sábado, 27 de fevereiro de 2016

A Espiga de Milho no Meio do Cafezal

Venus and Mars Suprised by Vulcan
Joachim Wtewael, 1601



Uma tragédia verde-oliva

Existem vitórias que são verdadeiras derrotas


Agosto é mês do desgosto. Que o diga os envolvidos na Tragédia da Piedade. O dia era domingo. Euclides da Cunha, que dois dias antes teria dito ao filho Solon, de quinze anos, que a mãe dele era uma adúltera, passara a noite fumando. Na aurora do dia 15, em pleno 1909, o engenheiro militar parou diante do número 214 da Estrada Real de Santa Cruz, após pegar emprestado, com um primo, no bairro do Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, uma revolver calibre 22.

O que ficou registrado pela história daquela fatídica manhã provém dos depoimentos dos sobreviventes. A versão do tímido e introspectivo Euclides jamais virá a público, tal qual o testemunho da Capitu, amada rejeitada pelo casmurro Bentinho. O resto é literatura.

O que se sabe daquela hora é que Ana Emília Ribeiro da Cunha e seu filho Luiz, estavam trancados num quarto. Portanto, a filha do major Frederico Solon Sampaio Ribeiro, um dos principais propagandistas da República, é uma testemunha indireta do crime, não viu com seus próprios olhos o que aconteceu. Dinorá de Assis, irmão do Dilermando, com quem dividia a casa, atingindo por um tiro, ficou imobilizado no jogo. Resta-nos apenas a versão do tenente que diz ter o escritor invadido a casa, arrombado a porta do seu quarto e gritado: - Vim para matar ou morrer! Segundo sua versão, Euclides o teria atingido com dois tiros enquanto vestia a túnica.

Note-se contudo que o autor de Os Sertões sabia do romance da sua esposa com o jovem oficial, gaúcho, alto, belo, loiro, campeão de tiro e órfão, Dilermando Cândido de Assis. Este tórrido amor já durava cinco anos e gerara dois meninos. O primeiro, infelizmente, morreu após uma semana de vida. Euclides, que passava muito tempo em viagens, teria aceitado a ideia de criar o segundo inocente como seu legítimo filho. Tome-se como uma demostração de afeto ou quem sabe não desejasse ver seu nome envolvido num escândalo conjugal. Quem constrói uma reputação profissional digna de louvor teme por demais deitar nódoas sobre si. Se esta premissa se sustenta, é possível imaginar Euclides dirigindo-se ao bairro da Piedade para tentar reaver a mulher e a “espiga de milho no meio do cafezal”, que é como se referia à criança de quase dois anos de idade.

Considere-se porém o testemunho de duas vizinhas – uma de nove anos, negado em juízo pelo acusado. Segundo elas, Euclides, ao sair da casa, bradara: - Corja de bandidos. Logo em seguida Dilermando apareceu na porta e xingou: - Cachorro! Dizem as duas, que um tiro fatal atingiu o jornalista pelas costas. Estes testemunhos corroboram a tese de que o imortal fora vítima de um homicídio doloso, visto que Dilermando nunca contou exatamente como se deram os tiros e ninguém explicou como Euclides, com um tiro no peito e uma vértebra fraturada, poderia ter saído da casa. E aqui, entramos naquela zona sombria onde a imaginação tende a nos levar àquele território onde reina a opinião, repleta de amor-próprio, autoritária, cujo código de honra pode levar qualquer um à ruína.

Nesta perspectiva, temos a versão shakespeariana que aponta as duas tias de Dilermando, Angelica e Lucinda, fornecendo o endereço do sobrinho e insuflando os brios do Euclides, fazendo-o jurar que cuspiria sobre o cadáver da mulher que o traiu. A suposta cena tem apelo teatral e alta densidade dramática. Se aconteceu ou não, pouco importa. O que conta mesmo é que o ocorrido está habilitado a figurar na esfera do mito.

Mas a realidade é que, absolvido graças à ineficiência da acusação diante da esperteza do mestre Evaristo de Morais, que na defesa do réu, entre outras pérolas, ponderou que um oficial do exército não pode fugir ao confronto, pois a fuga é vergonhosa e perigosa; que a condenação do seu cliente equivaleria a um “triste conselho de covardia e de vilipêndio pessoal transmitido aos oficiais do brioso Exército Brasileiro”, além de sustentar a doutrina que admite o adultério desde que o responsável tenha pouca idade. Impregnado piamente deste código viril, Dilermando teve oportunidade de ferir e matar uma segunda vez, cinco anos depois. Levado novamente a juízo, alegou outra vez legitima defesa, desta vez contra o aspirante a oficial da Marinha, Euclides da Cunha Júnior, filho do rival. Tudo leva a crer que somos fantoches dos preconceitos e da hipocrisia social.

Finalmente livre e desimpedido, Dilermando casou-se com Ana em maio de 1911. Promovido e prestigiado, mudou-se para o Rio Grande do Sul onde, na condição de engenheiro, ergueu muitos prédios, inclusive o Quartel Geral do Exército, na cidade de Bagé. Geraram outros cinco filhos. Porém, contrariando os contos de fadas, separaram-se quinze anos depois. Morreram em 1951. Ela em maio, no Rio de Janeiro; ele em novembro, em São Paulo; de câncer e derrame cerebral, respectivamente. 


Um comentário:

  1. Há alguns anos, tive em mãos o processo criminal relativo ao assassinato de Euclides da Cunha. Da leitura rápida - é um calhamaço considerável - dos pontos mais interessantes, senti que a justiça foi benigna com o assassino. Não conhecia, porém alguns detalhes interessantes que você traz aqui. Belo texto!

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