sábado, 16 de julho de 2016

Mácula


Navio Negreiro, Geledés.org.



Morrer é o de menos.
Viver sob a injustiça é que são elas.



Após um longo jejum, decidi assistir dois espetáculos teatrais: Brasil, O Futuro Que Nunca Chega - Princesa Isabel e Dom Pedro II. Obra escrita e dirigida pelo dramaturgo Samir Yasbek que, já em As Flores do Cedro, me havia surpreendido pelo precioso trabalho com as palavras. Com estas duas obras atuais, o autor nos conclama a uma reflexão sobre a escravidão no Brasil e traça um paralelo com a questão dos imigrantes. Bastante precisa a maneira com que ressalta o aspecto como a monarquia encarou o assunto e as consequências trágicas para a sociedade brasileira da não integração do negro na cidadania, pois, contrariando o bom senso, acreditou-se que a questão seria resolvida “largando os negros por aí”. E, acrescento, atingiu-se o ápice do contrasenso quando, na sequência, o estado brasileiro opta por indenizar os proprietários escravocratas sob alegação de que precisavam recuperar seus ativos” e fazer face ao pagamento de salários aos imigrantes que aqui desembarcavam para as lavouras de café. Percebe-se que daí pra cá o nosso Estado não tem feito outra coisa senão fazer recair sobre a maioria do povo brasileiro o ônus das más políticas implementadas por aqueles que vivem do bônus.

Dias mais tarde, leio um artigo no site do cineasta gaúcho Jorge Furtado, assinalando que não acredita que iremos “sair da condição degradante de país mais injusto do planeta sem educação de qualidade e sem que a nossa riqueza, que é imensa, seja distribuída de forma justa, com taxas progressivas de imposto de renda, com impostos justos sobre herança, lucro e renda, combate à sonegação e aos paraísos fiscais, com punição aos sonegadores”. E que “sem isso, continuaremos sempre um país de senhores e escravos”.

Daí a chegar no site Geledés – Instituto da Mulher Negra, foi um clique. Lá deparei-me com uma matéria relatando uma pesquisa delicada realizada pela Universidade de Emory (EUA) e reunida no site slavevoyages.org que achei por bem reproduzir aqui uma pequena parte.

Inicia o artigo: “Tudo na escravidão nos envergonha. E dói ainda mais saber que, dentre os que promoviam o comércio de seres humanos, havia alguns que acreditavam que estavam fazendo um bem, que aquilo era obra de deus, que estavam ajudando a resgatar as almas dos africanos tirando-os de uma terra onde imperava o paganismo para entregá-los à cristandade”.

Penso que pouco importava ou importa a motivação, se o dinheiro ou a religião. O fato é que promoveram uma diáspora, sujeitaram pessoas a trabalhos forçados e degradantes, cometeram crime de lesa humanidade - um crime sem punição e sem reparação que permanece como chaga aberta em nosso tecido social.

E conclui: “Ademais, o cinismo dos que lucravam com aquele comércio, o cinismo escancarado. Aqueles navios, verdadeiros infernos flutuantes, tinham nome, nomes dissimulados que serviam a único propósito: intimidar”.

Em seguida apresenta uma lista com alguns dos mais nojentos nomes de barcos que transportaram cativos para o Brasil:

1. Amável Donzela - Galera de bandeira portuguesa. Trouxe muita gente para a lavoura de algodão do Maranhão cuja produção era exportada para a Grã Bretanha que encontrava-se em pleno desenvolvimento industrial. Entre 1804 e 1806, desembarcou mais de 1.700 seres humanos no Rio de Janeiro e Pernambuco.

2. Boa Intenção - Galera de bandeira portuguesa, cuja “boa intenção” foi a de despejar 769 cativos na Bahia e Rio de Janeiro.

3. Brinquedo de Meninos – Bergatim de bandeira portuguesa. Transportou 3.179 cativos com destino à Bahia.

4. Caridade – Bergatim de bandeira portuguesa/espanhola; realizou 20 travessias; transportou 6.263. Foram quatro embarcações com este nome. O último navio Caridade, navegando com bandeira espanhola mostrou toda crueldade que escondia. No extremo sudeste de onde hoje é a Nigéria, o barco foi capturado pelo britânicos no trajeto para o Brasil. Quando contaram o número de transportados, uma surpresa: dos 112 cativos, 71% eram crianças.

5. Feliz Destino – Bergatim de bandeira portuguesa; Todas as viagens desta embarcação foram para o Nordeste brasileiro onde desembarcou 1.139 seres humanos cujo destino foi o de serem moídos pelos engenhos de açúcar. De todas as viagens deste barco, a mais mortal foi a de 1821, conduzida pelo escroque Prudêncio Vital de Lemos. Dos 416 cativos, apenas 377 chegaram.

6. Feliz Dias a Pobrezinhos – Bergatim de bandeira portuguesa; no dia 17 de dezembro de 1811, o barco, comandando pelo patife conhecido como Vitorino da Luz e Almeida, deixou a Africa com 355 cativos. O barco estava superlotado. Provavelmente assolados por uma epidemia furiosa, morreram 120 africanos, mais de um por dia.

7. Graciosa Vingativa – Iate a vela de bandeira portuguesa; realizou 10 travessias; transportou 1.257. Nesta época o Haiti já tinha dado fim à escravidão, os Estados Unidos haviam proibido o comércio. Nos territórios britânicos houve a abolição e o cerco se fechava contra a prática escravista no Brasil. Daí os traficantes apostarem em embarcações mais leves, capazes de fugir dos barcos estrangeiros. Não que a intenção de todas as forças estrangeiras fossem humanitária. Muitas vezes, a perseguição aos navios negreiros se dava por disputa econômica mesmo.

8. Regeneradora – Houveram três embarcações com este nome. Todas de bandeira portuguesa. Escuna, brigue e corveta. Realizaram 7 travessia; transportaram 1.959. Quatro destas viagens foram comandadas pelo canalha Bento José Francisco Fortes que também era comerciante de farinha, feijão e fumo para o sul do país.

Pois é, o inferno brasileiro (onde torturadores e assassinos orgulham-se de suas ações e encontram respaldo) está cheio de nomes bonitos, boas intenções e principalmente, muita propaganda enganosa. E ao contrário do que desejam os promotores da “escola sem partido”, só a educação, conjugada com uma profunda autocrítica, será capaz de nos salvar.  


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