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sábado, 9 de outubro de 2021

Pandemia Randomizada

 

Intimate Diary, Maria Lai, 1977




Dia 71

Ser enganado por um Isaac Newton, Einstein ou Stephen Hawking a gente até aceita e segue adiante numa boa… Porém, ser enganado pelo maior imbecil da paróquia é doloroso e traumático. Pois é, para quem tem olhos de ver, “o bolsonarismo não é apenas uma ideologia reacionária, é essencialmente um desvio de caráter”. Um bolsonarista não tem escrúpulo na hora de criar uma mentira nova para justificar uma mentira antiga. Faz isto na cara dura, com pose de vencedor —artifício criado para esconder o lixo interior onde chafurdam.

Falemos do depoimento de um tal de Hans River na CPMI das Fake News: o sujeito acusado de ser um dos responsáveis pelo disparo de mentiras através de aplicativo. Este indivíduo afirmou que a jornalista responsável pela matéria que jogou luz sobre o caso, o assediou sexualmente em troca de um furo. Imediatamente, as redes foram invadidas por memes e vídeos onde a moça figurava como prostituta. Este é o modo de ser do bolsonarismo: um câncer.

Se já era difícil entender o teorema de Pitágoras, com a chegada desta turma ao proscênio da história política brasileira, está se tornando impossível conceber o prosaico resultado de 2 + 2.


Dia 32

O Luiz Felipe Pondé, dublê de filósofo e mungangueiro profissional, bem que tentou vender a alma ao diabo, mas o capeta, curto e grosso, recusou. Eduardo Bolsonaro decretou que não se precisa ler livros para ser conservador (entenda-se extrema direita), mas simplesmente dar audiência ao Alerta Nacional do Sikêra Júnior — um verdadeiro mestre na arte de cancerizar geral e ainda sair com um troco.


Dia 96

Se todo mundo está correndo pro mercado financeiro em busca de altos rendimentos, enquanto a produção de bens segue colapsada, de onde sairá a grana para pagar os dividendos aguardados? Se todo mundo possui ovos de ouro e ovo de ouro não é transformado em outra coisa que não seja ouro, uma hora todo ovo de ouro perderá completamente o valor e as pessoas não mais consumirão o que quer que seja porque nada foi produzido para ser consumido. Antes do colapso do clima, é certo que acontecerá, inevitavelmente, o colapso do sistema financeiro global…


Dia 158

— O paraíso anunciado pela direita tem um céu de mentira.

— E o paraíso da esquerda, por acaso é verdadeiro?

— Para a esquerda não existe paraíso.


Dia 29

Em época de avanço da extrema-direita e do coronavírus, a série Hunters coloca uma pulga gigante atrás da nossa orelha. Somos levados ao centro da luta contra nazistas que foram cooptados pelo governo norte-americano, por ocasião do término da II Guerra Mundial e assumidos como “armas” na luta contra o comunismo. Essa multidão de assassinos acaba por assumir postos chaves na “terra dos livres e o lar dos bravos” e se dedica ao seu esporte predileto: preparar o advento do 4º Reich.

Um inocente xarope de milho, produzido por uma inocente empresa, fará todo o trabalho: matar metade da população dos EUA e tomar o poder na maior potência mundial. É aí que surge um grupo, formado por judeus, uma freira, um ninja japonês e uma negra que, à custa de muitos tropeços e feridas, consegue anular a meta da diabólica conspiração.

Porém, no último episódio nos invade uma incômoda sensação, que acaba por colocar a série na categoria terror. Assistimos os minutos finais, com a impressão de que, com certeza, não estamos a salvo, nem mesmo entre os nossos (ou, em meio àqueles que lutam ao nosso lado). A paranoia toma conta dos nossos corpos.

Daí é de bom alvitre ficar atento com a mão que nos alimenta e/ou nos cumprimenta, pois é possível esteja rolando um virusinho nas relações ditas afetivas, amistosas e cordiais. Mas, que não se perca a esperança: ainda existem avós e netos — os últimos confiáveis, segundo os roteiristas. Por isto, fiquem atentos à história da própria família e, sobretudo, coloquem-se em perspectiva na luta da civilização contra a barbárie, afinal é fatal ser pego com as calças nas mãos na hora que a jurupoca piar.



sábado, 2 de outubro de 2021

Mural das Indiscrições IX

 

Toilet Paper Panic, Ayshia Taskin, 2020



- Um dia, decidi começar a escrever para ninguém.

 

- Na ausência de uma costela, me apaixonei por um edredom.

 

- Paradoxo moral: A prostituta é uma mulher direita.

 

- Liberal aceita tudo - entre quatro paredes e debaixo dos panos.

 

- Sujeitos fracos fazem o mundo girar, pessoas fortes o mudam.

 

- A música gospel desconhece o sublime, desconhece Bach.

 

- Minha percepção é falha, o álcool preenche as lacunas.

 

- História de amor bem sucedida? - Conto de Fadas.

 

- Impossível viver 100% no sonho: Temos que ir ao mercado.

 

- Toda história teria final feliz não fosse a intrometida realidade...





sábado, 14 de agosto de 2021

Tomem tento, companheiros

 

Google Imagens

 

Vou cancelar meu telefone fixo.

Tempos atrás, ligavam para minha casa e simulavam sequestro de filha minha – “Papai, papai…”!

Deram um tempo neste golpe. Agora, começaram as ligações de uma “central de segurança de cartão de crédito”.

Bem falantes e articulados, me avisam que foram feitas compras em meu nome, se eu as reconheço coisa e tal… caso eu desconfie, fornecem, solícitos, um número de protocolo e pedem que eu anote.

Dia desses foram quatro ligações.

Pensei num texto-resposta para a próxima investida: “Consciência de classe, pessoal: que tal ligarem para o pessoal do alto escalão nas altas esferas – banqueiros insaciáveis viciados em lucro; empresários sonegadores; generais metidos a besta promovidos a marechais e suas filhas solteiras; altos salários do judiciário cheios de penduricalhos; donos da imprensa, seus jagunços e lacaios; coronéis ocupando postos de segundo escalão no governo e recebendo em dobro; deputados e senadores mamadores de emendas no orçamento e arquitetos de grandes jogadas em licitações; milicianos fantasiados de policiais defensores da lei e da ordem sempre atrás de um por fora; pastores neopentecostais com programas na televisão doidos para uma boquinha em ministérios; sindicalistas de resultados…”

Quem sabe assim eles desistem mim, aposentado que, se não fosse a abnegação e luta de uns poucos em fazer valer a cidadania e a justiça social, a muito teria sentado praça nas hordas do desespero.

Aos larápios menores do meu país, por favor: se vocês não têm coragem nem competência para chegar nos “donos” da bagaça que nos assola, não sois bandidos de verdade e só me resta a decepção de ver que o pé-de-chinelo continua a pagar um preço mais alto pelo pato que jamais irá saborear nas cadeias superlotadas do nosso país ou nas valas comuns de cemitérios clandestinos.

Tomem tento, companheiros! 


sábado, 27 de fevereiro de 2021

O grande amor da minha vida

 

Cabot Street Cinema, Hiroshi Sugimoto, 1978


Eu moraria dentro de um cinema. Sem problema, teria uma vida sentimental plena dentro de um.

Na minha pequena adolescência, uns dos meus primeiros amores me levou para assistir Príncipe Valente e passou o filme inteiro a apertar a minha mão: fiquei apaixonado;

A primeira vez que assisti a Paixão de Cristo, senti um choque tão grande que tapei os olhos com as mãos... Hoje, traumatizado, nunca chego perto dos filmes da Sessão Terror;

Marcelino Pão e Vinho foi o primeiro filme que chorei copiosamente e não me senti envergonhado;

O poeira da cidade onde cresci chamava-se Cine Clube. Tinha uma fachada toda azul e as poltronas (umas 100) eram duras de doer o cóccix. Na parte superior funcionava a Rádio Clube, onde jamais nos cansaram de tocar os Beatles. Foi neste cinema pulguento que vi (e gostei) Burt Lancaster, Claudia Cardinalle e Alain Delon numa Itália que um dia pensei que conheceria. Fellini me mostrou muito mais daquela gente que busquei imitar em gestos e gostos… mas quando assisti Zorba, o Grego, com Irene Papas e Anthony Quinn, definitivamente me decidi pela Grécia;

Iniciado em namoro no escurinho do cinema, com o tempo passei a escolher filmes meeiros para levar a namorada, apenas para não ter que perder o enredo na tela;

Na minha grande adolescência adorava frequentar um dos velhos cinemas do meu bairro. A sala tinha um nome incrivelmente sugestivo: Cine Universo. E fazia jus. Havia uma cúpula retrátil, que em noites de tempo bom, sem chuva, abria-se como uma dádiva sobre nossas cabeças - o que permitia que assistíssemos a fita ao mesmo tempo que perscrutássemos as estrelas. Havia também uma imensa e pesada cortina que só abria após três badalos fortíssimos: dica para que começássemos a assoviar e a enxotar a ave símbolo da Condor Filmes para que alçasse voo… Depois então, era só silêncio... cortado por gargalhadas, gestos de descréditos e/ou aplausos com as peripécias na tela;

Uma vez, num grande cinema, em dia de ingresso grátis, comecei a conversar com dois irmãos que estavam na fila da frente... falei que cinema deveria ser de graça pra todo mundo, todo dia. Porém só poderiam entrar pessoas que estivessem pelo menos calçadas com um chinelo e aí então reparei que os dois estavam descalços;

Um dia, um bom amigo me ensinou como entrar no cinema sem pagar: esperar a saída de uma sessão e entrar caminhando de costas. Nunca testei a fórmula, acho que ele também não;

Minha grande decepção foi ir assistir ao filme O Espantalho e minha companhia, com sua volúpia beijoqueira, não me permitiu assistir… depois que nos separamos nunca mais quis saber de ver este filme;

Experiências gratificantes nunca me faltaram. Sempre preferi sentar nalguma poltrona do centro da sala para apreciar as maravilhas que a chamada sétima arte me proporcionava. Saía da sala, sempre, carregando uma tremenda saudade;

Monteiro Lobato, num conto sobre o mundo pré-histórico, me apresentou a televisão (que só consegui conhecer aos 11 anos). Amei, mas de cara percebi que jamais me transformaria num amante;

Agora tenho streaming, curto tudo sozinho, na solidão do meu computador... é legal mas, não tem muita graça;

O grande amor da minha vida tem sofrido muito com o tempo, seu vigor tem desaparecido juntamente com os filmes de Chaplin, Buster Keaton, os seriados de Nioka, Flash Gordon, Fantasma, Jim das Selvas, Tarzan, os musicais da Metro, as chanchadas da Atlântida, Jerry Lewis, Elvis Presley, Cantinflas, os Bang-bang à italiana, James Bond, Franco e Ciccio, o cinema da “boca”, Terense Hill (Mario Giuseppe Girotti) e Bud Spencer (Carlos Pedersoli) e os inúmeros filmes de arte italianos e franceses que assistia só pra cumprir tabela porque, em geral, não entendia nadica de nada mas me permitia sair do cinema a repetir frases ao acaso, vivenciar emoções e acreditar que viver poderia ser uma obra de arte.


sábado, 14 de novembro de 2020

Uma crônica do arco da velha

 

Military Uniform, Luigi Serafini, 1981




Os caras fantasiados de azeitona, muito bem municiados com suas arminhas de mão portáteis fabricadas pela Taurus, estavam certos de que iam invadir a Bolívia ou a Venezuela, mas no meio do caminho veio a ordem que deviam seguir rumo ao norte, em direção a Washington: que se virassem para debelar, a todo e qualquer custo, o caos instalado desde a vitória dos democratas nas últimas eleições presidenciais na atual pátria-mater da democracia, a pedido expresso e lacrimoso do vigente inquilino da Casa Branca, o tal que se recusa a entregar a rapadura e evitar o despejo.

O general encarregado da façanha, num gesto altamente melindroso e repleto de controvérsias, ordenou que fosse providenciado um inventário preciso (e cientificamente de acordo com as normas elaboradas pelo grupo que domina atualmente as sete portas do reino do faz de conta político) de toda a pólvora disponível para fazer chover fogo sobre a capital ianque, conforme o ordenado

Mas foi mal interpretado pelo chefe que o demitiu ad-hoc através das redes sociais, ao mesmo tempo que acionou o órgão responsável pela vigilância sanitária dos bons costumes (recentemente ocupada por mais um militar altamente lúcido e dotado de ideias peremptórias a respeito de tudo e todos, fruto de uma boa educação ministrada na escola superior de todas as guerras que nunca iremos realizar por falta absoluta de uma realidade que as recomende) que, às voltas com mais uma grave decisão a respeito das vacinas contra a pandemia que "mata mais que istriquinina", não conseguiu evitar que se chegasse à conclusão de que a munição dava apenas para uma hora de cacete. 

Um “pau mandado” imediatamente emitiu relatório reportando que a retaguarda da soldadesca que partira para desencadear o apocalipse no hemisfério norte ficaria completamente desprotegida em face a investida rígida e lubrificada das baionetas entumecidas dos marines

Ui, ui, ui... vaticinou, em rompante patriótico, o influencer Deyvidi Brezil, em cadeia nacional, patrocinada pelo Partido Comunista Chinês (que todos nós sabemos muito bem mancomunado com o movimento gaysista e piroquista cujo objetivo sempre foi o de acabar com a família brasileira, através da disseminação de equipamentos pesados para a telefonia celular a preços baixos e altamente competitivos).

Foi um deus-nos-acuda e nem com todas as orações dos pentecostais convictos na vitória do bem (deles) sobre o mal (dos outros) conseguiram sustar a debandada e delírio geral das nossas intrépidas e supimpas forças armadas de cuspe, bodoques e muito caroço de mamona.

Para conter o susto e o surto, imediatamente uma comissão supra partidária conseguiu aprovar, a toque de caixa, no Congresso, que os salários e as pensões das viúvas e filhas "solteiras" continuariam sendo pagos até o juízo final, mesmo diante do vexame anunciado pelo próprio comandante do exército de que as tropas não possuem cacife para garantir a soberania nacional quanto mais se meter numa aventura brancaleônica como esta, fruto de delírio do chefe que tem passado os dias preocupado em defender os próprios filhos das trapalhadas e trapaças em que eles se encontram metidos devido, primordialmente, a falta de tino e de caráter da famíglia

Deixemos esses somenos de lado (protegido por uma cortina de fumaça), antes que nos acometa o próximo desmatamento ou apagão generalizado de todas as boas práticas. Enquanto isto, a cidadania segue na certeza de que dois mais dois continua sendo quatro e que, em 2020, todas as sextas-feiras foram 13.



sábado, 31 de outubro de 2020

Mural das Indiscrições VIII

 

Sem Título, Sidney Amaral, 2015

O desejo é o grande responsável pela vida e pela morte.


Por existirem coisas difíceis de terminar, o ser humano inventou o recomeço.


Tolo é aquele que aconselha todo mundo - menos a si mesmo.


Se não fores político ou televangelista, o que puderes dizer num parágrafo, faça-o numa frase.


Ninguém acumula fortuna trabalhando honestamente.


Entre uma biografia autorizada e o que, de fato, pensam do biografado aqueles que o conhecem, existe o editor.


Ser um seguidor das leis não certidão de honestidade a ninguém.


Divindades modernas: Mercado, Dinheiro, Mídia, Consumo, Opinião, Homem de Bem, Ego…


Demônios atuais: Rabo Preso, Ficha Suja, Jeitinho, Carteirada, Meu-Pirão-Primeiro, Pobre de Direita, Patriota…


Metade da vida dedicou-se ao vício. A outra, à virtude. Morto, foi apenas humano.


Duas coisas sobrevivem à inocência: autoengano e ceticismo.


Apenas a experiência é capaz de nos ensinar sobre a alegria. Para isto a vida nos deu o tempo da infância.


Somos uma fotografia, de lembranças pixelada, que se deteriora com o tempo...




sábado, 10 de outubro de 2020

Autorretrato

Interior with Hand Mirror, Lucian Freud, sem data

 


Um conto: A Última Pergunta, Isaac Asimov

Um livro: Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino

Um título: Tudo que é sólido desmancha no ar

Um escritor: Graciliano Ramos

Um ícone: Ariano Suassuna

Um poeta: Paulo Renault

Uma música: Lero Lero, Edu Lobo

Leitura Obrigatória: Jorge Luis Borges

Um filósofo: Nietzsche

Uma frase: Sou educado antes de ser rude

Otimismo ou Pessimismo: Realismo Pragmático

Um mistério: A Estupidez Humana

Um local: Praia

Um medo: Viver me assusta

Um apego: Bugigangas

Uma descoberta: A Natureza tem pudor

Um amor: O Porvir

Uma religião: Budismo

Uma mitologia: Todas

Uma dúvida: Deus, Alma e Imortalidade

Um propósito: Esquecer



sábado, 15 de fevereiro de 2020

Os ovos de ouro



Hallow Egg, Alexander Calder, 1939




Um dia, um gênio apareceu na cidade e ofereceu seus dons. Como ali todos eram pobres, lembraram da história antiga e cada um pediu uma galinha que botasse ovos de ouro.
O gênio, relutantemente, concedeu o desejo. Todos foram pra casa com a certeza de que agora finalmente não precisariam se preocupar com mais nada na vida.
Com o passar do tempo, ninguém mais precisou ou se lembrou de trabalhar.
Todo mundo agora era milionário. Ninguém mais produzia um alfinete que fosse. Afinal, tinham montanhas de ouro e podiam comprar tudo que desejassem.
Porém, o que havia em estoque um dia acabou. E como não tinham produzido nada para repor o que consumiram, logo as prateleiras dos mercados ficaram completamente vazias.
Quando, bateu a fome, não havia alimento; quando o frio entrou, não havia agasalho; quando a doença acordou, não havia remédios… E todo dia, a galinha de cada um botava mais um ovo de ouro que nem era comestível.
Perceberam que, na verdade, haviam desejado e recebido uma inutilidade, todo ouro que possuíam não valia nada.
Foi aí que decidiram matar suas respectivas galinhas, para aplacar a fome. E, de barriga cheia, voltaram aos seus afazeres anteriores em busca de suprirem suas necessidades e, eventualmente, produzir um tanto a mais que lhes permitissem trocar por outras coisas que precisarem.
Num passe de mágica, todo o ouro acumulado desapareceu da história e ninguém sentiu a falta dele.


sábado, 8 de fevereiro de 2020

O Paraíso Deserto



Cosmic Map, Bruno Munari, 1930




João da Silva Guimarães, mestre de campo, encarregado de desbravar o sertão baiano, está velho, cansado e delirante. Passa o tempo rememorando suas andanças em busca de ouro e prata para a coroa portuguesa.
No fim da jornada, tem como propósito escrever uma carta para El Rei (e estamos falando aí de algo por volta de 1760 e alguma coisa) onde narrará as aventuras de Belchior Dias Moreira, o Muribeca (Mosca Chata), filho de Diogo Alvares Correia, o Caramuru (Moreia, em tupi) com a cunhada Moema (Abençoada), irmã da sua esposa Paraguaçu (Mar Grande). Será uma história ouvida de várias vozes de um cem números de gentes, cujo título já tem pronto: Relação histórica de uma oculta, e grande povoação antiquíssima sem moradores.
Mas como a terra gira e a lusitana roda, a missiva, se chegar a ser escrita, ficará conhecida apenas Documento 512. E ficará arquivada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a espera de que, um dia, alguém a decifre. Porque ali estará firmado, com todas os símbolos e letras, que Muribeca saberia da existência de uma tribo desconhecida que exibia lindos enfeites dourados e prateados. Que, após muitos obstáculos e revezes conseguiu chegar a uma montanha cintilante, coberta de cristais. Que daí seguiu por uma estrada de pedra, passou por dentro de uma montanha e, finalmente, através de um caminho pavimentado, chegou a uma grande cidade onde, na entrada, havia três arcos (um central, grande; dois menores nas laterais) com inscrições grego ptolomaico (?). Que reparou que as casas eram todas iguais e interligadas. Algumas tinham mais de um andar. Que na praça central, havia uma enorme estátua, em pedra preta, de uma figura despida da cintura para baixo, com a mão esquerda sobre o quadril e o braço direito estendido a apontar para o Norte, trazendo na cabeça uma coroa de louros. Que ao lado da praça, corria um rio que desembocava numa cachoeira rodeada de tumbas e que, neste exato local, Muribeca encontrou uma moeda de ouro, que trazia, numa face, o relevo de um rapaz ajoelhado e na outra, um arco, coroa e flecha.
Envolto nesse mistério alucinante, João Guimarães se perguntava o que significava tudo aquilo? E via a si na estrada de pedras, entrando na montanha dos cristais, atingindo o caminho pavimentado e chegando aos três arcos na entrada da grande cidade… completamente em ruínas… mas não enxergava vivalma. E beirando o rio que beira a praça, chega à cachoeira, às tumbas, ao local onde Muribeca encontrou a moeda
Súbito, já se vê às margens do Rio Paraguaçu cumprimentando seu companheiro João Gonçalves da Costa que, a mando do governador da capitania, Manuel da Cunha e Menezes, estava dando guerra aos elegantes Mogoyóis em busca de ficar pé naquelas brenhas sertanejas do que um dia seria o estado da Bahia. E ali, sem qualquer reparo ou remorso, os dois articulam um plano infernal: promover uma festa, em honra dos nativos e após embriagá-los, mata-os todos. Desta forma nasceu o arraial da Conquista, mais tarde batizada de Vitória da Conquista, terra onde este narrador que vos fala tem um vago nome e escutou, certa feita, do mestre cantador Elomar esta singela estrofe:
Depois, depois de muitos anos
Voltei ao meu antigo lar
Desilusões que desenganam
Não tive onde repousar
Cortaram o tronco da palmeira
Tribuna de um velho sabiá
E o antigo tronco do oliveira
Jogado num canto pra lá
Que ingratidão pra lá

Por que a gente insiste em voltar? Porque há sempre o retorno. Porque havemos de ver o que poderia ter sido. Porque o mais grave de tudo é a gente esquecer. Isto fui eu quem disse, porque o João da Silva Guimarães, em meio a carnificina programada, vê surgir o Muribeca, com um mapa nas mãos e larga pra lá aquele mundaréu de corpos mutilados, aquela sangueira tingindo as árvores e o segue… pelo caminho das pedras, por dentro da Montanha dos Cristais até a entrada da grande cidade deserta.
Não entendo, para onde foram todos?
Talvez tenhamos errado nalguma dobra do caminho…! Respondeu João Magalhães, sem evitar de pensar em como contar esta história a El Rei sem que desse prova de estarmos todos loucos? Mas teve que interromper sua dúvida porque o Muribeca já insistia em rumar a conversa para outra banda
De que adianta o paraíso se não há gente pra olhar?



sábado, 1 de fevereiro de 2020

Amor com amor se paga


House over the Waterfall, Jacek Yerka, 1981



Os primos decidiram que era hora de construírem uma casa. Após altos e baixos, culpa sem fim, medo, inveja, mágoa, baixa autoestima, profunda repressão sexual... me aparecem com aquela propaganda de que a “fé move montanhas” e cantaram, ao pé do meu ouvido cansado velho de guerra, a fatídica bola: ou estava dentro ou levaria um pé da bunda de afundar o queixo.
Pedi ajuda pra minha mãe. Solicitei que baixasse numa médium conhecida sua e mandasse um recado às madrastas tias: “livra meu filho desse atropelo ou me sinto liberada para divulgar tudo que vocês fizeram nos verões passados”. O jogo é duro e pesado: amor com amor se paga.
E lá vai um bom tempo desde que começaram a discutir de que tipo seria a decoração e qual sistema de segurança é mais adequado para uma família classe média, moradora de condomínio, com salário dos bons (daqueles que permite sustentar quatro filhos dispostos a torrar o capital, e reputação, sem o menor constrangimento), além de sustentar uma doméstica (que é praticamente da família) que trabalha sete dias por semana e por se recusar a dormir no emprego, sob o falso pretexto de que tem filhos pra cuidar, pode ser mandada pro olho da rua, por justa causa, e ainda ser processada por perdas e danos morais.
Cara, me divirto com os primos. Contemplo suas brigas e o vai e vem de suas decisões – ora assim, ora assado – e me deleito com a possibilidade de que acabem mesmo ficando no mais completo relento, acompanhados por seus fiéis escudeiros (que, à boca pequena, já deram o toque que só estão na jogada porque sabem que podem cobrar na Justiça Trabalhista uma indenização digna de divorciada de celebridade quando o “amor” acabar. E vai acabar).
Não faço a menor ideia do que move os primos. Aliás, faço… e abomino: suas atitudes e opiniões fazem a gente desejar viver ao lado de um daqueles traficantes evangélicos que se divertem incendiando terreiro de orixás só pra manter o consumo de cocaína dentro de padrões socialmente aceitos e assim terem suas atividades reconhecidas como de utilidade pública.
Os primos não são flores para se cheirar mas, como sou cuidadoso com esse negócio de relações parentais, tenho que dar uma de migué, fazer de conta que estou dentro, que compartilho de suas loucuras. Para tanto, aprendi a dissimular minhas dores (que às vezes é interpretada como bichice, boilagem, perobagem...) diante da potência que os primos fazem questão de apregoar em todos os reality show’s que, à custa de um bem empregado jeitinho, tem feito a alegria da moçada nestes últimos tempos à espera de um final para esta novela metida a besta, cujo único objetivo é manter os privilégios de sempre entre os dedos dos manjados manipuladores.
Aqui entre nós, os ignóbeis primos descobriram a fórmula de capitalizarem a mensagem de que são uma alternativa perfeitamente válida pelo simples fato de que em tempo de incerteza, se não se há resposta certa, a burrice conta.
Estou fora. Que os primos se lasquem entre as paredes do inferno que ergueram. E fico por aqui, a me reservar o direito e ser um tantinho mais cruel que eles. Atocha qu’eles bobeiam!

sábado, 25 de janeiro de 2020

Um bom dia para desenterrar tesouro


Ilustração de N.C.Wyeth 
para o livro A Ilha do Tesouro
de Robert Louis Stevenson



Thomas Clement Douglas era um pastor batista, nascido na Escócia, que tornou-se um proeminente político social-democrata no Canadá. Como primeiro-ministro da província de Saskatchewan, de 1944 a 1961, pelo partido CCF (Cooperative Commonwealth Federation), liderou o primeiro governo socialista da América do Norte e introduziu o modelo de saúde pública universal, o Medicare. Morreu em 1986. Lembrado por sua sagacidade e atuação destemida em favor dos direitos constitucionais, em 2004 foi eleito o maior canadense de todos os tempos. A Carta dos Direitos de Saskatchewan precedeu, em 18 meses, a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU. Seu idealismo pode ser reconhecido neste conto político conhecida como Mouseland, contada por ele num discurso proferido no ano de 1944. Vamos à fábula:

Esta é a história de Ratolância, uma país semelhante em tudo aos demais. Ali, os ratos viviam e brincavam, nasciam e morriam. Da mesma maneira que eu e você. Em Ratolândia tem casa, tem rua, tem praça, tem fábrica, igreja, escola, hospital… tem também Parlamento. Por isso, a cada quatro anos os ratos faziam uma eleição. Iam às urnas e votavam. Como você e eu. E todas as vezes, os ratos, os camundongos e as ratazanas elegiam um governo. Um governo composto de grandes e gordos... gatos pretos.
Se você acha estranho que ratos escolham um governo composto de gatos, basta olhar para a história do Canadá nos últimos 90 anos e talvez você perceba que eles não são mais idiotas do que nós.
Não tenho nada contra os gatos, acho até que são boa gente… Conduzem o governo com dignidade. Aprovam boas leis - isto é, leis que são boas para os gatos. Mas as leis que são boas para os gatos não são muito boas para os ratos. Uma das leis diziam que os buracos de ratos têm que ser grandes o suficiente para que um gato possa colocar a pata. Outra, obrigava os ratos a viajarem em certas velocidades - de modo que um gato possa tomar seu café da manhã sem pressa. Todas as leis são boas leis…. para gatos.
A vida era dura para os ratos. E foi ficando cada vez mais difícil. Cansados desse estado de coisas, os ratos decidiram que precisavam fazer algo a respeito. Chegaram à conclusão de que deveriam votar, em massa, nos gatos brancos porque eles tinham feito uma campanha fantástica, cujo slogan era: “Abra seu olho”. Em todos os meios de comunicação apareciam os candidatos brancos afirmando: “O problema de Ratolância são esses buracos de rato redondos que temos. Vote em nós que criaremos buracos de ratos quadrados."
E fizeram. Só que os buracos de rato quadrados eram duas vezes maiores do que os buracos de rato redondos, e agora um gato conseguia colocar não uma, mas as duas patas. E a vida foi ficando mais dura do que nunca. Quando os ratos não aguentaram mais, votaram e trocaram o governo dos gatos brancos por… gatos pretos.
E a cada eleição votavam ora nos brancos ora nos pretos. E houve uma eleição, que pra variar, votaram em gatos meio pretos e gatos meio brancos. E chamaram isso de coalizão. E na eleição seguinte votaram nos gatos com manchas. Como podem ver, meus amigos, o problema não é com a cor do gato. O problema é que eles eram gatos. E porque são gatos, naturalmente cuidam de gatos em vez de ratos.
E aí surgiu um ratinho com uma ideia. E disse aos outros ratos: "Por que continuamos a eleger um governo composto de gatos? Por que não elegemos um governo composto de ratos?"…
- Oh, disseram, ele é um comunista. E o colocaram na cadeia. Mas esta é uma atitude inútil, de nada adianta. Afinal, os carcereiros jamais conseguem prender uma ideia e basta que ela consiga entrar na maioria das cabeças para, finalmente, tornar-se realidade”.


domingo, 12 de janeiro de 2020

Contexto


Máscaras Sensoriais, Lygia Clark, 1967



Era uma casa muito engraçada
não tinha teto não tinha nada
ninguém podia entrar nela, não
porque na casa não tinha chão…
Vinicius de Moraes, A Casa

... Ao perceber que tinha ficado para trás, que tinha sido superado, ao invés de renovar-se, decide investir contra a evolução: passa a exaltar preconceitos estúpidos e a infame ignorância, elegendo-os bússola para a vida… Não admite, por frustração e mágoa, que as coisas decaiam naturalmente… Trabalha com afinco pela antecipação do fim… E ao olhar o futuro, por conta desse antipático paradigma, brada: se vamos todos morrer um dia que tal morrermos agora?… E traça seu projeto.
... Com promessa de reembolso, o verdugo sobe ao púlpito e com voz embargada (tom de gentil paternidade) lê 300 tábuas de lei num idioma severo, especialmente criado para a ocasião… Insanas, para honra e glória do mercado, as ovelhas entram no cio e, enquanto sacrificam consentidos nacos de nossas carnes, exaltam método tão canônico de desdizer os fatos, os objetos e as coisas… Apesar das aparências, vivemos bem – aparvalhados, verdade - porém, a salvo dos tiranos insepultos do passado por vênias dedicadas.
... Blindado pela vulgar mediocridade da notícia-mercadoria imposta pela hegemonia dos meios de comunicação dominados pelo conceito de lucro, o simplório torna-se refratário à racionalidade, à reflexão crítica e à educação política, restando suscetível apenas ao pensamento mágico articulado por consentidos e articulados vigaristas.
... Você sabe de onde vem o soco, de onde vem o choque, de onde vem o golpe… Você sabe dessa história o novelo, a ponta e o nó, e ainda por cima acha porreta dizer que tá tudo okey quando compartilha o vídeo do rapaz sendo torturado no quartinho do supermercado… Você sabe e acha legal… Você sabe dessa lógica, a circular… Você sabe, dane-se…
... Não basta julgar, tem que condenar; não basta condenar, tem que demonizar; não basta demonizar, tem que desumanizar; não basta desumanizar, tem que segregar; não basta segregar, tem que corromper; não basta corromper, tem que abusar; não basta abusar, tem que dominar; não basta dominar, tem que odiar; não basta odiar, tem que humilhar; não basta humilhar, tem que explorar; não basta explorar, tem que herdar; não basta herdar, tem que exaltar; não basta exaltar, tem que vitimar; não basta vitimar, tem que culpar; não basta culpar, tem que julgar; não basta julgar, tem que condenar...


sábado, 21 de dezembro de 2019

Anônimos Para-choques II


Conversation, Jeffrey Smart, sem data




Macho que é macho não navega na internet: atravessa a nado.

Peito de mulher é igual autorama: feito para criança mas só adulto brinca.

É melhor duas abelhas voando do que uma na mão.

Todo mundo pratica suas maracutaias, apenas uns são mais honestos que outros.

A mentira é uma verdade esquecida de acontecer.

Todo mundo tem cliente. Apenas analista de sistemas e traficante tem usuário.

Se desejas saber a verdade não tenhas opiniões.

Casar é trocar a admiração de várias mulheres pela crítica de uma só.

Como pode o pobre sofrer de anemia se leva ferro todo dia?

Bebo pouco, mas este pouco me transforma em outra pessoa que bebe muito.

Se queres manter distância de alguém, torne-se seu vizinho.

Os ricos lucram até com a raiva. Odiar sai bem mais barato que doar.