O Coronel dos Coronéis
O
Sertão está em toda parte
Guimarães
Rosa
Era
uma vez, nas brenhas do sertão nordestino, um cavalariano, de
família importante, chamado Delmiro Porfírio, o Belo –
moço casado e pai de cinco filhos. Tocando sua tropa de cavalos, lá
pras bandas da Paraíba, viu de longe a menina Leonila Gouveia, filha
de um poderoso coronel da região e logo se embeiçou por ela. Para
enganchá-la na garupa da sua montaria, com ela se mandar para Ipu,
no Ceará e refugiar-se na Fazenda Boa Vista, de propriedade dos
seus, foi um pulo. Três anos depois nascia – era o ano de 1863,
Delmiro Gouveia, aquele que leva o título que dá nome a este conto.
Pressionado pela família da moça, Belo não viu escapatória
senão alistar-se nos Voluntários da Pátria e partir para o
Paraguai, onde, numa emboscada, lhe partiram o crânio em dezembro de
1867. Leonila, de déu em déu, chegou ao Recife e foi trabalhar de
doméstica na casa de um advogado. Em 1877, na noite anterior à sua
morte, o patrão aceitou-a em casamento.
Com
uma herança desta nas costas, o jovem Delmiro tinha mesmo que ganhar
o mundo, partindo de baixo para cima. Foi tipógrafo, funcionário de
ferrovia (chegou a chefe de estação), mascate, despachante de
barcaças e, por fim, negociante de couros de cabra e bode. Fundou a
Casa de Comércio Delmiro & Cia, quando tinha apenas 33 anos de
idade. Graciliano Ramos assevera na crônica “Recordações de uma
Indústria Morta”, constante do livro Viventes
das Alagoas: “Conheceu todos os segredos do ofício,
adquiriu tanta habilidade que poderia, segundo afirmam os tabaréus,
esfolar uma cabra viva sem que ela percebesse que estava sendo
esfolada”. Mas a vida ainda reservava muitas loas para alguém
que mal sabia escrever o nome mas se comunicava muito bem em
português, inglês e francês.
Estabelecido
no Recife conseguiu, com aliados políticos locais, construir o
primeiro shopping center do Brasil, o Mercado do Derby – uma área
de quase 2500 m2, totalmente abastecida com energia elétrica e um
sistema de esgoto eficiente. Possuía 18 portões, 112 janelas, 264
boxes (todos com balções de mármore) onde, de dia, se vendia
hortaliças e verduras, e à noite revelava-se um mundo de
entretenimento e diversão (barracas de prendas, cinema, carrosséis,
teatro, retretas…) que contava ainda com um elegante Restaurante e
um luxuoso Hotel (onde se chegava de barco, vindo direto do porto da
cidade, pelo leito do Capibaribe). Um verdadeiro encanto de
modernidade no final dos oitocentos. Tinha até velódromo para
ciclismo. Mas a medida que sua fama crescia os inimigos não lhe
davam tréguas. Concorrentes políticos e econômicos tramavam
abertamente contra seu sucesso e influência.
Estas
tramoias o fizeram partir para o Rio de Janeiro a fim de tirar
satisfações com o vice-presidente da República, Francisco Rosa e
Silva, “dono” da política pernambucana, desafeto seu de outros
carnavais. Encontrou-o flanando na rua do Ouvidor e, após uma troca
de impropérios, deu-lhe uma bengalada nos cornos, obrigando-o a
refugiar-se numa chapelaria. Alguns dias depois, o Mercado do Derby
foi incendiado pela polícia. De volta ao Recife, foi preso e acusado
de ter causado o sinistro de olho no seguro. Levado à falência, com
o casamento arruinado com a senhora Anunciada Falcão, decide
vingar-se do governador Segismundo Gonçalves, raptando-lhe a filha
menor Carmela Eulina. Foge com ela para Alagoas, onde fixa-se na
cidade de Água Branca, sob a proteção das famílias Torres e Luna.
De
volta à ativa, verdadeiro rei das peles, recupera-se
rapidamente e vai morar num sítio da cidade de Pedra, ao lado da
cachoeira de Paulo Afonso. Consegue do governador alagoano, permissão
para construir uma hidrelétrica, uma fábrica de linhas, uma vila
operária, uma ferrovia e vários quilômetros de estrada
pavimentada. Estava criada a Fábrica da Pedra que, favorecida pelo
ambiente político-econômico da primeira guerra mundial, chegou a
empregar duas mil pessoas, tornando-se a primeira indústria
brasileira a produzir linhas de costura e fios industriais. Exportava
para toda a América Latina um produto genuinamente nacional, com
preços menores que os praticados pelo fabricante concorrente, a
Machine Cotton, dona da marca Linhas Correntes.
O
sertão virou um jardim. Luz elétrica, máquina de gelo, telégrafo,
escola, cinema, tipografia, banda de música, pomares, hortas, guarda
privada, escritórios, garantia de direitos trabalhistas três
décadas antes de Getúlio promulgar a CLT e regulamento pra tudo –
tinha até uma norma que multava quem cuspisse no chão da linda,
limpa, sossegada, trabalhadora e esperançosa Vila da Pedra. Suas 250
casas distribuídas entre as ruas Rio Branco, José de Alencar,
Floriano Peixoto, Ruy Barbosa, 13 de Maio, 15 de Novembro e 7 de
Setembro foi o sonho e orgulho do povo nordestino que tem em Padre
Cícero seu símbolo de fé, em Virgulino Ferreira, seu símbolo de
valentia e em Delmiro Gouveia, seu símbolo maior da dedicação ao
trabalho.
Porém,
numa noite quente e abafada, dessas comuns no sertão, estava no
alpendre da sua casa a ler uma gazeta, quando, por instantes, a vila
fica sem energia. Nos depoimentos à justiça, alguém falou que viu
um vulto passar com um lampião a querosene na frente da casa e que
depois ouvir dois tiros e quando a força voltou, Delmiro estava
caído com um ferimento bem em cima do coração. Enterrado no dia
seguinte, chorou o poeta os seguintes versos:
“Quando
o enterro de Delmiro/Foi pela rua passando/Parece
que a gente ouvia/A
cachoeira chorando”.
Dois
mequetrefes, após
várias sessões de espancamento,
foram acusados e
sentenciados. Um
tentou
fugir mas,
o mataram.
O
outro, indultado,
recebeu emprego no serviço público, tempos depois. E
a coisa terminou
por aí: Vingança
de ex-funcionários demitidos,
foi o
decreto.
Mas, o
que aconteceu foi
que os
ingleses, após arrematarem
o espólio, fecharam
a fábrica, desativaram
a vila,
mandaram
quebrar
todas as máquinas e
os pedaços jogados no fundo do Velho
Chico
para
todo o sempre amém… Para
honra e glória do santo e
sagrado
monopólio estrangeiro.
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