprios olhos o que tinha para ver; que aguardasse mais um pouco; que logo seria a vez dele usufruir das maravilhas que lá em cima se projetava.
E o tempo passou, e a medida que o tempo passava o segundo construiu sob os ombros do primeiro, uma casa, depois uma rua, depois uma cidade, depois um país, depois uma nação e assim foi até construir uma cultura com todos as benesses e mazelas que o engenho pode oferecer; além disso, casou-se, multiplicou-se, legando a seus filhos o nobre encargo de prosseguiram com a edificação da Obra.
E o primeiro sempre a perguntar quando trocariam de posição e sempre recebia como resposta que tivesse paciência; que esperasse um pouco mais; que havia ainda alguns retoques, alguns ajustes, que logo, logo poderia subir e completar aquilo que havia ajudado a criar. Que se orgulhasse disso, a posteridade lhe seria grata.
O primeiro também casou-se, multiplicou-se e os seus filhos não tiveram alternativa senão seguir o pai, colocando seus ombros a serviço da Construção.
Com o tempo, aquilo se tornou normal, virou tradição. Havia os de baixo que sofriam e os de cima que usufruíam e ninguém sabia explicar porque as coisas eram daquele jeito.
Um dia, o primeiro, acabado, gritou basta. Disse que não dava mais, que dali pra frente o segundo procurasse outro para sustentar aquela excrecência.
Lá do alto, o segundo, irritado, bradou: Não podes desistir, humano sem compaixão. Se deixares de sustentar a Obra, todo o nosso esforço terá sido em vão. É isso mesmo que queres, destruir a Civilização?
E o primeiro não aguentando mais, deixou que seus ossos fossem transformados em coluna de sustentação para mais uma área em desenvolvimento.
Moral da história: O interesse é a mãe da justiça. 


sábado, 22 de abril de 2017

Conto ao Mar


Mitos Profecias do Fim do Mundo
Nina Tokhatman Valetova, 2009



Existem histórias destinadas às chamas.
Federico Hamor Dazonni
Editor de Cultura
Gazeta Minudente, 15-02-1963


Bisonho Pata Molhada era um touro vulgar, burro e ladrão… Contudo: dono, juiz e senhor de dois terços de Beira do Cipó. O terço restante, seguia governado por uma seleta e abençoada mistura de corvos boa praça com camundongos sectários, devotos do queijo voador. Para legitimar tudo isso havia um time de especialistas, fazedores de leis, decretos, normas, portarias, comunicados e memorandos, devidamente gerenciados pela Corte dos Cágados Relutantes, tribunal com plenos poderes para legislar em causa própria em qualquer foro que lhe for do agrado.
Vagando de déu em déu se arratavam os Prejudicados, presa predileta dos pavões-do-matoexímios praticantes da arte de arrancar o couro sem matar o cabra. Pau pra toda obra, era na classe prejudicada, parcela majoritária da população, que se recrutava os melhores braços para as lides diárias. Entregues às labutas de comer o pão que o diabo amassou; fazer das tripas coração; viver entre a cruz e a espada; meter a mão em cumbuca; comer gato por lebre; apanhar touro a unha; chover no molhado; procurar chifres em cabeça de porca; conduzir vacas ao brejo… Em meio a tantas atribuições e atribulações, mal tinham tempo para curtirem o vuco-vuco dos fofuchos pintassilgos que, adoravam distribuir carteiradas a torto e à direita e tinham por profissão, desfilar, dia e noite, a bordo de seus possantes dotados de autoconsciência e amor-próprio.
Em meio a tudo isso, transitavam serelepes e audazes, cobras apostadoras devidamente subvencionadas pela única rede de comunicação e entretenimento autorizada a transmitir, ao vivo, as peripécias da equipe de robôs endiabrados fabricados pela corporação Sofarway, uma empresa ecologicamente correta, a serviço da simpática máquina boazinha e à acumulação rápida e indiscreta de capitais. Sustentavam tal sistema, o conjunto dos lagartos zeladores ab ovo das sagradas estatísticas, exímios calculadores de mágicas margens de erro.
Mas nem tudo é serviço. Para alegria geral, concursos anuais eram realizados entre as tanajuras para escolha dos melhores glúteos, em benefício exclusivo do aprimoramento da raça. Este inocente e cordial passatempo era motivo de júbilo, verdadeira febre esportiva, muito apreciada e incentivada, sem furdunço, pelos altos e baixos escalões. Embora causasse desconforto na minoria intrometida de meia dúzia de gansos, temerosos de deformações endógenas que, empertigadamente, viviam solicitando, sem sucesso, maior controle do evento por parte das autoridades sanitárias.
Para contornar qualquer possível impasse, o comitê responsável pela organização de festas instituiu os Jogos Fodásticos – conclave realizado de quatro em quatro anos, numa localidade escolhida para receber a Batata Quente (símbolo maior da nossa tradição). Este evento era a fonte mais rentável de dividendos para a economia beiracipóense. Porém, dado o caráter volátil da dinheirama arrecadada, era praxe vê-la aparecer em contas secretas de paraísos fiscais, sob pretexto de preventivas medidas para se evitar qualquer tentativa de moratória dos juros devidos, desde que o mundo é mundo, ao exclusivo Clube das Aves de Rapina que Voam Alto e Enxergam Longe. Verdade que alguns nativos lamentavam o costumeiro sequestro de 95% da renda individual sob a alegação de que era preciso contribuir para a manutenção do equilíbrio geopolítico global ora em uso. Mas ficava-se apenas no lamento e, por não convir dar trela pras mazelas, desprezava-se, de pronto, tais conjecturas e suas incômodas consequências.
E se nem tudo é serviço o mesmo se aplica às lágrimas. Para alcançar o riso largo, bastava olhar para o colossal rebanho de ratazanas transgênicas, capazes de produzirem uma qualidade de leite com alto teor de testosterona. Sucesso absoluto de vendas, tal bebida láctea era recomendada aos varões viris da comunidade, para o bem de suas desassombradas conformidades. Além disso, havia a coqueluche nacional, o biscoito Tetas da Mamãe, guloseira sem qualquer valor nutritivo, mas orgulho pátrio especialmente por derreter na boca e vir com prazo de validade indeterminado.
Mas antes que eu me perca, devo correr ao ponto. Era uma tarde desavisada, tarde que ninguém daria um tostão furado por ela, tarde sem quaisquer atrativos senão os costumeiros, ruidosos e agressivos protestos exigindo-se tolerância para com nossa intolerância, Pata Molhada teve um surto de bobice. Doutos e ilibados cérebros não chegaram a um acordo se firula ou faniquito dos brabos. Na dúvida, recomendaram chá de losna, sem açúcar, três vezes ao dia. Contudo, em vez das melhoras, Bisonho manifestou desejo de criar o mundo do nada e em sete dias entregar a obra pronta. Enlouquecido com a quantidade de detalhes a considerar, lá pelas seis e meia teve um arrebatamento. Uma luz canônica o alçou até o celeste domínio do queijo santo. Após voo rasante sobre a névoa do passado, compreendeu que já tinha sido tudo, menos honesto e decidiu, ali mesmo, na esfera metafísica, começar nova vida. E qual não foi a sua surpresa ao verificar que tinha diante de si um vetusto templo antigo. Após passar por um treinamento intensivo e bastante puxado com os monges locais, finalmente, ao cabo de algumas horas, recebeu o diploma de sujeito bom e virtuoso.
Ao retornar à Beira do Cipó, achando-se renovado e pronto para iniciar jornada épica e porreta, Pata Molhada, crendo-se agora honesto, não contava que, ao chegar em casa, sua família não o reconheceria, seus amigos o detratariam, sua mulher lhe rejeitaria e todos riram dos seus esforços para convencê-los do contrário… Até os bichos de criação cagaram e andaram à sua suposta mudança. Muito puto dessa vida, indignado, possuído por uma ira divina, deu-se por satisfeito com aquela presepada. Ao acordar do pesadelo, decidiu esquartejar, em praça pública, o autor dessa história.
Enquanto caminhava para o patíbulo, pude ouvir o decreto de celebração do fim do ano seguido por intermináveis fogos de artifícios que iluminaram o céu dos brigadeiros e urubus. E, na contagem regressiva para a chegada do novo ano, antes que a faca do açougueiro-mor encontrasse as minhas partes, eis que a agência de trafego aéreo informou, em boletim extraordinário, que um meteoro gigante e com intenções cataclísmicas, acabara de entrar em rota de colisão com a Terra. Imediatamente, foram confirmados os 99,99% de chance daquele troço, tresloucada substância sólida, atingir em cheio Beira do Cipó. Uma onda de pânico tentou chegar à praia mas, num golpe de mestre, foi contida pela intervenção do pessoal do Show Dominical de Todo Domingo que, abençoados pelos tubarões da mídia, convocaram os pensadores de plantão. Em parceria com diretores de marketing, não pensaram duas vezes em encomendar, às melhores agências de propaganda, duas ou três cartas na manga, para garantia de sobrevida ao patrão.
Na confusão, consegui escapar com a ajuda de um conhecido meu, fabricante de psicografias poéticas, ditados por palhaços obsessores que, enxergou na ocasião, uma chance de colocar em prática um infalível plano conspirativo de malfadamento das instituições, cansado que estava da posição decorativa que ocupava no jogo político literário e ávido por colocar um ponto final no predomínio cultural da turma dos comedores de pequerruchos. Enquanto buscava construir algum tipo de rede de proteção, mal tive tempo de redigir essas malfadadas linhas e, enquanto o meteoro caía, senti abrir-se as portas do beleléu. Embasbacado, mal tive tempo de jogar esse conto ao mar.

 

sábado, 8 de abril de 2017

O Sapo Cururu e a Princesa Magnólia

O Sapo, Tarsila do Amaral, 1928



Presta atenção nessa lenda, vou contar do jeitinho que ouvi. Numa ilha bem distante, pertinho donde mora o sabiá, era uma vez a princesa Magnólia que gostava de jogar futebol. Um dia, na hora de marcar um gol, deu uma bicuda tão forte que a bola caiu num lugar sinistro chamado Lagoa da Perdição. Grita daqui e dali, ninguém quis saber de ajudar. A princesa abriu o maior berreiro, chorou tão alto que tudo mundo correu pra longe protegendo os ouvidos. Ficou apenas o sapo-cururu, que foi quem primeiro me contou essa história.
Começa assim. O sapo, meu amigo, passava pelo charco no instante em que Magnólia começou o chororô e percebeu que era uma boa oportunidade para conseguir o que queria. Chegou até ela e disse que mergulharia nas águas turvas da lagoa e traria de volta, são e salvo, o brinquedo dela. A princesa, enxugando as lágrimas na barra do vestido, gritou que ele fosse logo, que ele era servo e que, portanto, tinha obrigação de ajudá-la. Se não trouxesse a bola o mais rápido possível chamaria os guardas do seu pai pra prendê-lo por desobediência.
Aqui entre nós, todo mundo sabe que o batráquio não tinha obrigação nenhuma de ajudar seu ninguém. A gente ajuda porque tem vontade, porque tem compaixão, porque não aguenta ver outra pessoa sofrer. Mas, foi por aflição que o sapo decidiu ajudar. Um problema grave ocorria. Sua namorada estava vivendo uma situação difícil e ele precisava fazer o que fosse preciso para livrá-la do mal que a afligia. Porém, precisava fazer as coisas direito, livre de erros. Por isso achou melhor não falar o motivo que o trouxera àquelas paragens, falou apenas que recuperaria a bola se a princesa lhe desse uma tigela de ambrosia. Magnólia ficou com uma pulga atrás da orelha. Estaria o sapo dizendo a verdade? Em meio à dúvida, não teve alternativa senão concordar com o pacto: se o sapo trouxesse a bola, teria o quanto de ambrosia pudesse carregar.
Cururu mergulhou na lagoa espessa e ao chegar ao fundo levou um baita susto ao encontrar Boiaçu, a Cobra Grande. A serpente, que tinha engolido a bola de propósito, disse que devolveria em troca de um favor. E contou-lhe uma história. No passado fora uma linda moça que casou com um rapaz bonito e cheiroso que, no começo, parecia bem legal mas logo revelou-se um tremendo “casca grossa indiferente aos seus sentimentos. O sujeito, com o tempo, começou a tratá-la mal. Ameaçava-a sempre com pancadas se não fizesse o que ele queria. Certa vez, tomado de raiva, deu nela com um cabo de vassoura que lhe deixou uma marca feia nas costas. Os pais dela gostavam demais do moço, diziam que ele era muito esforçado, trabalhador e por isso não acreditavam nas queixas da filha. Falavam que ela precisava deixar de ser patricinha; se adaptar à realidade; que casamento era assim mesmo, que com o passar do tempo o amor chega e aí todo mundo é feliz para sempre. Pois é. Mas foi só os velhos baixarem à sepultura para todo mundo descobrir o verdadeiro motivo do carcamano ter se casado com ela: a herança. Tão logo passou o luto, o malvado contratou um feiticeiro que, imediatamente, a transformou naquela serpente rancorosa, desterrando-a para os confins daquela água parada. Desde então, vivia separada da sua filhinha – a doce e terna Magnólia. Se conseguisse fazer com que a filha a abraçasse, todo feitiço seria desfeito e a justiça restaurada.
Com a bola debaixo do braço, o anuro nadou de volta à superfície. Assim que a princesa recebeu o brinquedo, botou sebo nas canelas e picou a mula na direção de casa, largando o sapo a ver navios. E agora? Gia, sua namorada, prisioneira na caverna do implacável Ciclope do Olho Redondo, estava lá a espera que ele arranjasse um bocado de ambrosia para saciar a fome do gigante. Se não aparecesse com o resgate até as duas horas do dia seguinte, adeus amor, adeus família, adeus mundo… Também ele iria para o tacho.
Pula daqui e dali, não passou desapercebido aos guardas do palácio que o levaram à presença do Rei. O monarca tapou o nariz com um lenço de seda, fez cara de poucos amigos e ordenou que o jogasse fora. O sapo pediu licença para falar umas palavras e foi aquele furdunço. Ninguém nunca tinha ouvido um bufo marinus falar. O vizir, um traste muito do puxa-saco, cochichou no ouvido do rei que aquilo era um achado, um talento daqueles significava dinheiro, muito dinheiro no bolso da majestade, que pensasse em apresentações daquele fenômeno em feiras, circos, teatros, televisão, cinema… Sua Majestade ficaria ainda mais rico se soubesse explorar aquela oportunidade. E o rei sorriu e não sentiu mais nojo. Ordenou que preparassem uma festa onde o braquetápulos seria apresentado à Corte. Cururu vendo que tinha acabado de entrar noutra roubada, teve que pensar rápido num jeito pra conseguir pegar a ambrosia e dar o fora dali rapidamente.
Quando os guardas o estavam levando para tomar banho e trocar de roupa, Magnólia atravessou o corredor e não acreditou no que viu. Como é que o sapo tinha conseguido entrar no palácio? Aproximou-se e disse aos guardas que deixassem que ela mesma conduziria o convidado aos aposentos, que ela mesma escolheria a traje que o amigo usaria no baile daquela noite. Deixados a sós, Magnólia quis saber qual era a dele. Ora, respondeu ele, estava apenas tentando resolver um problema cabeludo e se ela tivesse um pouquinho de gratidão o ajudaria nessa hora de angústia. A princesa admirou-se e sentiu vergonha. Arrependida, decidiu que o ajudaria mas com a condição que lhe contasse toda a verdade, qual o motivo dele querer pra si o alimento mais caro do mundo.
Meu amigo resolveu abriu o bico e contou tudo. Que tinha se encontrado com Boiaçu e ficou sabendo dos maus tratos para com a rainha, sua mãe. Apenas ela, e mais ninguém, poderia anular o feitiço. Como aquilo era possível, perguntou Magnólia. Sua mãe havia morrido, o pai lhe dissera. Mentira, gritou o sapo. É só ir até a lagoa que a verdade será revelada. A princesa, que era uma manteiga derretida, correu chorando para o mato. Como ter certeza das coisas? Só havia um jeito: ir fundo na história. Temerosa, meio sem jeito, aproximou da lagoa e sussurrou: Mamãe… E, animada gritou: Estou aqui, mainha! Boiaçu, botou a cabeça fora d’água e sentiu que seu sofrimento tinha acabado. Mãe e filha correram para o abraço e um clarão iluminou as duas: o feitiço estava desfeito.
Agora, era preciso castigar o rei, por sua maldade. Magnólia pediu às amigas formiguinhas que elas trouxessem o monarca até ela. Quando ele chegou e viu mãe e filha juntas, pediu perdão por ter sido tão cruel, alegou que fora enfeitiçado mas, de nada adiantou suas súplicas, foi sentenciado a perder tudo e a perambular pelo mundo ganhando a vida com o suor do seu rosto.
De volta ao palácio, princesa e rainha decidiram presentar o sapo com uma tonelada de ambrosia, o bastante para que ele salvasse a amada. Magnólia quis beijar o amigo pensando que ele se transformaria num príncipe mas, Cururu achou melhor não, aquilo era apenas uma história de trancoso. Onde já se viu bicho virar gente? Mais fácil gente virar bicho, isso sim. 
Finalmente, livre de problemas, meu amigo casou-se com Gia, a Prudente. Tiveram duas lindas meninas, Rhinella e Marina e todos viverão felizes para sempre, se você, que leu ou ouviu o meu conto, passar adiante essa história.