sábado, 6 de julho de 2013

O Saque


Cartaz da peça O Médico e o Monstro, RJ 2013



Mil e quinhentos. Foi quanto sacou no caixa eletrônico próximo à saída oeste do Conjunto Nacional. Riu da ousadia. Daria a si mesma um jantar. Ou uma calça ou um par de botas ou um computador. Pagaria algumas dívidas? E correu para a saída. Não que fugisse de alguém – quem estaria à sua procura? Apenas aquela quantia e a sensação de vulnerabilidade. Desconforto. Disse a si mesma, ao dobrar a esquina cega aos que se movimentavam na direção contrária, que o melhor estaria por vir. E veio. Poderia ter evitado o choque, disse um anônimo.

Quem poderia pensar que desejaria o fim daquela tarde? Mal tinha começado aquela inesperada aventura, caída no seu colo, assim do nada, no chão, ao lado do balcão, na livraria onde retirara a oitava edição de Emergências Clínicas – Abordagem Prática, presente do tio. Há quem se importe com o fim quando se entra num túnel guiado pelo gostinho atrevido de transgressão? Mas existe o fim. E o fim quase sempre é irônico, ainda mais quando acontece em pleno congestionamento às cinco horas da tarde diante de um anestesiado motobói. 

Agarrada à bolsa deixava-se levar e mal teve tempo para perceber que havia sido capturada pelo improvável. Colhida em plena degustação da façanha, mal teve tempo de imaginar o que diria em casa quando a mãe lhe perguntasse se havia jantado.

O corpo estatelou a avenida. Primeiro um voo rasante sobre um casal que se beijava na calçada oposta, depois uma curva como que impelida por força misteriosa que decidiu proteger as frutas e as flores expostas na entrada da mercearia ao lado. Os olhos, ainda úmidos com uns poucos restos de lágrimas, teimaram em ficar parados na boca aberta da bolsa vasculhada por vento alegre. Cédulas frias de cinquenta e cem esvoaçaram por ali, por lá, por acolá... Uma ou outra caíram na calçada e uma criança riu quando conseguiu se lembrar do nome do desejado videogame.

Naquele ponto da cidade o universo parou. E alguém chorou a partida. Vida e dinheiro entrelaçadas, alguém pensaria. O que ninguém sentiu foi a sensação de desânimo que acometeu aquele passante quando, ao entrar no bar e pedir um café, deu por falta da carteirinha onde zelosamente guardava o cartão de banco. E mais: o completo desamparo, a sensação de abandono e a leve raiva que sentiu de si por não ter cedido ao impulso de jogar fora o papelucho amarelo com as seis letras que abrira seu flanco ao desconhecido, três meses atrás. Tolo, inteiro tolo. E não voltou ao trabalho. Desceu à avenida em direção ao quarto e trancou-se até conseguir contar a si mesmo o que tinha de fato acontecido. Teve que inventar grande parte, inclusive o final – espécie de vingança poética. O que lhe restava. Não sabia como nem onde nem quando perdera. Bem, são favas que se contam. E pra que contar se se deu mole pro bandido, oportunos malandros que aguardam locupletar-se? A fortuna é volúvel e nunca aparece no mesmo lugar duas vezes, é o que comentam os espertos. Por toda parte: incógnitos, impessoais... No troco mal dado, na omissão das desvantagens, na clausula insignificante no contrato, na ausência de recibo, na nota fria, no “vai que cola” contínuo e assíduo que rege as relações onde o ônus destina-se ao outro para que o santo bônus permaneça sempre no nosso bolso. É a selva, dizem-me os cínicos, a lei da selva. Sobreviva. E nunca, nunca deixe-se devorar. E se acaso fores devorado, devore na próxima. Devorador e devorado é a minha condição desde que me entenda por gente e quem é ingênuo? para deixar passar a oportunidade de um ganho extra... Ainda mais quando vem assim fácil. 


O que não é fácil é explicar à família, aos colegas, aos professores, aos amigos, o porquê de morte tão súbita. Tão jovem, retirada assim da vida... Ela que juraria não causar dano ou mal a alguém... Ela que vinha demonstrando notável virtude em meio à grande revolta que atropela as ruas aos gritos corais de “abaixo a corrupção”. Que fatalidade. Que deus permite tal coisa? alguns conjecturaram sem obter resposta ou respaldo dos mais afastados. Tantas foram as perguntas que faltou enredo para desfecho tão mágico. E o autor aguarda um sorriso lhe nascer na face.


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