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sábado, 26 de novembro de 2011

Soltem a Magdala - Último capítulo


Comédia, Jacques Callot (1592-1635)


Derradeiro capítulo da saga ilustrativa do aforismo “Vão-se os dedos, ficam os anéis”, brilhantemente comentado na Introdução do célebre tratado de ontologia “Uma cebola é uma cebola, tudo o mais são favas” do admirável filosofo, colunista social e sacoleiro de profissão Athaíde Bossay de Melo Rego.

Falcão – Baterias antiaéreas daquele lado. Metrancas a cada vinte metros. Já acamparam na praça. Não permitam que subam a rampa.
Volupo – Falcão, vai dar uma voltinha, vai!
Falcão – Não captei!
Volupo – Sempre atrasado...!
Baleia – Excelência, mil perdões.
Volupo – Que foi desta vez, Baleia?
Baleia – Os ratos abandonam o navio.
Volupo – Respira.
Baleia – Os Prejudicados conseguiram o apoios dos credores.
Falcão – Ferrou geral.
Baleia – Ameaçam cortar o fornecimento de rabiolas.
Falcão – Ai, meus obuzes!
Volupo – Burocrário, traz a Magdala.
Falcão – Pirou?
Volupo – Fala pro povo, amor!
Magdala – (Toda fashion) “Erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Falcão – Boiei!
Volupo – Tem que ver as coisas pelo lado estético, sacou?
Falcão – Pra mim, isto é frescura.
Volupo – Acho melhor você tirar o seu time de campo.
Falcão – Mas o que foi que eu fiz?
Devassa – Não se engana muitos por longo tempo, Carcamano disse-me um dia.
Volupo – Aqui entre nós, me conta: você e ele...?
Devassa – Até parece...!
Volupo – Desta vez não pode haver engano, hein! Tudo terá que ser como manda o figurino.
Devassa – E quanto a Magdala?
Volupo – Viajará o mundo, alcançará a fama, aplaudida por todos.
Devassa – E se... você entende... ela entregar o ouro?
Volupo – Não se preocupe. Adicionei as três leis da robótica. Burocrácio, abra a rede.
Burocrário – Contagem regressiva!
Volupo – Aos seus lugares.
Burocrário – Em três, dois, um... no ar!
Volupo – Pelopinos e pelopinas. Não quero interromper por muito tempo a novela. Além do mais, o rango pode esfriar e aí a dona Maria vai ter que esquentar tudo de novo, coisa que o seu Zé não gosta, não é mesmo? E como não quero ser acusado de provocar dissensões no seio da sagrada família, vou direto ao ponto, odeio nhén nhén nhén! Venha até aqui, minha filha, chega mais. Estão vendo? Táqui do meu lado, minha sobrinha Magdala, a musa preferida do povão. Neste momento solene, eu, Volupo de Pelópia, decreto e assino aqui e agora, diante de todos vocês, a entrega, simbólica, do cetro e da coroa praquela que foi aclamada, por vocês, como a legítima soberana. Disse simbólica por que minha mui estimada menina ainda é menor de idade e só poderá sentar ao trono quando completar vinte e um aninhos, coisa que só acontecerá daqui a alguns anos. Naquela oportunidade faremos um plebiscito para sabermos se queremos a monarquia ou a república, não é uma boa? Enquanto isto, as portas do palácio estão escancaradas, apareçam prum cafezinho. Mas marquem hora, que isto aqui não é a casa de mãe joana. Portanto, congelem tudo que a antiga musa canta e preparem-se para o próximo campeonato mundial de arraias. Pelópia não perderá o bonde da história. Boooa noite!
Burocrário – Fecha a rede!
Volupo – Baleia, providencie um completo banho de loja na nossa menina. E ó: capriche na maquiagem. Quero fotos dela distribuídas em todos os jornais, repartições públicas, churrascarias e postos de gasolina... pra ontem, viu?!
Baleia – Vem, neném!
Volupo – E nada de intimidades, seu pervertido!
Magdala - “Caminhando e cantando e seguindo a canção”.
Volupo – Chiii, deu tilte na rebimboca da parafuzeta.
Burocrário – Bem que falei que aquela cartilha de OSPB estava com o prazo de validade vencida.
Volupo – Quero imediatamente uma campanha pelo estabelecimento da república.
Devassa – Espera aí, se você iniciar uma campanha para o estabelecimento da república e sabendo-se que a república caracteriza-se pela alternância no poder, o que me garante que iremos continuar no bem bom?
Volupo – Soltei a Magdala, não soltei?! Pensa que o povo esquece? Quando ela chegar à maioridade, teremos aprovada a república. E quem sairá candidato a presidente, quem?
Burocrácio – Gostei, mais uns vinte anos pra deitar e rolar.
Volupo – É ou não é um bom plano de previdência privada?
Baleia – Viva o presidente Volupo!
Volupo – Ai, cansei.
Baleia – Ainda tem os credores.
Volupo – Já falei: devo, não nego, pago quando puder.
Baleia – Mas eles querem um compromisso assinado e com firma reconhecida.
Volupo – Sabe a reserva do Catimbó Açu?
Baleia – Não me diga que...?
Volupo – Acabei de aprovar um projeto de preservação. Gringo adora um verde.
Baleia – Sensacional!
Volupo – Chega por hoje. Burô é com você, meu nego.
Burocrário – Acabei de receber estas belezuras de pipas.
Volupo – Mostra, mostra!
Burocrário – Os banqueiros mandaram como brinde.
Volupo – E todas têm títulos, que hermoso. Moô, qual preferes?
Devassa – Xavê: república nova, república novíssima, neo-república... ai, tô indecisa!
Volupo – Falcão, chega mais.
Falcão – Estou bem aqui.
Volupo – Acostume-se com os novos tempos, amigo!
Falcão – Saco!
Volupo – Vamos lá, quero ver todo mundo empinando papagaios!

Cai o pano.


sábado, 19 de novembro de 2011

Soltem a Magdala - Capítulo 5


Jean-Antoine Waltteau (1684-1721) Comediantes Italianos


No capítulo anterior vimos que aquilo que não tem remédio, remediado está. Afinal, na hora do aperto todos correm para o mercado em busca de um bom e velho escambo.

Magdala – (Numa cela pobre porém limpinha, rabiscando versos) “Sou donzela bem nascida/ Pra vida bem viver/Meu sonho é tão bonito/ eterno amanhecer/ Que minha vida nada tenha de arremedo/ A esperança, irmãos, há de vencer o medo”.
Volupo – Vê quanto sofre esta pobre criança!
Devassa – Estaríamos bem melhor se estivesse emparedada.
Volupo – Um pouco de compaixão, mulher. Padeço, não vês que padeço? Hoje vejo que acima de tudo é preciso cantar.
Devassa – Se você pensa que vou dançar conforme a música...!
Volupo – Vamos pegar leve com ela, entendido?! Só precisamos ampliar seus horizontes.
Devassa – Contanto que seja nossa a perspectiva!
Volupo – Magdala, querida, sou eu, titio, lembra?
Magdala – Quem sois, quiqueres?
Volupo – Vim para mostrar-lhe o mundo, filhinha!
Magdala – “Ah, vislumbrar os doces prados da minha terra”.
Devassa – Tá bom, chega de gongorismos, vais direito pro chuveiro que a inhaca tá braba.
Magdala – “Sentir novamente o aroma dos campos e ladeiras deste meu imenso rincão. Andar de déu em déu, ouvir o eco do meu sussurro clamando pelo amor que me espera”.
Devassa – Louquinha, louquinha.
Volupo – Consequência do drama romântico... Que fazer?!
Devassa – Vejo que vamos ter que investir pesado na repaginada.
Magdala – “Famintos de justiça, não temais, meu verso será vosso pão”.
Devassa – É lasca!
Volupo – Vamos ter que tirar umas gordurinhas. Burocrário, prepara a mesa de operações.
Magdala – “Ó manhãs de primavera, minha retinas orvalhadas sorriem inocentes de toda dor”.
Devassa – Vamos ter que tirar mais que gorduras.
Burocrácio – Tudo pronto, chefe!
Volupo - Anestesia geral!
Devassa – Vamos ter que extrair alguns ranços.
Volupo – Bisturi!
Devassa – Cuidado com a bolsa!
Burocrário – Devagar. Assim vai ficar liberal demais.
Volupo – Pronto. Agora vamos transplantar algumas inovações.
Devassa – Cadê os modelos importados?
Burocrário – Na mão. Fotografia autografada da Doris Day beijando o Rock Hudson, fio do encharpe da Isadora Duncan...
Volupo – Talvez algo mais...!
Burocrário – Já sei: música do Vandré, discurso do Caetano...
Volupo – Péra, péra, péra... algo mais espiritual...
Devassa – Que tal um santinho do reverendo Moon.
Volupo – Gente, é preciso charme, ela não pode ficar capenga!
Devassa – Bota um desenho do Clodovil!
Volupo – Tá fibrilando, tá fibrilando... cheque o nível de oxigenação!
Burocrácio – 1.8 XL.
Volupo – Só mais um ou dois grampos...
Burocrácio – Fita crepe!
Volupo – Vai dá pro gasto. Tchan, tchan, tchan... Parla, meu bem, parla!
Magdala - O povo é soberano e sua vontade é lei.
Burocrácio – Chiiii... fedeu!
Volupo – Acho que exagerei na dose do cloranfenicol.
Burocrácio – Sugiro dar uma mexidinha nas disposições transitórias.
Prejudicados – (Off) “Só tem um jeito/ Pra sair do rolo/ É agora ou nunca? Magdala lá/ Ela é certinha/ Mais bonitinha/ Magdala já”.

Continua... 


sábado, 12 de novembro de 2011

Soltem a Magdala - Capítulo 4



arteemtodaaparte.wordpress.com

No capítulo anterior, graças aos sofisticados recursos tecnológicos disponíveis no momento, viajamos no tempo para constatarmos estupefactos certa lei inexorável: a corda sempre arrebenta do lado de quem tem a constituição mais fraca.

Devassa – Ainda ouço o silvo intrépido da ferramenta pelos ares. Tentei desviá-la mas, foi tarde demais. Carcamano tinha que empregar tanta força, tinha? Se não fosse aquela mania de exibir competência, a bicha não teria se soltado. Agora nossa delicada menina tem que conviver com esses quinze quilos de destruição fincados na omoplata esquerda.
Emengarda – Ieeeeaaarrrggghhhhrrrrr....!
Volupo – (Ao Doutor) Alguma sinal de melhora?
Doutor – Tsk, tsk. O caso é bastante comum, a literatura é rica em menções, contudo... o fenômeno é bastante complexo.
Volupo – Dá pra fazer por menos?
Doutor – O aço penetrou fundo, atingiu vasos comunicantes...
Devassa – Não me diga que ela...?
Doutor – Jamais!
Devassa – Deus, ó deus, poucos com muito e muitos com pouco!
Volupo – Há males que vem pra bem.
Emengarda – Arrggghhh...!
Devassa – Faça alguma coisa, doutor!
Doutor – Não há como retirar a excrecência. Todo os recursos físicos e metafísicos foram esgotados. Qualquer tentativa de remover-lhe a picareta poderá ser fatal.
Volupo – O que tem que ser, será!
Devassa – Por que isto não aconteceu com a filha da vizinha?
Volupo – O pior é que estamos gastando uma nota preta com este conceituado e exíguo cérebro científico e neca de pitibiribas.
Doutor – Mas veja pelo lado bom. Se não tivesse acontecido esta esdrúxula fatalidade, vocês estariam pagando impostos.
Volupo – E você o que é: humorista?
Doutor – A paciente precisa descansar.
Emengarda – Anaaarrrggghhhgggggblé....!
Volupo – O que me preocupa no momento é que o nosso segredo vazou.
Devassa – Como descobriram a Magdala?
Volupo – Agora morreu neves. Caiu na boca do povo, minha filha, já viu!
Devassa – Talvez ela devesse sofrer um lamentável acidente.
Volupo – Aí é que a vaca vai pro brejo. Vai sobrar pra quem?
Devassa – Maldita liberdade de imprensa.
Volupo – O que podemos fazer, além dos pescoções de praxe, é adiar um pouco os acontecimentos.
Devassa – Você não está pensando em...?
Volupo – Será que nos resta outra saída?
Devassa – Você a conhece bem. Se algum dia chegar ao trono, Magdala desencadeará uma onda de revanchismo sem precedentes.
Volupo – Para tudo existe uma solução. Ademais ela é sangue do nosso sangue, deve ter um bom coração. Sabe que no fundo, tudo que fizemos, fizemos por amor.
Prejudicados – (Em off) “Ó Emengarda não fique assim tão triste/ Esqueça o que aconteceu/ Do gorilão, metida a besta/ Que numa sexta, tascou-lhe a mão/ Do gorilão, da picareta/ Naquela sexta, que confusão/ O que será de ti, ô/ O que será de nós, ó/ Só tem um jeito/ Pra sair do rolo/ É agora ou nunca/ Magdala lá/ Ela é certinha, mais bonitinha/ Magdala já”.
Falcão – Más notícias. Botei escuta até em rabo de gato, tenho gente infiltrada em todo que é ralo de banheiro mas não consigo antecipar-me à avalanche de passeatas, comícios, greves e manifestações. Mal dissolvo uma reunião, já tenho duas, três pipocando aqui e acolá. A coisa tá preta e o negócio, a cada dia que passa, fica mais russo.
Volupo – Tem que haver uma luz fim do túnel.
Falcão – Admita, estamos indo pras cucuias. A cada dia cresce o número de prejudicados. O entulho precisa ser removido.
Devassa – Não seja impertinente.
Falcão – Desculpe mas, Emengarda é carta fora do baralho.
Volupo – Só há um modo de deter os prejudicados.
Falcão – Já esgotei todos os métodos.
Volupo – Soltemos a Magdala!
Devassa – Uma pitomba. Magdala não reinará.
Volupo – Faremos uma transição pacífica.
Devassa – A minha parte desta rapadura ninguém tasca eu vi primeiro.
Falcão – Ai, meus canhões!
Volupo – (Grita) Burocrácio!  

continua...


sábado, 5 de novembro de 2011

Soltem a Magdala - Capítulo 3


www.delpiano.com


No capítulo anterior, descobrimos que há sim alguns esqueletos no armário, produto de administrações passadas mal resolvidas emocionalmente. Faremos um breve passeio no tempo, com o auxilio de tecnologia de ponta, para vermos de perto as primícias de certos malassombros que assolam Pelópia.

Devassa – Não interessa o custo. Quero tudo do bom e do melhor, de preferência importado.
Baleia – Assim será. Não ficará pedra sobre pedra. Um novo conceito de palácio brotará nestes trópicos.
Devassa – Todo mundo trabalhando duro. E ai daquele que eu pegar coçando o saco.
Baleia – O seu milagre está garantido.
Carcamano – Ahn ahn... com licença!
Devassa – Coronel Carcamano! Que bom vê-lo de volta.
Carcamano – Minha senhora!
Devassa – E a quinta coluna?
Carcamano – Penetrando firme.
Devassa – Quanto tempo ficas desta vez?
Carcamano – Tempo suficiente para extirpar algumas minorias ruidosamente empedernidas.
Devassa – Só desejo paz!
Carcamano – Paz e progresso.
Devassa – Mas, voltando à vaca fria... Baleia, vá ver se estou na esquina (Baleia sai) Senti a sua falta.
Carcamano – Aqui me tens de regresso.
Devassa – Ando tão precisada.
Carcamano – Shiii! As paredes tem ouvidos.
Devassa – Toma, toma esta xexelenta nos braços.
Carcamano – Péra, mulher!
Devassa – Que foi?
Carcamano – Os tempos são outros.
Devassa – Não me diga que...!
Carcamano – Sim, preciso confessar: cobiço outra.
Devassa – Perfídia!
Carcamano – Nossa amor não tem futuro, Dedé. Meu sonho é casar na igreja, lua-de-mel em Caraguá e cuidar de sete filhos numa casinha branca no alto da colina.
Devassa – Não, não quero saber de mais nada. Quem é a lambisgóia?
Carcanamo – Alguém muito próximo. (Emengarda entra)
Devassa – Emengarda! Que fazes, pudica, passeando por aqui, nestas horas tão insonsas?
Emengarda – No quartinho fazia um calor tão... tão...
Carcamano – Tórrido!
Emengarda – Sórdido.
Carcamano – Permita-me refrescá-la.
Devassa – Não se dê ao trabalho, major.
Carcamano – Qual nada.
Devassa – Capitão Carcamano, penso estar na hora de passar a tropa em revista.
Carcamano – Perdão, por instantes deixei-me levar pela estética barroca.
Devassa – Melhor que te vás, querida. Os operários devem chegar a qualquer momento e isto aqui vai virar um bafafá.
Emengarda – Posso ficar mais um pouquinho? Gostaria tanto de ver esses homenzinhos trabalhando. Parecem-me tão... tão...
Carcamano – Másculos!
Emengarda – Minúsculos!
Devassa – Este tipo de espetáculo não fica bem pro teus olhinhos, meu amor.
Carcamano – Deixe que fique.
Devassa – Ela tem uma constituição muito frágil.
Carcamano – Comigo por perto não haverá imprevidência.
Devassa – Está bem, mas só um pouquinho.
Emengarda – Obrigadinha, titiazinha!
Carcamano – O trabalho enobrece o homem, já disse um filosofo.
Devassa – Gracinha. É o que pensas, tenente?
Carcamano – Sou de pegar no batente de sol a sol.
Emengarda – Adoro trabalhos manuais!
Carcamano – Permita-me uma demonstração. Vês aquelas ferramentas? Escolhe uma e verás do que este militante é capaz.
Emengarda – Eu posso, titia, posso?
Devassa – Escolhe a mais pesada, meu bem, o sargento Carcamano aguenta.
Emengarda – Minha mãe mandou dizer que eu escolhesse esta mas como sou teimosa escolho esta.
Carcamano – Graciosa troquilídea, reserve em tuas retinas espaço para cena insuperável (Apanha uma picareta).
Devassa – Cabo Carcamano, vê lá o que vais fazer.
Carcamano - ( Tira a túnica) Afastem-se, senhoras. Acabarei com estes aliceces num piscar d'olhos (Senta a pua)
Emengarda – (Atingida) Ahhhhhhgggggggrrrrrrrr....!


sábado, 29 de outubro de 2011

Soltem a Magdala - Capítulo 2


www.vilepasseist.wordpress.com


No capítulo anterior os Prejudicados bateram à porta. Mas sendo o preço da liberdade é a eterna vigilância, recorre-se primeiro aos últimos recursos.

Falcão – (Com bolas de gude) Tá brincando, não troco esta esverdeada por nada deste mundo. Sente só a firmeza. Uma esfera perfeita. Repara como desliza... quase não é preciso esforço...
Volupo – Falcão, quantas vezes já te disse que este esporte não dá futuro pra ninguém. Porque você insiste em ser diferente, meu filho? Alguém me lembra de assinar um decreto proibindo, de uma vez por todas, a prática deste jogo. Burocrácio, como andam as coisas?
Burocrário – Na mesma. Com ligeira tendência de queda.
Volupo – Continue monitorando a bagaça.
Burocrário – Estou indo agorinha mesmo pra Central de Balelas e Quejandos.
Falcão – (Ao Burocrácio) Epa, paradinho aí: devolve a gordinha!
Burocrácio – É mesmo uma belezura! (Devolve)
Falcão – Mas não é pro teu bico.
Volupo – Posso falar?
Falcão – Vamos nessa.
Volupo – Negócio seguinte... Ai, cansei: conta pra ele Baleia.
Baleia – Os Prejudicados mais uma vez botam as manguinhas de fora.
Volupo – É você na qualidade de ministro nomeado...
Falcão – Permite? Altamente nomeado.
Volupo – Mas que periga ser baixamente nomeado se não acabar com esta anarquia.
Falcão – Primeira providência: Consultar o Conselho.
Volupo – Como “consultar o conselho”?
Falcão – Ué! Como se consulta o conselho?
Volupo – O conselho é você, idiota!
Falcão – Perdão, mesmo sendo eu o conselho, só imitirei um parecer após amplas consultas.
Volupo – Agora deu! Quem ele que é: um democrata?
Falcão – Perdão de novo mas, tudo deve ser feito dentro da mais estrita legalidade. (Abre caderneta) Vejamos... Está bem aqui: blá, blá, blá... hum, hum, hum... Táqui: Inciso XXXVIII, parágrafo 27, artigo terceiro, capítulo VI, do Regulamento pro Seguro Não Morrer de Velho... ponto: Moleza: é botar pra quebrar!
Volupo – Pelo menos parece que sabe ler.
Falcão – Fui! Alguma coisa do comércio, madame?
Devassa – Se não for dar muito trabalho, dá pra passar na pizzaria e trazer uma gigante de aliche, com bastante azeitona?
Falcão – Sinto, mas não tenho xongas.
Devassa – Debita na conta única.
Falcão – Na um ou na dois?
Volupo – Alguém consegue levar as coisas a sério por aqui?!
Falcão – Cada coisa a seu tempo. (Saindo) Se não tiver aliche, posso trazer anchova?
Devassa – Anchova não gosto, traz de pepperoni com bastante toucinho.
Volupo – Ainda mando este cara de volta pro orfanato!
Devassa – Podemos ir agora?
Volupo – Agora não vai ser possível.
Devassa – Você tem que conversar com o médico.
Baleia – Minutinho, excelência.
Volupo – Marquei aula de yoga.
Baleia – Segundinho só.
Devassa – Mas...
Volupo – Deixa o Baleia falar, mulher.
Baleia – É que chegou um primo da cunhada de um sobrinho da empregada da irmã da vizinha da sogra gorda de uma conhecida da mamãe e...
Volupo – E tá procurando trabalho!
Baleia – Não chega a tanto.
Volupo – Devassa, minha flor, ainda temos vagas no Ministério das Forças Ocultas?
Devassa – Qual o nível de instrução dele?
Baleia – Phd em mercandaizing.
Devassa – Hum... talvez pra entubar bracholas no período vespertino.
Baleia – Ele é perito em projetos culturais, acrescento.
Volupo – Manda passar no almoxarifado e pegar uma arara fixa. Mas vou logo avisando, oitenta e cinco por cento do salário vem direto pro bolso do besta aqui.
Baleia – Anotado.
Volupo – Se perguntarem por mim diga que estou em reunião no clube .
Devassa – Nananinanão. O senhor vai visitar a Emengarda. Faz mais de mês que o senhor não comparece.
Volupo – Saco! Já devíamos ter jogado uma pá de cal nesta história.
Devassa – E acabar com o nosso bem bom?!
Volupo – Aquilo é um entulho.
Devassa – Mas é nossa sobrinha e se regemos, regemos em seu nome, lembre-se disto.
Volupo – Mas aquilo é uma inês morta.
Devassa – Fala baixo que ela pode ouvir. Vamos, entre. E bote um sorriso nesta cara de gamela. Cadê a minha fofinha?
Emengarda – Ahhhh...!
Devassa – Titio e titia tão ati!
Emengarda – Ahhhhhhhhhh....!
Devassa – Tê ti foi? Tá dodói ati?
Emengarda – Ahhhhhgggg....!
Volupo – Pára!
Devassa – Deixa de ser grosso.
Volupo – Se já não gostava de repolho, agora então...!
Devassa – Tínhamos que ter evitado aquele acidente.
Volupo – A culpa foi sua. Você inventou aquela reforma estrutural no palácio.
Devassa – A culpa foi nossa. Você concordou inteiramente com o projeto.
Volupo – O que a gente não faz para impressionar a massa!
Devassa – Parece que foi ontem. Sempre fui uma idealista, sabia? Sonhava com um mundo melhor, onde cada um pudesse ir à Paris pelo menos uma vez por ano. Mas o destino é cruel, tá nem aí pras boas intenções. E hoje, o que sou? Uma cética, cuja únicas venturas são alguns míseros trocados que mal dão pra despesas do dia a dia em Miami. Ah, quem me dera voltar ao passado...

Continua...


sábado, 22 de outubro de 2011

Soltem a Magdala - Capítulo 1


marceloazevedo.wordpress.com



Na longínqua, ensolarada e verdejante Ilha de Pelópia mandavam dois regentes austeros e ufanistas. Faziam e aconteciam e não prestavam contas. O povo para eles é que tinha a sorte de tê-los como donos da vida e da morte. Ê lugar bom pra se viver. Lugar bom pra se viver estava ali.


Burocrácio – (Com jornal) Patati patatá... deixa ver... ouçam esta aqui: “Não há um só pelopino, desde a mais tenra idade, que não pratique o mais popular e nobre esporte. Celeiro de craques, somos hoje grande exportador de cafifas. Pelópia desponta como favorita absoluta ao título máximo no campeonato mundial de pandorgas, posição que mantém a mais de meio século, a despeito da torcida contra, invejosa e maledicente”. E vai por aí a fora...
Devassa – A vida é linda!
Baleia – (Entrando esbaforido) Meus soberanos, o Ministério da Coisa Líquida e Certa...
Volupo – Que espero continue acertando e liquidando com altos índices de produtividade, diga-se de passagem!
Baleia – Respeitosamente...
Devassa – Você não está irradiando bons fluidos, Baleia!
Baleia – Sinto-me envergonhado por trazer-vos desagradável notícia.
Volupo – Quem se atreve...?!
Baleia – Os Prejudicados!
Devassa – Gentinha sem caráter.
Volupo – O que desejam desta vez? Não bastam as cestas básicas?
Baleia – Sublime recordação. Porém, o buraco agora é mais acima. Ameaçam invadir o palácio se a infante Magdala não for libertada e coroada imediatamente soberana de Pelópia.
Regentes – Ai, ai, ai... me segura que vou ter um troço (Desmaiam)
Burocrácio - (Ao Baleia) Satisfeito?
Baleia – Mas...
Burocrário – Esta tua competência ainda vai acabar nos levando pro buraco.
Baleia – E agora?
Burocrário – Segura tua onda e vai bombando ar (Entrega-lhe um leque. Recita) “A densa floresta de sanguessugas repleta/ De abrigo serve ao ignaro contrabando/ E às orgias laicas dos primitivos aborígenes/ Mas o braço valeroso e forte/ Do egrégio poder lúcido e audaz/ Traz a impoluta máquina/ O potente tijolo/ E o prático aerosol repelente/ Cumprindo seu destino altaneiro/ Rasga o homem/ O manto covarde e vil da indolência/ Introduzindo na mata inóspita/ A singela civilização/ Ei, serra/ Ei, trator/ Leva o progresso onde a vontade guie/ E a insigne excelência alcance”.
Devassa – Já consigo respirar!
Volupo – Puxa, tocou fundo. Lavra de quem, esta pérola?
Burocrácio – Da minha santa vó, que o divino a tenha!
Volupo – Emoções à parte, chegou a hora da onça beber água. Abram as canais com a nação!
Burocrário – Rede à postos! Em três... dois... um, no ar! Sai pro lado, Baleia!
Volupo – Pelopinos e pelopinas. Mais uma vez, no exercício estrito do dever outorgado, penetro em vosso lar (com perdão da má palavra) no momento em que saboreardes uma gentil penosa. Obrigado e bom proveito. Amados, novamente a mão solerte da discórdia ameaça nossas mais sagradas instituições que, com sacrifício pessoal e familiar, busco preservar e aperfeiçoar. Daqui, do aparente aconchego do trono, onde, para informação de vocês, faço das tripas coração, estou de butuca naqueles que querem chutar o pau da barraca! Comigo não, violão! Aqui não tem esbórnia. Somos pacíficos por obra e graça do divino mas, se me pisam nos calos, rodo a baiana e aí todo mundo vai saber o que luzia perdeu na horta. É só. Em nome da nossa amizade, fica aqui um grande abraço. Fim.
Burocrácio – Fechada a rede.
Volupo – Acho que coloquei as coisas no seus devidos lugares, não? Burô, me chama o Falcão.
Devassa – Amoô...! Será que vamos ter um endurecimento do regime?
Volupo – Arriar a bandeira, nunca!
Devassa – Nossa, me subiu um fogo. (Ao Baleia) Que parar de abanar esta meleca!
Volupo – Devassa, na iminência de chover cobras e lagartos, talvez devesse passar o fim de semana na casa de Noca.
Devassa – Nem vem que não tem!
Volupo – Foi só uma sugestão.
Devassa – Te conheço de outros carnavais.
Volupo – O trem aqui vai feder, tô avisando.
Devassa – Pode tirar seu cavalinho do cerrado.
Volupo – Diz que me ama!
Devassa – Num digo!
Volupo – Diz.
Devassa – (Inaudível)
Volupo – Não ouvi.
Devassa – Fico encabulada!
Volupo – Quem é a minha bilunga?
Devassa – Ah, Volupo, pára, vai!
Volupo – (Xumbregação) Que foi, Baleia?
Baleia – Olha, não é pieguice, não. Mas esse amor me comove.
Devassa – Devias ter pensado nisto antes.
Baleia – Perdoem-me qualquer desassossego.
Volupo – Depois me lembre de te dar uns cascudos.
Devassa – São sejas duro com ele.
Baleia – Para minha remissão... (Apresenta relatório) Saiu indagorinha do forno.
Volupo – Quanto?
Baleia – Nadinha. Não gastei um só dubrix. Claro que usei de certos métodos persuasivos, coisa leve, autorizada pela lei de patentes. Vê esta reta ascendente? Estamos no rumo certo.
Volupo – Quem?
Baleia – Vosso governo.
Volupo – Aprovação?
Baleia – Noventa e oito virgula noventa e sete.
Volupo – E o resto?
Baleia – Que resto?
Volupo – A titica que falta.
Baleia – Favas contadas.
Volupo – É por isto que você continua morando na cidade baixa.
Baleia – Considere a margem de erro!
Volupo – De erro em erro, ferra-se um governo!

Continua... 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Homem que Comeu o Próprio Corpo – Final

Terceiro Espisódio

Homem – Ó avidez! Quanto mais como maior é a fome. Uma fome semelhante ao mar, que recebe todos os rios e no entanto não transborda. Ou qual fogo que consome todo combustível e mesmo assim continua ardendo.

Filha – Perdoe-me, pai. Mas seus bens diminuem rapidamente em face as incessantes exigências do teu apetite.

Homem – Miséria absoluta! Gastei tudo que possuía. Que fazer? Só tu me restou.

Filha – Por que me olhas assim?

Homem – Já não sou mais rico. Preciso de dinheiro... para comer.

Filha – Meu pai, não estás pensando...?

Homem – Um mercador pagaria umas boas moedas para tê-la junto a si.,

Filha – A que ponto chegou esta criatura. Vai vender a própria filha. Triste destino o meu. Merecia pai melhor.

Homem – Os pais cuidam dos filhos para que, chegada a hora, possam eles retribuir o investimento empenhado.

Flora e Fauna – Força Incontida! Ainda encontra tempo para produzir mais infortúnios. Repara na tua cegueira, humano! Admite tua fraqueza e terás insuflada nossa compaixão. Não há retorno. Erisíchton venderá a filha para que sirva de escrava ao primeiro que aparecer. Mas ela, inconformada, fugirá. Já a vemos, ofegante, dirigindo-se para cá.

Filha – Para onde? Meu novo senhor distraiu-se por instantes e consegui escapar. Mas temo que seja por pouco tempo. Ele é esperto e conseguirá me achar se eu não encontrar um esconderijo perfeito. Inexperiência! Por desconhecer a região vim parar nesta praia. Serei vista de qualquer parte. Não há pedras ou dunas que possam ocultar-me. Só este mar imenso e eu sem recursos para aventurar-me até terras mais seguras. Que digo? Não devo agir do mesmo modo paterno, imperfeito. Recorrerei à minha crença. Ó Poseidon Majestoso! Tu que foste protetor dos gregos na luta contra os troianos, vem em meu socorro. Mostra-me um modo de escapar ao meu perseguidor. Compadece desta alma violentada em sua dignidade. Ajuda-me, ó deus, não permitas que minha vida se estrague por completo.

Poseidon – Nada mais é preciso que digas. Injusto seria eu se não desse ouvidos à tua prece. Que Anfritite, a que governa comigo os elementos líquidos, dê nova forma a tua aparência para que não sejais reconhecida por ninguém.

Flora e Fauna – Ah, Compaixão Divina! Os inocentes não podem pagar pelos culpados. Equilibrado é o preceito que dispõe reconhecer igualmente o direito de cada um. Justa é a lei, que sendo única, sabe tratar os desiguais. Por que haveria a infâmia de um recair sobre os ombros dos demais? Mas escondemo-nos, irmã! O mesquinho negociante vem aí.

Mercador – Por Zeus! Já vasculhei cada pedaço deste terreno e nada da rebelde. É por meu investimento que devo continuar a busca. Não sou de levar prejuízo. Mas eis que vejo um moço. É bem possível que ele tenha visto a fujona, já parece estar ali a bastante tempo. Elá, pescador! Desculpe minha aproximação. Bem sei que, por tua atividade, necessitas estar concentrado mas, meu motivo é relevante. Acaso viste uma mocinha com ares desconfiado, passar apressada por aqui? Tinha ela os cabelos despenteados e estava pobremente vestida. Dize-me a verdade e tua sorte será boa, ou então, por Poseidon, nenhum peixe morderá tua isca.

Pescador – Divina Providência! Ele não me reconheceu. Devo agir como se outra pessoa fosse. Perdoa-me estrangeiro mas estava tão ocupado com o meu trabalho que nada vi. Possa eu jamais pescar outro peixe se acredito que esteve aqui, ainda há pouco, alguma mulher ou qualquer pessoa.

Mercador – Não tenho porque desconfiar do teu testemunho. Obrigado, meu rapaz! Devo agora continuar meu caminho admitindo que realmente minha escrava desapareceu e que a perdi para sempre.

Pescador – Potentoso Poseidon, minha eterna gratidão! Devo agora reassumir minha antiga forma e voltar para casa.

Flora e Fauna – Criança, que esperança ainda carregas neste teu coraçãozinho inocente? Amor filial! Por mais terrível que possa ter sido o passado, guardamos dele sempre uma imagem nostálgica, talvez a esperança de recuperar o afeto perdido. Mas já é chegado o fim. Nosso desastroso personagem chega finalmente ao limite da sua pena. Que tudo se consuma antes que ele vire herói por ter sofrido tanto.

Homem – Avassaladora Fome! Destruídos estão meus campos, meu gado e minhas economias. Bebi toda água dos meus reservatórios. Até as ervas daninhas misturei-as às migalhas e produzi sopa infecta para saciar meu apetite. Até as vestes comi e nada. Nada consegue aplacar esta ânsia. Não me resta mais nada senão meu próprio corpo. Calamidade! Fui inoculado alguma espécie de bactéria desconhecida. E por mais que dê tratos à bola não consigo decifrar o enigma. Fiz algo que jamais humano algum tenha praticado? Que importa isto agora quando sinto meu fim próximo. Que dura é esta carne! Devo cortá-la e cozinhá-la. Começarei por esta dispensável mão. É assim que acaba um homem, devorando-se a si mesmo.

Flora e Fauna – E foi assim. A fome obrigou Erisíchton a devorar seus próprios membros, destruindo o corpo para alimentar o mesmo corpo. Enfim, conseguiu libertar-se. Quisera os deuses que todos os humanos, partículas criadas para favorecer o equilíbrio universal, não se arvorassem em senhores. Poderosa Consistência! Vital tem sido tua paciência, preservando em nós a unidade de espírito para que tenhamos condições de escolher sensatamente. Em teu nome, vasta é a matéria e eterna seja a alma. Aceite estas libações para que a concórdia novamente de estabeleça entre todos os elementos da vida. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Quisera todos os humanos consagrem – e os deuses não intervirão – seus pais puros sentimentos na exaltação da Natureza. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Mas nem todos são iguais neste mundo de contrastes. Se um ora, outro blasfema. Se um cria, outro destrói. Não nos enganemos, irmã. Hoje foi um bom dia... Amanhã quem sabe?!


sábado, 15 de janeiro de 2011

O Homem que Comeu o Próprio Corpo – Parte 3

Segundo Espisódio

Oréade – Aqui estou na devastada Cítia. Neste árido e pedregoso campo pretendo encontrar a temível Fome. Eis que a vejo: cabelos hirsutos, olhos fundos, faces pálidas, lábios descarnados, boca coberta de poeira, pele distendida mostrando todos os ossos, arrancando a escassa erva com os dentes e garras. Assustadora visão! Terei de transmitir-lhe as ordens de Ceres à distância. Não me atrevo aproximar. Ó Desditosa! Ficais onde estás e ouça o que tenho a dizer. Apressa-te em ouvir o que a honrada Deméter quer que realizes. Há na abundante Tessália ignaro ser que necessita conhecer o poder da verdadeira justiça. Dirige-te até lá e envolva-o com tuas asas. Mal imenso praticou que teu abraço conduzirá suas entranhas ao mais completo inferno. Que ele jamais possa repetir semelhante agravo.

Fome – Por que me olhas com desprezo? Acaso acreditas que não sou digna?

Oréade – Não se trata de gostar. A criação deve ter tido razões para produzir também a feiúra.

Fome – Compreendo que por tua vontade, o mundo deveria conter apenas beleza?

Oréade – E porque não? Seria muito mais agradável.

Fome – Subjetividade juvenil! Não vês que existe o céu e a terra? O dentro e o fora? O alto e o baixo? Se eu não existisse por que os humanos trabalhariam? Eu sou a razão que move a existência. Sem mim o universo viveria na mais absoluta inação.

Oréade – Chega! Não disponho de tempo para discutir metafísica. Dize imediata se vais levar a termo as determinações.

Fome – Desde a muito vago por esta terra em rotinas absorvida. Desde tempo imemoriais espero uma missão que de fato corresponda à minha vocação. Voarei célere até onde esteja a criatura. Lá, penetrarei sem que a brisa perceba e realizarei o encargo que me solicita aquela que invejo e temo.

Oréade – Embora tenha me detido o menor tempo possível e mantido considerável distância, começo a sentir fome. Assim, depressa, devo regressar.

Flora e Fauna – Fuja, ó Linda! Não te deixes contaminar. Já ficaste por demais exposta a potentes fluídos. Concluíste a tarefa e nós te agradecemos. Enfrentaste com coragem o perigo. Mas agora vai para tua fecunda morada recuperar as forças.

Fome – Avisa tua deusa que presto este favor sem esperar recompensa senão o prazer de me mostrar inteira a quem assim me merece.

Flora e Fauna – Até aqui tudo se encaminha sem imprevisto. Erisíchton dorme. No rosto assassino o sorriso satisfeito. Parece tão inofensivo e puro. Vendo-o assim passa-nos que somos nós as feras. O mal só incita ao mal. E a cada instante novo sacrifício é exigido até que tudo se exaura. Mas pára! Devemos acompanhar a feiosa dar cumprimento à justiça.

Fome – Ah, Repulsiva Presa! Quão rígida é esta asquerosa consciência. Mas, por mais inquebrantável que seja este caráter, não será capaz de resistir à minha voraz ansiedade. Devo cumprir as ordens da cobiçável deusa, mesmo que não o faça por obediência. É preciso que ele saiba que não se despreza os deuses. Mas estanca subjetividade! Não vim aqui para tecer comentários acerca do direito mas dar prosseguimento àquilo que a reta conduta prescreve. Mesmo invadida por repugnante sentimento devo submeter-me a esta causa para que meu ato seja entendido como eficaz. Basta! Ele continua dormindo e em seus sonhos ansia por por alimentos movendo a mandíbula como se estivesse comendo. Agora devo apressar-me. Já executei minha missão. Devo deixar esta terra de fartura e voltar à minha costumeira desolação.

Flora e Fauna – Não há como fugir. A sentença está consumada. Ah, como foi horrível para os olhos assistirem medonho relacionamento. Mas não há desgraça que não seja produzida pela intolerância. Vai, Erisíchton, vai! Vai cumprir o teu destino. Podia ter sido melhor. Mas, fizeste tua escolha.

Homem – Sinto-me dominado por irresistível insaciedade orgânica. Uma cratera parece que se formou nas minhas vísceras. Arde fogo tórrido nos meus intestinos. Dói-me os músculos abdominais. Meus dentes rangem e minha saliva sobeja. Necessito ingerir sustento que provenha meu organismo de potência. Mas, que digo? Sou rico o suficiente para manter minha despensa fortalecida. Filha, depressa. Prepara as melhores iguarias de quaisquer espécie que seja produzida na terra, no ar e no mar. Estou sendo devorado pela fome.

Filha – Aqui tens o que já aprontei para teu desjejum.

Homem – Bendita sejas tu! Parece que adivinhaste minha miserável situação. Mais, preciso de mais.

Filha – Pai! Isto que preparei daria para o dia inteiro.

Homem – Não discuta. Preciso saciar este assombroso apetite. Vai, assa-me uma dúzia de tenras vitelas e todo peixe que encontrares no mercado.

Filha – Estranho hábito. Meu ganancioso pai ultrapassa seus limites.

Flora e Fauna – Longe de nós a perversidade e o sadismo. Mas a decadência apenas começou. E se bem conhecemos este homem, não partirá dele aceno que reverta esta situação. Já antevemos o caos para onde ele se encaminha. Não tem sido por falta de apelos e avisos, mas às vezes, o ser humano nem enxergando é capaz de acreditar. Mas deixemos por ora estas considerações. O tempo já deu muitas voltas. Erisíchton aí vem, por demais transtornado.

Continua...


quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O Homem que Comeu o Próprio Corpo – Parte 2

Primeiro Episódio

Homem – Quão grandiosa é a minha obra. Quão rico me torno, graças ao meu engenho e coragem. Glória à minha sabedoria que me estabeleceu aqui na Tessália, uma das regiões mais privilegiada da Terra. Mas, ó Fortuna! É imperioso cuidar de ampliar o pasto para que o gado se multiplique e eu continue obtendo lucros líquidos e certos. Céledro! Rápido, parasita, obedece ao teu senhor!

Servo – Aqui! Que posso fazer para tornar a vida do meu amo mais farta e confortável?

Homem – Dissimulado! Tua língua proclama fidelidade mas teu coração é traiçoeiro qual um verme das pedras.

Servo – Fantasias, meu senhor! Que pode inútil rato contra a grandeza da águia?

Homem – Bajulador! Cala e escuta: os pastos já não são suficientes para o rebanho. Preciso de mais espaço.

Servo – Nauseante Avareza! Patrão, avançamos o pasto cerca de dez mil pés explusando os Góridas para o lado leste não faz dois dias.

Homem – Isto é passado!

Servo – Mas não há mais para onde crescer. Adiante encontra-se o mar.

Homem – E aquele imenso bosque do lado sul?

Servo – Por Zeus, meu senhor! Naquele bosque há o vetusto carvalho consagrado à Ceres.

Homem – Frivolidade! Lá não reside à deusa. Vive ela no palácio olímpico regalando-se com ambrósia e néctar servidos por Hebe.

Servo – Sórdida Avidez! Não posso contrariar o amo mas, o bosque e o carvalho são protegidos pela ninga Dríade e eu não gostaria de ser perseguido pelos seguidores de Pã.

Homem – Superstição!

Servo – Tremo só de pensar no que esteja planejando.

Homem – Dou-te uma ordem, vai! Corta o carvalho ou cortarei tua cabeça.

Servo – Que situação! Na encruzilhada em que ele me coloca devo decidir por minha ou a fé.

Homem – Pouco me importa se aquela árvore é ou não amada pela deusa. Fosse ela própria uma deusa eu a abateria mesmo assim, porque se interpõe no meu caminho. Ousas desobedecer-me?

Servo – Não devo...

Homem – Covarde! Depois me entendo contigo. Vou eu mesmo cuidar de arrancá-la.

Servo – Ó Inconsequencia Humana! Um humano não pode ser tão estúpido!

Homem – Tens tua última chance.

Servo – Não, profanador! Não ouses continuar com esta insensatez!

Homem – Desafia-me? Toma a recompensa por tua piedade. Aquele que não pensa não merece ficar com a cabeça sobre os ombros. E quanto a tu, árvore, aprendi que só a razão move o progresso e muda a face do mundo.

Ninfa – Eu, Dríade, moro nesta árvore amada pelos deuses e, morrendo por tuas mãos, predigo que enorme castigo te aguarda.

Homem – Não acredito em fadas. Minha religião é o meu bem estar. De ti farei belos móveis, a lareira da minha casa terá lenha para muitas noites e o meu gado mais pastos para alimentar-se. Ó Ditosa Força! Divina é a potência humana.

Flora e Fauna – Ó Mágoa! A dor destroça a alma. Sombrio é o futuro. Acaba de ser morta nossa irmãzinha por sentença tirânica. Botemos luto, e recorramos àqueles que podem corrigir o curso de presente tão funesto. Ó Ceres! Ultrajado está o orgulho da floresta. Pedimos, pelas lágrimas que mancham nossas faces, que o culpado seja punido. Magnífica Deusa, que quando curvas a cabeça todas as espigas maduras para a colheita se inclinam, nós te convocamos! Vinde a nós e proclames o exemplo.

Ceres – Acendo ao vosso pedido, Ninfas Protetoras de tudo quando mais aprecio e estimo. Porém, devo alertar para a consequencia desta convocação pois, aos deuses, não se apela em vão.

Flora e Fauna – Ah, Madrinha! O que temos a dizer todos na Terra, em tristes ais, lamentam pesasoros. A grande árvore, o frondoso carvalho, útero e morada da exuberante Dríade, foi ceifado por golpes maledicentes de insidiosa criatura. Nossa irmãzinha jaz fria e estéril sobre o solo que sustenta o agressor. Queremos justiça para tal ignomínia. Que ele tenha sobre si todo ódio capaz de conduzir à loucura!

Ceres – Palavras de Parcas! Parai. Acaso vos ensinei desejam tamanho mal?

Flora e Fauna – Perdõe-nos, ó Divina! Mas assistimos tudo. Olhai! Estendei vossa vista para aquele corpo macio prostrado sobre o chão consagrado à vossa glória. Erisíchton, este é o nome, homem de monstruosa vontade, apesar dos apelos de quem bem conheceu o sofrimento e a humilhação, inexoralvelmente arrancou, com garras de górgona, o símbolo maior do teu poder sobre a Terra.

Ceres – Dríade abatida?! Indigno é quem provoca ato tão demente! Ó que ainda me encontro buscando consolo por desgraça passada e verifico que a alma humana, apesar de todos os benefícios que possamos, nós os deuses, ofertar, ainda é capaz de atos tão abjetos.

Flora e Fauna – Quem fez isto é inferior ao mais vil inseto!

Ceres – Se é assim como dizes, um verme foi quem provocou tal baixeza, basta que o pé heróico de Héracles pouse sobre a sua cabeça para que tudo se resolva.

Flora e Fauna – Não! É preciso mais. O Insígne Guerreiro o destruíria mas a latente vocação permaneceria como vírus contaminando até os mais puros de coração.

Ceres – Por encontrar-me desvalida, apenas uma vez castiguei os humanos. E descobri que eles não resistem a uma pena imortal.

Flora e Fauna – Não amacies teu coração, Ó Poderosa! Anuncie severa decisão para que tão logo possamos reconquistar a sanidade perdida.

Ceres – Que seja! Embora o faça com o coração consternado. Que venha Oréade, a ninfa das montanhas e grutas. Ela conduzirá o juízo inconteste da minha deliberação.

Flora e Fauna – Campos e vales, campinas e cerrados! Ouçam nosso chamado: envie até nós, da montanha querida, no dorso do vento, a casta Oréade. Que ela atenda e realize o que a nossa Deusa quer que se efetive.

Oréade – Não podia deixar de atender tão lancinante chamado. Amada Ceres! Que pretendes que eu faça? Ordene e estarei pronta para prestar a minha vassalagem.

Ceres – Amável Criança! Nobres são tuas palavras, mas não busco lisonjas. Nosso desejo é que se cumpra a virtude conforme atávico direito. Preciso que executes, sem parcialidades, a tarefa que te vou incumbir. Há na parte da longínqua e gelada Cítia, uma região estéril e triste, sem árvores e sem campos cultivados. Ali moram o Frio, o Medo, o Terror e a Fome. Vá àquela região e dize à última que tome posse das entranhas de Erisíchton. Que a abundância não a vença, nem o poder dos meus dons a afaste. E tu, destemida, não te assustes com o distância. Toma do meu carro, os dragões são obedientes. Levar-te-ão, através dos ares, em pouco tempo.

Oréade – Partirei imediatamente e atingirei o objetivo a que me destinas. Chegarei imaculada, ao Monte Cáucaso e levarei a efeito tua solicitação.

Ceres – Entenda-me, ó cândida! Chamei-te por não poder eu mesma aproximar-me da Fome. As vigilantes Parcas previram que nós duas jamais devamos nos encontrar.

Oréade – Assim está dito. De minha parte, estou disposta a fazer o que, na tua gloriosa ventura, não sois permitida executar.

Ceres – Muito te agradeço, preciosa! Agora, vai: faça a roda do destino cumprir mais esta etapa.

Oréade – Beijo-te as mãos, Zelosa Mãe! E num átimo de segundo estarei diante daquela que vai prosseguir o curso deste processo.

Flora e Fauna – Ó Sinceridade Afetuosa! Amamos quem amamos e fazemos o que acreditamos justo. Assim, o direito conduz, imparcialmente, cada ser à devida competência. Mas não se pode esperar mais. Levemos nossa irmã ao leito pleno. As festas fúnebres lhe daremos. Pois se alma evapora é preciso que lhe demos os meios para conquistar a permanência. Ó irmã! Não sei se grito ou suspiro. Espero apenas que a justiça triunfe.

Continua... 


domingo, 9 de janeiro de 2011

O Homem que Comeu o Próprio Corpo - Parte 1

Introdução

Toda e qualquer civilização é construída a partir de mitos fundadores. Todo povo tem o seu, que se desdobra em diversas narrativas que buscam dar sentido à existência. O mito é uma tentativa de explicação poética da vida, do mundo, da origem do ser humano e da sua missão e responsabilidade individual e coletiva, do ponto de vista moral, espiritual, psicológico, pedagógico e sociológico.

Particularmente aprecio os mitos gregos. Dentre estes, um especialmente, me chama a atenção por sua imediata relação com o nosso tempo. Trata-se da história de Erisíchton, um homem muito poderoso, proprietário de uma vasta extensão de terras. Na ânsia de ampliar seus negócios e obter mais lucros cortou um imenso carvalho dedicado à deusa. Como para cada ação advém uma reação, ela o castigou com uma insaciável fome, levando-o a gastar toda a sua fortuna na vã tentativa de saciar seu apetite voraz e, quando não possuía mais nada, passou a comer o próprio corpo. Este mito provavelmente nasceu quando os humanos passaram a cultivar os campos, quando deixaram de apenas usufruir da fartura natural para começar a produzir o seu próprio alimento. Quando passaram a ganhar o sustento com o suor do rosto, plantando para alimentar-se.

Na cultura judaica e posteriormente na cristã, isto foi encarado como uma condenação. Por ter comido da Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal, o ser humano pecou e por isto foi expulso do Paraíso, tendo que trabalhar para viver. Daí, talvez, o trabalho ser tão pobremente recompensado entre nós – não há porque premiar o cumprimento de uma pena. Na mitologia grega, ao contrário, aquele ato de passagem foi uma dádiva. Contemplado pelos deuses com o conhecimento do trabalho de arar e semear o reluzente trigo, pode o ser humano, pela primeira vez, vir a fabricar alimento – o pão! A humanidade ganhara autonomia e poderia viver feliz para sempre não fosse o “manual de instruções” alertar para uma grave consequência: de posse do poder de interferir na Natureza, deveria, o ser humano, atuar com moderação e controle, sem egoísmos, sabiamente, para que não viesse a transformar a existência num irreparável flagelo.

Têm absoluta razão os que afirmam: modernos, foram os helenos! Em termos éticos pensaram em tudo. Por isso eram trágicos. Daí seu pensamento, penso, dever voltar a fazer parte deste nosso sofrível e desmemoriado cotidiano para que possamos, talvez, recuperar a sanidade perdida.

Intento, a partir de hoje, postar, em partes, na forma de diálogo, algo que escrevi a cerca de quinze anos atrás. Apesar de ser um libelo ingênuo e reducionista serve bem aos propósitos que nortearam sua composição: contar uma boa história, fazer uso de uma linguagem inusual, estabelecer ligação com o passado e servir à reflexão sobre o futuro que desejamos para a humanidade. Pode ter saído algo maniqueísta mas, não existe meio termo entre viver e sobreviver. Pode até existir perdão, justificativa ou desculpa para os atos que perpetramos contra a natureza mas certamente eles não invalidam as consequências. Faz-se urgente uma mudança de paradigmas. Que cada um os encontrem no recesso de suas próprias individualidades e no laborioso encontro no campo das experiências honestamente colocadas. Que os melhores sobrevivam!

Vamos à dramatização desta tragédia que atinge todas as idades.

Prólogo

Arauto – Não se assustem com o terrível enredo desta história. Ele apenas demonstra aquilo que a ambição desatinada pode gerar de infortúnios para toda a humanidade. Por se tratar de uma ação horrenda, o autor achou por bem iniciar com uma pequena celebração de louvor à Natureza, aqui representada por Ceres, deusa da agricultura, na esperança de que sejam semeadas graças sobre o desenrolar da cena e não caia sobre nossas cabeças a desgraça que irá se abater sobre o protagonista. Fiquem em paz e concentre-se.

Ofertório

Pai – Ó amada Deusa! Aqui estamos no bosque consagrado à tua glória para louvarmos a Bem Aventurança.

Mãe – Venerável foste tu, Grande Ceres, assistindo meu filho ainda pequeno. Com teus poderes magníficos conseguiste debelar o mal que lhe destruía a vida. Hoje, mais uma vez, entrego a ele, em respeito ao teu gesto inovador, este ramo de trigo para que fique gravado na lembrança das gerações teu feito maravilhoso.

Pai – Ó Dríade! Ninfa protetora dos bosques. Permitas que, em mais este ano de vigor e abundância, eu entalhe no tronco da tua árvore a marca da nossa agradecida presença.

Filho – Venerável Ceres, que a terra tornas fértil e os grãos nutritivos, exaltamos o dia em que nos presenteaste com a sabedoria do trabalho de arar e semear o reluzente trigo.

Mãe – Venturosa lembrança! Avivemos nossos pensamentos para que possamos recordar aquele dia em que, sentada ao pé desta árvore ancestral, a nossa benévola senhora chorava a perda da única filha, a bela, jovem e inocente Core.

Flora e Fauna – Afortunado dia! Colhiam eles amoras silvestres e gravetos para alimentar o fogo domésticos quando a surpreenderam desvalida e a convidaram para passar a noite na humilde casa em que habitavam. Arbitrário foi o destino que a trouxe a esta terra chamada Elêusis. Ardiloso foi Eros que, a mando de sua mãe Afrodite, acertou com a mais aguda e fiel seta o coração do monarca absoluto dos mortos, o potentoso Hades, fazendo-o apaixonar-se e raptar a donzela, encerrando-a para sempre no escuro Tártaro. Mas ela, diligente mãe, percorreu o mundo à procura da adorada filha. Antes, irada, lançou a culpa sobre a terra, provocando a mais severa desolação, por ainda desconhecer a causa daquele infortúnio. Vendo-a naquele estado muito insistiram até que ela consentiu em partilhar da cabana.

Filho – Lá eu jazia enfermo e ela, graciosa deusa, me beijou os lábios e me deu de beber caldo de aromáticas papoulas murmurando três vezes na minha boca palavras de encantamento. Deste modo minha saúde foi restituída por completo.

Mãe – Enquanto vida as Parcas me permitirem, pedirei perdão pela desconfiança que lancei sobre aquele augusta cabeça, frustando sua tentativa de deitar meu único filho às cinzas, pois não sabia que desejava apenas torná-lo imortal. Com infinita bondade nos disse que, apesar disto, ele cresceria grande e forte. E eis, Querida Ceres, a verdade da tua excelsa vontade.

Flora e Fauna – Não fosse Aretusa, a ninfa transformada em fonte, contar-lhe toda verdade e Zeus, pai dos deuses e dos homens, sábio e altivo nas suas decisões, ela ainda teria o peito inundado em lágrimas. A seu pedido, o Olímpico Jove enviou Hermes, o de pés ligeiros, e a diáfana primavera ao mundo subterrâneo pedirem a liberação de Core, caso ela ainda não houvesse comido dalgum fruto do mundo dos mortos. Porém, Moira, o destino implacável, achou por bem não permitir que ela fosse atendida integralmente. Tendo comido de uma romã ofertada pelo enamorado Pluto, Core ficou impedida de regressar ao seio materno. A desesperada mãe recorreu mais uma vez a Zeus que, sempre justo nos seus veredictos, consentiu que Core passasse a metade do ano com a mãe e a outra metade com o marido.

Filho – Ó Mãe Ancestral! Soubeste aceitar o acordo e esquecer a ira. Devolveste à terra teus férteis favores. E para completar a obra, voltaste para nos ofertar a divina graça. Resignada com o desfecho da aventura, tu me levaste num carro puxado por dragões alados a todos os países entregando à humanidade cereais valiosos e o conhecimento da agricultura.

Família – Ó Dríade! Tu que nasceste e moras neste magestoso carvalho, que de tão grande dá sozinho a impressão de ser uma floresta inteira, nós te homenageamos por protegeres o símbolo das nossas mais belas histórias.

Flora e Fauna – Doce Devoção! Nós nos alegramos e aceitamos estas singelas oferendas, prática comovente de amor à nossa Terra. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Quisera os homens consagrem – e os deuses não intervirão – seus mais puros sentimentos em singela exaltação. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Mas nem todos são iguais neste mundo de contrastes. Se um ora outro blasfema, se um cria outro destrói. Não nos enganemos, irmã! Hoje foi um bom dia, amanhã quem sabe?!

Continua...