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sábado, 30 de setembro de 2023

ah, o amor

 

Amor e Psiquê, Henryk Siemiradzki, 1894



ah, o amor

cantado, sonhado, adorado

por nós, comuns


(amor é redenção

cremos em sua religião)


foi uma vez, poeta

que o amor me conheceu

viciado ardeu e se queimou

gastou consumido

seus sentimentos

na busca da porção, última dose

e sumiu na chama breve

da sombra fria

que lhe aquece o mistério

de não aceitar objeção


ai amor,

choro pelos tolos

que passam os seus dias

a fazer amor, jamais amando


 

sábado, 23 de abril de 2022

hábito de mistério

 

Vertical-Horizontal I, Hedda Sterne, 1963




olho o horizonte…

apenas infinito e nada:

ambos sou eu

alheio


não fosse o oponente

tolher a passagem,

jamais perguntaria

pra onde vou ou o que sou…


tem muito o que explicar

esse vazio

cada vez que dói


uma, duas, “n” vezes

voltarei

a encarar o horizonte

preciso conhecer

tudo que desconheço


 

sábado, 4 de julho de 2015

Monstros e Miséria


The Monster
Odilon Redon (1840-1916)


A um menino bonito ofereço o trono do mundo.
Dalton Trevisan
 Boa Noite, Senhor



Vivia de sono perdido. Desde tempos.

Angústia viscosa. Acostumado atravessar longas noites de lá pra cá, de cá pra lá…

Vez por outra, tomado de assalto no meio de uma cochilo, escorria ao encontro de buraco negro.

Desassossego pensar em dormir. Nossos monstros são nossa miséria. 

Uma noite, tarde da noite, decidiu correr em busca das lembranças e antes que uma luz brotasse, realizara o penoso trabalho de separar fantasias de fatos. Descobriu o elemento, o motivo. Tinha em mãos o fio da meada.

O homem quer vingança. O menino deseja sangue, muito sangue. Baba de lesma em dente de ouro. A alma vaga ganha corpo.

Havia de ser rápido. Não haveria apelação no seu tribunal sumário. Para complicar o enredo, também ele em julgamento. Seu único medo: Matando-o, mataria também a si mesmo? Correria o risco.

Eu era fraco da cabeça, invejoso. Acabei preso, arrombado dia e noite na cadeia, virei mulherzinha de gangue, comi merda, bebi catarro, caguei sangue, vomitei toda bondade e nada nem ninguém me salvou. Mas te deixei escapar e agora, por onde passo, sinto os olhos dos santos e dos anjos cravados em mim. Como é possível, santos e anjos são incapazes de ódio e no entanto, seus olhos me ferem. (…) Causei-te mal? Fui até decente contigo. Grandinho, podia ter gritado, corrido… Mas não… Posso dizer que foi consensual? (…) Morto, que mais direi? Queres o que? Profanar meu túmulo, moer meus ossos, misturá-los à urina sarnenta de um cão? Adiantaria? Escapaste, esta é a verdade. Pense na possibilidade de tê-lo amado… O que me inocentaria? Naturalizar-me? (…) Diante da sanha dos tormentos, naqueles porões famintos, não tive como provar nem uma coisa nem outra. Agora, tens a chance de nos redimir.

Cinco tiros. Um corpo. E o paralisado menino com medo de partir.

Das sombras, emergem mulher e menina.

Nossa vez, diz ela.

Jamais dormira.  




sábado, 25 de outubro de 2014

O Homem de Olhos Vermelhos


The Plague, Arnold Böcklin, 1898


Yu é um velho assustado. Caminha arrastando seus enormes testículos. Horrivelmente magro, sem nenhum fio de cabelo no corpo, queixa-se do eterno cansaço. O velho Yu é um laibon: quem deveria construir pontes entre o céu e a terra. Mas Yu vive separado da sua aldeia. E bem longe da caverna onde um dia entrou para recolher guano e usar como fertilizante na sua lavoura.

Engai tudo dá, mas ele não gosta quando a gente pega coisa sem permissão. Neterkob foi criado pra isso. Pra ajudar na ponte. Mas Yu não tem forças e agora tem que carregar seu corpo feio por aí”.

Na fronteira entre o Quênia e a Tanzânia, chovem histórias sobre homens que expelem sangue por todos os orifícios do corpo até a morte. Histórias que Yu desdenhou. Ali todos sabem que nas entranhas da montanha Kitum moram milhares de espíritos ruins que gostam de roubar a seiva e a alma humana. Yu pode ter escapado da terrível morte mas paga um alto preço por ter tocado naquela merda sagrada.

“O pequeno virá destruir o grande”.

Nas profundezas do tempo, algo aconteceu. Algo invisível despertou no fundo da caverna fria, escura e úmida. Algo foi morar nos intestinos dos resistentes morcegos. Um minúsculo filamento capaz de codificar sete proteínas, dotado de mecanismo que engana o sistema imunológico dos organismos que infecta, nasceu. Mas não nasceu do nada. Desde muito estava dito que algo viria combater o mal que viceja na superfície do planeta.

“Seriam os estrangeiros? Será por isso que Engai e Olapa detestam estranhos. Pois é, os forasteiros chegaram com suas máquinas. Máquinas famintas. Máquinas que arrastaram árvores que arrastaram terra que arrastaram bichos... Máquinas que fazem feridas no corpo da terra... Máquinas que despertam demônios... "

O homem de olhos vermelhos caminha entre o vivo e morto. O homem de olhos vermelhos não chega a ser um homem. É uma coisa. Um passado tenebroso. Yu nunca o viu, mas sabe que está próximo. Chegará a qualquer momento. Yu não tem medo mas pensa que se pudesse voltar…

“Agora compreendo a raiva de Engai. O espírito ruim veio roubar a beleza dos masai”. 

Diante da fogueira, Yu busca iniciar uma conversa com a sombra da sombra de Neterkob. Mas percebe que é tarde. Neterkob não o ouve mais. Neterkob partiu. Todos partiram. Até as vacas. Só sobrou Yu e o homem dos olhos vermelhos. E o encontro será inevitável. A Yu resta aguardar o acerto das contas finais.


sábado, 11 de outubro de 2014

Os Cães Não Revelam Seus Sonhos


The Moon Dog
Rufino Tamayo
1973

Faziam por diversão, era engraçado. O dia perfeito era sexta, mas podia acontecer em qualquer dia da semana desde que dois deles estivessem sem nada pra fazer. Isso a partir de quando, meninos ainda, moradores na mesma rua, decidiram fazer a primeira experiência com um gato malhado que perambulava nas redondezas. Acostumado a filar livremente a boia ora aqui ora acolá, foi fácil armarem uma arapuca no caminho do felino. O bichano, diga-se, por conta da velhice ou por não ser lá muito esperto ou talvez pela ausência do olho esquerdo, caiu feito um patinho no surrado golpe de um nem tão apetitoso petisco. Porém uma vencida sardinha, encontrada esquecida numa lata no fundo da geladeira da casa daquele que mais tarde se revelou o cérebro por trás das muitas e cruéis traquinagens, é sempre uma sardinha. O pobre miau sobreviveu ao ensaio, mas pelo tempo que lhe restou de miserável não mais vagabundeou, nunca mais olhou de frente para qualquer ser humano, preferindo se confundir com as margens plácidas dos riachos poluídos que cortam a cidade a lamber suas numerosas, profundas e pútridas feridas.
Mas eis que o grupo cansou dessas pequenas travessuras e resolveu encarar coisas mais sérias. Abandonaram os pequenos animais. Começaram a encarar os de grande porte. E daí para o bicho homem foi um pulo. E não direi que a passagem foi tranquila, como sói acontecer com projetos de grande envergadura. Não, o novo objetivo exigiu deles um extenso e exaustivo aprimoramento técnico. Por conta principalmente da logística necessária que os permitisse perseverar naquele esporte. Sempre buscando os mais fragilizados, conseguiram realizar caçadas das quais se orgulhavam e costumavam ilustrar suas conferências nas constantes horas felizes. Prostitutas, homossexuais, velhos, índios, negros, aleijados, mendigos, sem-teto… Consistiam suas presas favoritas. Pela quantidade e disponibilidade. Podiam ser encontrados em qualquer lugar e a qualquer hora e o mais importante: ninguém jamais reclamaria a falta.
As onze e dez, o telefone tocou. Combinaram o encontro para dali a meia hora, na Praça da Matriz. Seria uma daquelas noites em que o time estaria completo. Naquela noite, a orquestra faria soar o instrumento favorito de cada. Ocasião de demonstrar perícia e sabedoria nas respectivas especialidades aprimoradas ao longo de mais de duas décadas de prática e estudo. Gozaram antecipadamente ao constatarem que aquela seria uma noite diferente, talvez uma noite memorável. Haviam finalmente acertado que era hora de deixarem uma marca, de anunciar o partido ao mundo. Era chegada à hora da grande revelação, o dia do requinte, onde todo o know-how acumulado seria aplicado num único escolhido: aquela figura com o cabelo tingido de fogo, envolto em tanta sujeira que era impossível lhe discernir as feições, logo ali à sombra de uma marquise, a acariciar seu ensebado cão. Estavam de olho nele fazia dias. Tinham catalogado hábitos, trajetos e companhias. Finalmente o encontraram só. Bastava apenas que a armadilha funcionasse. E funcionou perfeitamente. O homem – era um homem? - caiu na cantada: uma noite de sexo, drogas e rock n’rool. Mas o cão não. Rosnou desconfiado enquanto o amigo disse quieto e ele obedeceu e ficou a olhar o estranho sexteto, entre risadas e galhofas, sumir no fim da rua escura. Esperou sentado nas patas traseiras. Aguardou sem mover um músculo. E o assobio veio. Longo e agudo, depois trinado. Esgueirando-se, colado à penumbra, no sobe e desce das ruas tortuosas, o cão seguiu seu faro até um descampado, lá no fim dos trilhos da linha de ferro. Escondido entre as montanhas de sucata e lixo industrial, em meio as dezenas de armazéns fantasmas, assistiu os últimos e dilacerantes instantes do companheiro. Se fosse humano, teria vomitado, mas como era cão lhe ocorreu uivar, porém conteve-se para não atrair para si a ira daquele inesquecível quinteto com suas horripilantes manobras para extrair do homem sons e expressões inimagináveis. Após o festim, acompanhou-os na despedida da noite e gravou de cada um o local exato de morada.
Quase manhã quando o cão conseguiu a atenção de praticamente toda a população de sarnentos da cidade, reunidos através de uma vasta rede de comunicação que chegou a incluir alguns ratos, pombos e milhares de baratas. Lá no ermo onde o camarada tinha sido dopado, torturado, esfolado, empalado, esquartejado, triturado e transformado em pó, diante de uma sôfrega plateia, o cão latiu sua indignação e revolta. E todos farejaram o ar em busca dos ignóbeis vestígios. E quem podia uivar, uivou em uníssono uma raiva e angústia que fez a lua estremecer de pavor. Dali, por cinco fartas madrugadas, e daí em diante, o cão e seus incontáveis e variados parceiros, não precisaram mais remexer o lixo em busca de alimento, afinal agora sabiam onde encontrar comida, a suculenta carne com a qual podiam encher suas panças como nunca sonharam em suas vidas.


sábado, 4 de outubro de 2014

A Primeira Refeição do Dia



Untitled 246, 
Zdistav Beksmski (1956-2005)


Agarrou-o pelos cabelos e puxou. O corpo esquelético caiu de bunda no chão. Escorado na terceira vértebra lombar pelo bico do coturno ficou sem saber se gritava pelo puxão, pela queda, pelo chute ou pela humilhação. Na dúvida, deixou que a dor rugisse e não mais se debateu. Não que estivesse rendido. Não estava. Decidira a muito que viveria mesmo que por teimosia, de pura pirraça e não seria agora que daria o gosto de vê-lo fraquejar. Não senhor, aguentaria. Mais uma vez aguentaria. “É a vida”, pensou, “cada um na sua”. E a dele nunca foi diferente. Sempre lascado. E lascado por lascado, lascado inteiro. Só faltava uma coisa: um berro. Não um berro qualquer, mas um berro de responsa, importado, daqueles cujas balas, em vez de abrir um buraco, explodem em mil pedaços a cabeça do sujeito. Ao menos assim teria uma chance. Porque é foda não ter uma chance.
– Entra aí, vamos dar um passeio.
Por pouco, por tão pouco… Uma questão de passos… Se tivesse alcançado o outro lado da rua… Se aquela moto não tivesse entrado na história… Se, se, se…
– É, vamos levar a criança pro parque de diversão.
A merda dessas situações é que você sabe o que te aguarda e mesmo assim, paga pra ver. Afinal tudo é possível. Nada se parece com o fim. O fim é sempre desconhecido. E por isso tudo pode acontecer: os caras podem mudar de ideia; o carro pode capotar; um avião, um raio… Um meteoro pode cair. Que tal uma nave espacial descer e abduzir todo mundo? Ou um super-herói que, pra cumprir a missão do dia, o salve no último minuto? Até Deus pode intervir. Taí, por que Deus não intervém? “Te desafio: faça este carro derrapar e cair num precipício. Mate estes dois filhos da puta e me deixe viver. Mas antes me responda uma coisa: quem foi o desgraçado que deu autoridade pra estes putos fazerem o que fazem com neguinho que nem eu? Estas bostas não merecem a comida que engolem e cagam: roubam, matam, estupram e de noite vão ao culto com mulher e os filhos. Miseráveis espalhadores de inferno. Todos teus servos, senhor. Armados e loucos. Tudo não é feito em teu nome? Sabes disto melhor que eu, que não inventei o mal deste mundo. Que sou apenas o efeito. Da nossa semelhança. Mas não vou te culpar por nada do que me acontece. Sou homem, tenho responsabilidade. E digo: só por sadismo justifico todas as porradas que levei e que ainda levarei nesta latrina que é minha vida. Só pelo prazer da dor justifico não ter me tornado humano, igual aos que vejo no cinema, na televisão, nas revistas, todos sorridentes, cheios de saúde, de alegria, de futuro… Só por um ódio profundo de mim, me nego o futuro. Mas, não: quero acreditar que na próxima curva o pneu desta viatura vai estourar e aí o careca perderá o controle e o carro rolará ribanceira abaixo se espatifando lá no fundo do buraco envolto num mar de chamas. Vamos, Deus, faça o teu abracadabra. Do resto cuido eu”.
– Você acredita em vampiro?
“Que porra é essa? Tiro, facada, fogo, veneno, os cambaus… Tudo bem, a gente sabe donde vem, o que é e pronto, mas isso, que papo é esse? Se quer me assustar, parabéns, conseguiu. Porque de todas as porras que enfiam na cabeça da gente esta faz tremer as bases. Esse negócio de vampiro cheira a sexo. O que este cara está insinuando? Puta merda, é melhor morrer. Ah, se uma bomba atômica caísse sobre nossas cabeças agora. Pra não sobrar nem pensamento. Tudo, tudo menos isto”.
– Falei com você, merdinha: acredita ou não? O veículo para. – Vem cá, vou te mostrar uma coisa.
– Desce, grita o segundo.
“Pra que se dá ao trabalho de dizer desce se me arrasta pra fora e me joga contra um muro numa quebrada escrota no fim do fim do mundo”?
– Encosta aí. E o golpe do cassetete rasga o canto esquerdo da sua boca seca. Um filete de sangue ralo escorre. Os olhos do polícia que lhe oprime o peito ficam de repente injetados, rubros. Com sede, os dois homens da lei, salivam diante da primeira refeição do dia.


sábado, 13 de setembro de 2014

Afeição Mortal


Grandmother and Granddaughter
Lovis Corinth, 1919



Definhava a olhos vistos a menina. Novinha e tão fraquinha, gente. Sem ânimo, sem cor, sem vida. Pálida e frágil feito folha de papel-arroz. Pelos cantos, desenxavida, voz sumida, aérea.

Foi uma gravidez normal. A mãe com saúde, corada, roliça, apetite e disposição de estivador… Aliás a família inteira gabava-se de nunca precisar de médico ou remédio. A bisa se fora aos cento e vinte e cinco ainda enfiando linha no fundo de agulha, bebendo uma garrafa de vinho e tirando o gosto com fatias generosas de mortadela com limão todos os dias. Aos domingos era comum, ora na casa de um, ora na casa de outro, mesas ecléticas, fartas e francas: feijoada, macarronada, rabada, moqueca, churrasco… Tudo regado a litros e litros de cerveja, vinho e amistosas jarras de caipirinhas.

No entanto, o que havia? No começo, achava-se que era dengo, excesso de mimo. Nos braços de uns e de outros, sempre coberta de carinhos, agrados e esperanças. Primeira filha em família grande sabe como é. Aquele monte de tios e tias, primos… A parentada toda de olho na posteridade: vai ser isso, vai ser aquilo. Mas depois, como explicar aqueles cambitos no lugar de pernas, aquela cabeça diminuta, aquelas órbitas fundas e cinzas no alto da cara, aquele cabelo escorrido e ralo, aquele nariz adunco, aquelas unhas de górgona…?

Corre praqui, corre prali, exames, receitas, tratamentos, nada, nada dava resultado. Nenhuma esperança, nenhuma melhora. Apenas gramas e mais gramas de peso, a cada dia, perdidas. Desse jeito vai sumir, era o comentário favorito desde então. Comer comia mas, não adiantava. Estava, como dizia os mais velhos, só pele e osso. O que acontecia? Que doença era aquela? Pensaram em recorrer às religiões mas desistiram. O pai desistiu. E fez promessa de buscar uma explicação, um diagnóstico, uma cura. Por que sua menina, aquele pedacinho de gente que toda noite dormia em seus braços, sofria? Pobrezinha, que destino. Pode morrer a qualquer hora. Jamais conheceria as delícias da vida, do amor, da amizade…

Mas o mundo dá voltas. Um dia a verdade apareceria, clara, cristalina, radiante como sol de verão. E o pai obstinado virou, mexeu, consultou deus e todo mundo. Abraçado aquela maçaroca de papeis e chapas, resultados de exames, mil bulas, era de praxe vê-lo nos corredores das faculdades de medicina, clínicas e hospitais de ponta, a questionar diagnósticos, procedimentos, sugerir pesquisas, envolver-se em campanhas e voltar para casa arrastando o mesmo desânimo, o mesmo descrédito, a mesma impotência. 

Uma noite dessas, ao chegar em casa lá pelas tantas, exausto, seguiu até o gabinete – o quartinho das tranqueiras, como dizia a mulher. Arriou-se na velha poltrona e quase adormeceu não fosse um sobressalto. Pareceu-lhe ouvir a voz da filha. Impressão. Mecânico, ligou o computador e acessou a câmera colocada no quarto da pequena. Há quanto tempo não olhava aquilo? Instalada logo após o nascimento, a câmera ajudava a monitorar o sono da criança. Mas quem se lembrava disso? Há quanto tempo não via as gravações. Ficou curioso e resolveu assistir a última. Despreocupado, deixou correr. Que veria? Nada a não ser o corpo da filha num sono inquieto, um sono agitado, prum lado, pro outro, seu rosto esquálido em esgares silenciosos. Baixou a cabeça e pareceu buscar forças. Foi quando ouviu novamente o gemido. Um gemido ou um grito? Definidamente, um pedido de socorro. Ergueu a cabeça e o que viu disparou seu coração. Quis gritar mas era tarde. Enquanto todos dormiam um sono profundo, acabara de sofrer um infarto fulminante, diria a atestado de óbito. No monitor, quem visse, não acreditaria na imagem, lutaria contra todos os pensamentos sensatos, não encontraria uma explicação plausível, estaria diante do inacreditável e, entre palpitações e engasgos, nos diria que vira o espectro da enérgica avó (que decidira morar com eles e insistia em dormir no quarto da neta) a esvoaçar transparente, deformado, gelatinoso e embevecido a lamber e lamber o doce e inocente corpinho. 


sábado, 30 de agosto de 2014

A Mudança



Theme & Variations Plate #96
Piero Fornasetti



Para você, Mauri.
Porque a vida é que nem um rio: 
espremido entre as margens segue, 
sinuoso, em direção ao mar.



Como explicar? Foi assim, de repente. Quando a gente não conhece alguma coisa não é possível imaginá-la. Só pensamos o que conhecemos. Por isso nos assusta a surpresa. E leva um tempo até que familiaridade se instale, que aceitemos o fato consumado. Só aí é possível pensar no depois, no adiante.

No inicio, uma dor de cabeça. Que começou a incomodar daí uns três dias. A ida ao médico resultou num pedido de alguns exames, uma receita e um retorno para dali a um mês. Um mês. É um bom prazo. Pra que tudo volte ao normal ou a gente perceba que o buraco é mais embaixo e a coisa começa a ficar feia.

Batata. Exatos 30 dias depois, com chapas, exames e uma enxaqueca de matar o guarda, dei entrada ao hospital mais próximo com um quadro agravado agora com calafrios e medo, muito medo. Um medo inexplicável. Um medo de tudo. Um medo até de mim mesmo. O médico que me atendeu pediu calma, disse que consultaria um especialista e voltaria no final da tarde.

Do leito em que me encontrava, dava pra ver o corredor. E o que vi me assustou mais ainda. Macas e mais macas atravessavam o meu campo de visão como um carrossel. Aquilo que enjoou e gritei pela enfermeira. Nada. Só um corre-corre generalizado, uns gritos, umas suplicas, ordens, pedidos, telefones… E a TV ligada num canal religioso: Só Jesus salva, só Jesus salva, só Jesus salva. Gritei novamente. Mais alto. Senti uma pontada nas costelas. Uma fisgada. Uma dor profunda. Uma dor em onda, vindo, vindo, vindo, crescendo, ganhando corpo, meu corpo. Gritei, gritei… Pedi, implorei, chorei… Rezei, conjurei todas as possibilidades, ansiei por uma mão, um ombro, uma palavra, algo que arrancasse de mim aquela dor que parecia vir do fundo do universo. Sim, aquela dor era universal. Todos e tudo a estavam sentindo. O universo gritava de dor.

E ali, naquele leite revirado, quedei. Fechei os olhos e pensei no final. Uma hora a dor haveria de passar. Sumir. Voltar para o esquecimento de onde nunca deveria ter saído. Assim são as coisas: nada dura para sempre. Certo disto, respirei fundo e deixei que minhas mãos chegassem até o meu peito e que minhas unhas se cravassem sobre a minha pele em chamas. Gentilmente, meus dedos foram afastando os tecidos e penetrando até os órgãos, arrancando-os um a um. Um oco tomou conta de mim. E nem me preocupei mais em respirar, acabara de jogar meus pulmões na cama ao lado… Meus olhos, minha faringe, meu estômago, fígado, baço, rins… Tudo, retirei tudo… Ficou só o oco. E a dor não sumia. Foi então que percebi que tudo vinha do cérebro. Era ele que estava fazendo isto comigo. Decidi arrancá-lo também e me joguei de encontro ao chão, Senti meu rosto se espatifar, e pedaços de mim se espalharem pelo quarto. Tinha me livrado de tudo e ainda sentia dor.
Que mais me restava fazer?

Imobilizado, sem vida, arrastei-me até a janela e senti a luz. Seria uma boa hora para respirar fundo mas já não me ocorria nenhum movimento familiar. Perdi completamente a noção de eu. Mas se eu não era mais eu, quem eu era agora?

Foi aí que pisquei não com um mas com vários olhos e voei em direção ao sol e não senti mais dor. Nunca mais.