sábado, 25 de outubro de 2025

Madame Nanã



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Em uma Ilhéus envelhecida no tempo a sofrer já de certo banzo, um burburinho corria solto na Avenida Itabuna. A fachada discreta de um bangalô, pintado de verde-oliva, escondia o que a “seu ninguém” se revelava. Pertencia a Madame Nanã, cuja voz mansa e firme comandava um segredo que poucos conheciam.

Quem tomava conta da casa era a irmã, baixinha de riso fácil e gaitada sincera. No quintal, uma fonte de água salgada decorada com uma escultura de sereia. Os dois filhos de Nanã, que estudavam em Itabuna e vinham passar férias com a tia, entre uma traquinagem e outra – por exemplo, me jogar dentro de um caixote cheio de carvão para que perdesse um pouco da minha alvura e alcançasse a morenidade que nem eles, me contaram que Iemanjá vinha ali sentar-se para pentear os cabelos. Numa noite em que tive a felicidade de dormir por lá, um tanto assustado com os espelhos que adornavam as laterais de uma penteadeira que ficava aos pés da cama e multiplicavam o meu rosto de menino, fiquei deitado segurando o sono. Quando o relógio da sala bateu meia noite, corri até a fechadura da porta que levava ao quintal para comprovar a história que tanto me fascinava. Adormeci frustrado: Iemanjá não apareceu. Repeti o gesto mais umas duas outras vezes mas, para minha decepção, não pude constatar a veracidade da história. Mas o que posso afirmar é que, adiante da fonte, havia uma fileira de quartinhos, onde perfumadas pelos incensos de jasmim, neófitas, futuras iaôs, “faziam a cabeça”.

Jamais diria que Madame Nanã usava essa meninas para satisfazer os caprichos dos coronéis da região mas o que todos sabiam era que ela comandava, na década de 50, um cabaré no centro da cidade, pertinho da Catedral de São Jorge.

A morena Nanã havia chegado em Ilhéus fugindo da miséria do sertão sergipano, trazendo consigo a força de seus orixás. Ao contrário do que muitos pensavam, o dinheiro do negócio do cabaré não era para luxo pessoal, mas sim para sustentar a tradição e manter os roncós no quintal mágico do bangalô na Avenida Itabuna que servia como metáfora da própria vida da cidade: de um lado, a fachada de uma moralidade rígida, católica; do outro, o segredo da noite, a vida de candomblé, a riqueza das crenças de matriz africana que bem alimentam a alma da dengosa Bahia.

A história de Nanã, seu cabaré e a casa na Avenida Itabuna permanecem como uma lenda na memória de Ilhéus. Não há registros oficiais, apenas o sussurro de uma vaga e longínqua lembrança. Muitos acreditam que a estória dela e da casa que abrigava futuras mães de santo seja apenas folclore, um conto popular construído por gente comum que a quiseram rivalizar com a Maria Machadão e seu Bataclan, imortalizados por Jorge Amado em Gabriela, Cravo e Canela.

No final, Nanã parece morar apenas em mim. Parece que só eu sei que ela foi real. A visitei certa feita. Já quase cega, encontrei-a sentada na varanda do bangalô - agora tomado pelo mato, distiorado, cuja pintura parecia em pânico diante da decadência. Não entrei nem pedi pra visitar a fonte. Havia levado vaso com flores e uma caixa de chocolates. Demorei pouco. Ela não conseguiu lembrar quem eu era. Tirei uma foto ao seu lado mas, infelizmente, não sei onde foi parar este registro.

E assim, desta lembrança de Ilhéus tudo parece que foi engolido pelas areias movediças do tempo e onde existiu um dia uma profusão de sentidos, signos e significados - lá donde o visível e invisível, o sagrado e o profano, o poético e o prosaico andavam de mãos dadas, restaram apenas ruínas e o perfume irreconhecível dos frutos da terra.




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