sábado, 4 de outubro de 2014

A Primeira Refeição do Dia



Untitled 246, 
Zdistav Beksmski (1956-2005)


Agarrou-o pelos cabelos e puxou. O corpo esquelético caiu de bunda no chão. Escorado na terceira vértebra lombar pelo bico do coturno ficou sem saber se gritava pelo puxão, pela queda, pelo chute ou pela humilhação. Na dúvida, deixou que a dor rugisse e não mais se debateu. Não que estivesse rendido. Não estava. Decidira a muito que viveria mesmo que por teimosia, de pura pirraça e não seria agora que daria o gosto de vê-lo fraquejar. Não senhor, aguentaria. Mais uma vez aguentaria. “É a vida”, pensou, “cada um na sua”. E a dele nunca foi diferente. Sempre lascado. E lascado por lascado, lascado inteiro. Só faltava uma coisa: um berro. Não um berro qualquer, mas um berro de responsa, importado, daqueles cujas balas, em vez de abrir um buraco, explodem em mil pedaços a cabeça do sujeito. Ao menos assim teria uma chance. Porque é foda não ter uma chance.
– Entra aí, vamos dar um passeio.
Por pouco, por tão pouco… Uma questão de passos… Se tivesse alcançado o outro lado da rua… Se aquela moto não tivesse entrado na história… Se, se, se…
– É, vamos levar a criança pro parque de diversão.
A merda dessas situações é que você sabe o que te aguarda e mesmo assim, paga pra ver. Afinal tudo é possível. Nada se parece com o fim. O fim é sempre desconhecido. E por isso tudo pode acontecer: os caras podem mudar de ideia; o carro pode capotar; um avião, um raio… Um meteoro pode cair. Que tal uma nave espacial descer e abduzir todo mundo? Ou um super-herói que, pra cumprir a missão do dia, o salve no último minuto? Até Deus pode intervir. Taí, por que Deus não intervém? “Te desafio: faça este carro derrapar e cair num precipício. Mate estes dois filhos da puta e me deixe viver. Mas antes me responda uma coisa: quem foi o desgraçado que deu autoridade pra estes putos fazerem o que fazem com neguinho que nem eu? Estas bostas não merecem a comida que engolem e cagam: roubam, matam, estupram e de noite vão ao culto com mulher e os filhos. Miseráveis espalhadores de inferno. Todos teus servos, senhor. Armados e loucos. Tudo não é feito em teu nome? Sabes disto melhor que eu, que não inventei o mal deste mundo. Que sou apenas o efeito. Da nossa semelhança. Mas não vou te culpar por nada do que me acontece. Sou homem, tenho responsabilidade. E digo: só por sadismo justifico todas as porradas que levei e que ainda levarei nesta latrina que é minha vida. Só pelo prazer da dor justifico não ter me tornado humano, igual aos que vejo no cinema, na televisão, nas revistas, todos sorridentes, cheios de saúde, de alegria, de futuro… Só por um ódio profundo de mim, me nego o futuro. Mas, não: quero acreditar que na próxima curva o pneu desta viatura vai estourar e aí o careca perderá o controle e o carro rolará ribanceira abaixo se espatifando lá no fundo do buraco envolto num mar de chamas. Vamos, Deus, faça o teu abracadabra. Do resto cuido eu”.
– Você acredita em vampiro?
“Que porra é essa? Tiro, facada, fogo, veneno, os cambaus… Tudo bem, a gente sabe donde vem, o que é e pronto, mas isso, que papo é esse? Se quer me assustar, parabéns, conseguiu. Porque de todas as porras que enfiam na cabeça da gente esta faz tremer as bases. Esse negócio de vampiro cheira a sexo. O que este cara está insinuando? Puta merda, é melhor morrer. Ah, se uma bomba atômica caísse sobre nossas cabeças agora. Pra não sobrar nem pensamento. Tudo, tudo menos isto”.
– Falei com você, merdinha: acredita ou não? O veículo para. – Vem cá, vou te mostrar uma coisa.
– Desce, grita o segundo.
“Pra que se dá ao trabalho de dizer desce se me arrasta pra fora e me joga contra um muro numa quebrada escrota no fim do fim do mundo”?
– Encosta aí. E o golpe do cassetete rasga o canto esquerdo da sua boca seca. Um filete de sangue ralo escorre. Os olhos do polícia que lhe oprime o peito ficam de repente injetados, rubros. Com sede, os dois homens da lei, salivam diante da primeira refeição do dia.


2 comentários:

  1. Muito profundo, real e chocante! Nos remete à reflexão e posteriormente, de preferência, à ação. Atitude é o que tem feito muita falta.... bjs Paul!!!!

    ResponderExcluir