sábado, 5 de março de 2016

O Senhor da Pedra


O Coronel dos Coronéis


O Sertão está em toda parte
Guimarães Rosa


Era uma vez, nas brenhas do sertão nordestino, um cavalariano, de família importante, chamado Delmiro Porfírio, o Belo – moço casado e pai de cinco filhos. Tocando sua tropa de cavalos, lá pras bandas da Paraíba, viu de longe a menina Leonila Gouveia, filha de um poderoso coronel da região e logo se embeiçou por ela. Para enganchá-la na garupa da sua montaria, com ela se mandar para Ipu, no Ceará e refugiar-se na Fazenda Boa Vista, de propriedade dos seus, foi um pulo. Três anos depois nascia – era o ano de 1863, Delmiro Gouveia, aquele que leva o título que dá nome a este conto. Pressionado pela família da moça, Belo não viu escapatória senão alistar-se nos Voluntários da Pátria e partir para o Paraguai, onde, numa emboscada, lhe partiram o crânio em dezembro de 1867. Leonila, de déu em déu, chegou ao Recife e foi trabalhar de doméstica na casa de um advogado. Em 1877, na noite anterior à sua morte, o patrão aceitou-a em casamento.

Com uma herança desta nas costas, o jovem Delmiro tinha mesmo que ganhar o mundo, partindo de baixo para cima. Foi tipógrafo, funcionário de ferrovia (chegou a chefe de estação), mascate, despachante de barcaças e, por fim, negociante de couros de cabra e bode. Fundou a Casa de Comércio Delmiro & Cia, quando tinha apenas 33 anos de idade. Graciliano Ramos assevera na crônica “Recordações de uma Indústria Morta”, constante do livro Viventes das Alagoas: “Conheceu todos os segredos do ofício, adquiriu tanta habilidade que poderia, segundo afirmam os tabaréus, esfolar uma cabra viva sem que ela percebesse que estava sendo esfolada”. Mas a vida ainda reservava muitas loas para alguém que mal sabia escrever o nome mas se comunicava muito bem em português, inglês e francês.

Estabelecido no Recife conseguiu, com aliados políticos locais, construir o primeiro shopping center do Brasil, o Mercado do Derby – uma área de quase 2500 m2, totalmente abastecida com energia elétrica e um sistema de esgoto eficiente. Possuía 18 portões, 112 janelas, 264 boxes (todos com balções de mármore) onde, de dia, se vendia hortaliças e verduras, e à noite revelava-se um mundo de entretenimento e diversão (barracas de prendas, cinema, carrosséis, teatro, retretas…) que contava ainda com um elegante Restaurante e um luxuoso Hotel (onde se chegava de barco, vindo direto do porto da cidade, pelo leito do Capibaribe). Um verdadeiro encanto de modernidade no final dos oitocentos. Tinha até velódromo para ciclismo. Mas a medida que sua fama crescia os inimigos não lhe davam tréguas. Concorrentes políticos e econômicos tramavam abertamente contra seu sucesso e influência.

Estas tramoias o fizeram partir para o Rio de Janeiro a fim de tirar satisfações com o vice-presidente da República, Francisco Rosa e Silva, “dono” da política pernambucana, desafeto seu de outros carnavais. Encontrou-o flanando na rua do Ouvidor e, após uma troca de impropérios, deu-lhe uma bengalada nos cornos, obrigando-o a refugiar-se numa chapelaria. Alguns dias depois, o Mercado do Derby foi incendiado pela polícia. De volta ao Recife, foi preso e acusado de ter causado o sinistro de olho no seguro. Levado à falência, com o casamento arruinado com a senhora Anunciada Falcão, decide vingar-se do governador Segismundo Gonçalves, raptando-lhe a filha menor Carmela Eulina. Foge com ela para Alagoas, onde fixa-se na cidade de Água Branca, sob a proteção das famílias Torres e Luna.

De volta à ativa, verdadeiro rei das peles, recupera-se rapidamente e vai morar num sítio da cidade de Pedra, ao lado da cachoeira de Paulo Afonso. Consegue do governador alagoano, permissão para construir uma hidrelétrica, uma fábrica de linhas, uma vila operária, uma ferrovia e vários quilômetros de estrada pavimentada. Estava criada a Fábrica da Pedra que, favorecida pelo ambiente político-econômico da primeira guerra mundial, chegou a empregar duas mil pessoas, tornando-se a primeira indústria brasileira a produzir linhas de costura e fios industriais. Exportava para toda a América Latina um produto genuinamente nacional, com preços menores que os praticados pelo fabricante concorrente, a Machine Cotton, dona da marca Linhas Correntes.

O sertão virou um jardim. Luz elétrica, máquina de gelo, telégrafo, escola, cinema, tipografia, banda de música, pomares, hortas, guarda privada, escritórios, garantia de direitos trabalhistas três décadas antes de Getúlio promulgar a CLT e regulamento pra tudo – tinha até uma norma que multava quem cuspisse no chão da linda, limpa, sossegada, trabalhadora e esperançosa Vila da Pedra. Suas 250 casas distribuídas entre as ruas Rio Branco, José de Alencar, Floriano Peixoto, Ruy Barbosa, 13 de Maio, 15 de Novembro e 7 de Setembro foi o sonho e orgulho do povo nordestino que tem em Padre Cícero seu símbolo de fé, em Virgulino Ferreira, seu símbolo de valentia e em Delmiro Gouveia, seu símbolo maior da dedicação ao trabalho.

Porém, numa noite quente e abafada, dessas comuns no sertão, estava no alpendre da sua casa a ler uma gazeta, quando, por instantes, a vila fica sem energia. Nos depoimentos à justiça, alguém falou que viu um vulto passar com um lampião a querosene na frente da casa e que depois ouvir dois tiros e quando a força voltou, Delmiro estava caído com um ferimento bem em cima do coração. Enterrado no dia seguinte, chorou o poeta os seguintes versos: Quando o enterro de Delmiro/Foi pela rua passando/Parece que a gente ouvia/A cachoeira chorando”. Dois mequetrefes, após várias sessões de espancamento, foram acusados e sentenciados. Um tentou fugir mas, o mataram. O outro, indultado, recebeu emprego no serviço público, tempos depois. E a coisa terminou por aí: Vingança de ex-funcionários demitidos, foi o decreto. Mas, o que aconteceu foi que os ingleses, após arrematarem o espólio, fecharam a fábrica, desativaram a vila, mandaram quebrar todas as máquinas e os pedaços jogados no fundo do Velho Chico para todo o sempre amém… Para honra e glória do santo e sagrado monopólio estrangeiro. 


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