sábado, 5 de dezembro de 2015

Escroque Empareda Síndica

Paulo Autran, Terra em Transe, 1967



Tudo é real porque tudo é inventado
Guimarães Rosa

Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas;
Hoje, os idiotas pensam pelos melhores.
Criou-se uma situação realmente trágica:
Ou o sujeito se submete ao idiota
Ou o idiota o extermina”
Nelson Rodrigues


Conhecido bandido e contraventor, oriundo da zona do baixo meretricio, batedor de carteira contumaz, chantagista notório, cafajeste e falso moralista nas horas vagas, após ser flagrado por deus e todo mundo com mãos e pés atolado na botija do contribuinte, empreendeu uma espetaculosa tentativa de escapar a perseguição das forças legais. Acuado, num ato de extremo desespero, colocou contra o muro a síndica do Edifício Aurora - condomínio de classe média emergente na Avenida Central. Sob a mira de arma de grosso calibre, emprestada por bondosos vizinhos que alegam ter contas a ajustar com o passado, presente e futuro por conta de mágoa causada pelo padrinho da emparedada, o famigerado meliante mantém a severa, esbelta e desassombrada vovó no papel de escudo humano desde a tarde de ontem sob pretexto de salvar as almas do juízo final.

Não se sabe se por encomenda, vingança, mera jogada de marketing e compadrio, ou quem sabe diversão – dado o caráter piadista do marginal alçado à fama nesta temporada sofrível para o humor pátrio onde vicejam e dão cria as mesmas e surradas anedotas de antanho travestidas de libertadoras novidades. O fato é que o delinquente foi visto várias vezes de braços dados, rindo às despregadas, com o ex-candidato a garoto de praia e competidor no último sufrágio do paradisíaco edifício. É sabido que tal mancebo nutre um rancor doentio por conta da derrota que lhe foi impingida pelas urnas, no último sufrágio. Em todos os botecos das redondezas, por onde beberica sua costumeira batida de leite de moça com groselha braba, não há quem não saiba e comente do sonho dele de ver a rival longe da vista e da praça, por todos e quaisquer meios possíveis e impossíveis. A contida senhora se diz indignada com as acusações de maus tratos que lhe são imputadas por aquela família de assíduos protegidos pelos bambambãs da paróquia que só pensam naquilo.

Segundo apurado por esta reportagem, atiradores de elite daltônicos e com grau de miopia beirando as raias do absurdo, postados em pontos estratégicos da cidade, aguardam tão somente a ordem que de cima virá finalmente livrar a humanidade do convívio com figura tão fedida, abjeta e nefasta. Fontes fidedignas alegam que não haverá nenhum detalhe que esclareça qual deva ser de imediato o alvo, justamente para que os agentes se sintam em casa e sigam suas próprias consciências, conveniências e time do coração, conforme recomenda a portaria, devidamente registrada em cartório e com firma reconhecida, afixada na padaria da esquina por ilustres desconhecidos ciosos dos seus deveres cívicos e extraconjugais.

Em comovida declaração cheia de erros gramaticais, ketchup e muita borra de café, asseclas, cupinchas e sequazes reunidos em ordinária assembleia convocada às pressas para deliberarem quanto ao reajuste das comissões que incidem sobre as entradas e saídas de cargueiros de bandeira apócrifa nos postos e pistas seguras da orla, declaram que o líder é um bom companheiro; pai, irmão, tio, primo, cunhado e marido exemplar; que jamais deixou de honrar seus compromissos, mesmo os mais insalubres e escabrosos; que já patrocinou exuberantes e nostálgicos enredos momescos; e, por conta de um enorme coração, cheio de humilde generosidade, tem sido alvo de inveja por parte daqueles que não conseguem sustentar uma boa, singela e honrada mentira por mais de trinta segundos sem piscar. E prosseguem em arabescos nodais: “O patrão possui sim contas no exterior, não porque descreia e execre o sistema bancário nativo. Tal conduta é ditada apenas por motivos securitários, para que as frágeis e exíguas merrecas lá depositadas não sejam jamais alcançadas por mãos sequiosas do que é dos outros e possam assim cumprir finalidade precípua, ou seja, de serem usadas e abusadas tão somente na distribuição de esmolas, doações, pequenos trocos, gorjetas e, principalmente, o custeio dos nanicos e corriqueiros gastos da patroa que, a bem da verdade, convém que se diga, possui o inocente e incontrolável vício da pura, frívola e sagrada ostentação, devidamente perdoada pela congregação da qual seu marido faz parte desde que era criança pequena e já fazia das suas para gladio e louvor dos próximos e chegados”. Ao final, deixam registrado, para conhecimento da posteridade, em forma de oração, o princípio de que somente o trabalho engrandece e premia. Encerram a nota praguejando contra as malditas muralhas de Jericó que insistem em permanecer de pé a despeito de suas ladainhas e imprecações. Poeticamente clamam, finalmente, que recaia sobre as cabeças dos infiéis de todos os quadrantes, cores, tons e matizes a doce e fria vingança do iracundo deus que lhes é próprio e sobejo.

Homens e mulheres de bens que despreocupadamente levavam seus totós para o cocô diário na via pública, sentindo-se enojados com o odor acre das ruas mas que por detrás de suas lentes escusas gostam de imaginar deambularem por priscas plagas (conforme declarou o mais tímido da turma), disseram não encontrarem absolutamente nada de anormal em tal procedimento, que já estão acostumados com tal desfaçatez. - Faz parte da democracia. Além do que está previsto da constituição a luta pelos interesses particulares, ou não? Embora facínora, o sujeito em apreço é cidadão humano em pleno gozo de seus direitos inalienáveis, vociferou uma perfumada senhora após bater um inofensivo selfie, total e deliberadamente de costas para o crime. Um senhor que não quis se identificar por temer represálias, aproveitou para fazer um ligeiro protesto contra o domínio comunista das nossas instituições e dizer que sente-se deveras preocupado com a situação dos sofridos e mal pagos policiais que fazem de um tudo para desviar seus cansados punhos truculentos da cara de estudantes da escola pública do outro lado da rua que insistem em permanecer em sala de aula mesmo contra as ordens daquelas torpidades que os querem fora do prédio para que possam vender o terreno e assim fazer caixa para o próximo campeonato de pandorgas, pois é sabido que não mais contarão com dinheiro de marca ou grana de grife. – Ora, é do conhecimento até do mundo mineral que não é estudando que se aprende. Quem disse que é assim que se sobe na vida? Gritou do alto de sua profícua e longeva experiência o ancião, concluindo sem receio de qualquer desvio: - Especificamente neste caso, que ninguém nos ouça, o contraditório deve ser assegurado. Mesmo porque, com relação à alegada síndica, ainda não é possível dizer que seja inocente de todo. O meu astrólogo preferido me assegura trovejar nas redes sociais numerosos e anônimos comentários quanto a comprovada intransigência dela em relação aos malfeitos dos outros. E os principais jornais não se cansam de noticiar, está aí pra todo mundo ver e ouvir, que ela, além de fraudar, por margem ínfima e insignificante, a eleição no condomínio, perdeu toda e qualquer credibilidade por conta das pedaladas praticadas no parquinho da praça e colocar em risco a vida de criancinhas que por ali trafegam nos braços de suas cordiais babás. Isto não é coisa de mulher honesta, sair por aí, em trajes menores, montada em veículo impróprio e ainda por cima, a atrapalhar o trafego. A mim me parece tratar-se de pessoa absolutamente sem noção, que não tem o que fazer e que, ainda por cima, é intolerante com os defeitos e imperfeições da natureza humana, o que é inaceitável numa sociedade baseada na indulgente condescendência para com as crenças dos outros.

Pesquisa boca a boca realizada no entorno por fidelíssimo instituto, deu conta de que o emparedamento, prática comum e corriqueira desde a abertura dos portões do sanatório geral, por seu caráter sinistro e maldosamente orquestrado, pode ocasionar, para alegria do mercado de abobrinhas, uma queda abrupta e significativa da moeda dominante, o que possibilitaria que mais e mais famílias, de todos os sexos e profissões, possam aproveitar as adiadas férias de final de ano no Parque de Diversões do Tio Valtinho num clima gostoso de harmonia e paz.

Procurado, o vice-sindico, maganão brejeiro e pândego, não quis fazer nenhum comentário, muito pelo contrário, disse apenas em poucas, doutas e sigilosas palavras que não está, não estará, nem nunca esteve de olho da butique dela porém, de mansinho, deixou escorregar do sovaco uma planilha de reforma da fachada do edifício, patrocinada uma multinacional do ramo atacadista, poderosa predadora moderadamente esfomeada, com sói acontecer com uma companhia desse porte, largura e destreza. Disfarçadamente, para não incomodar o paquiderme que atravanca a sala, produziu uma manobra, verdadeiro golpe de cintura, típica de quem paira acima de tudo desde tempos remotos e, dificilmente conste de qualquer manual e saiu às pressas, só no sapatinho, a mamar seu maná, em sua metafórica carruagem de fogo, a cantarolar com sua voz maviosa de baixo-tenor-médio-soprano, para não acordar os minados pimpolhos encastelados no banco de trás da van, o sucesso do Paulinho da Viola, Pecado Capital, sob o olhar discretamente desconfiado do cônjuge do gênero feminino que tinha hora marcada na manicure para o check-up de praxe.

Escalado para apagar as luzes do vestíbulo assim que a poeira baixar, o guarda-noturno, ao chegar atrasado para o trabalho, fez questão de ser ouvido ali mesmo, na moita. Garantiu aos passantes e curiosos de plantão que profundas e comestíveis elucubrações entraram em curso em todos os turnos e instâncias para que solução de continuidade não afete o recesso político tampouco o bom andamento dos trabalhos que correm em segredo seletivo de justiça. E pontificou com escorreito sotaque javanês: Alea jacta est. 


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