Cartaz da peça O Médico e o Monstro, RJ 2013
Mil e
quinhentos. Foi quanto sacou no caixa eletrônico próximo à saída
oeste do Conjunto Nacional. Riu da ousadia. Daria a si mesma um
jantar. Ou uma calça ou um par de botas ou um
computador. Pagaria algumas dívidas? E correu para a saída. Não
que fugisse de alguém – quem estaria à sua procura? Apenas aquela
quantia e a sensação de vulnerabilidade. Desconforto. Disse a si
mesma, ao dobrar a esquina cega aos que se movimentavam na direção
contrária, que o melhor estaria por vir. E veio. Poderia
ter evitado o choque, disse um anônimo.
Quem
poderia pensar que desejaria o fim daquela tarde? Mal tinha começado aquela inesperada aventura, caída no seu colo, assim do nada, no chão, ao
lado do balcão, na livraria onde retirara a oitava edição de
Emergências Clínicas – Abordagem Prática, presente do tio. Há
quem se importe com o fim quando se entra num túnel guiado pelo
gostinho atrevido de transgressão? Mas existe o fim. E o fim quase
sempre é irônico, ainda mais quando acontece em pleno
congestionamento às cinco horas da tarde diante de um anestesiado motobói.
Agarrada
à bolsa deixava-se levar e mal teve tempo para perceber que havia
sido capturada pelo improvável. Colhida em plena degustação da
façanha, mal teve tempo de imaginar o que diria em casa quando a mãe
lhe perguntasse se havia jantado.
O corpo
estatelou a avenida. Primeiro um voo rasante sobre um casal que
se beijava na calçada oposta, depois uma curva como que impelida por
força misteriosa que decidiu proteger as frutas e as flores expostas na entrada da mercearia ao
lado. Os olhos, ainda úmidos com uns poucos restos de lágrimas, teimaram em ficar parados na boca aberta da bolsa vasculhada por vento alegre. Cédulas frias de cinquenta e cem esvoaçaram por ali, por lá,
por acolá... Uma ou outra caíram na calçada e uma criança riu
quando conseguiu se lembrar do nome do desejado videogame.
Naquele
ponto da cidade o universo parou. E alguém chorou a partida. Vida e
dinheiro entrelaçadas, alguém pensaria. O que ninguém sentiu foi a
sensação de desânimo que acometeu aquele passante quando, ao
entrar no bar e pedir um café, deu por falta da carteirinha onde
zelosamente guardava o cartão de banco. E mais: o completo
desamparo, a sensação de abandono e a leve raiva que sentiu de si por não ter cedido ao impulso de jogar fora o
papelucho amarelo com as seis letras que abrira seu flanco ao
desconhecido, três meses atrás. Tolo, inteiro tolo. E não voltou ao trabalho. Desceu à
avenida em direção ao quarto e trancou-se até conseguir contar a
si mesmo o que tinha de fato acontecido. Teve que inventar grande
parte, inclusive o final – espécie de vingança poética. O que
lhe restava. Não sabia como nem onde nem quando perdera. Bem, são favas que se contam. E pra que contar se
se deu mole pro bandido, oportunos malandros que aguardam locupletar-se? A fortuna é volúvel e
nunca aparece no mesmo lugar duas vezes, é o que comentam os
espertos. Por toda parte: incógnitos, impessoais... No troco mal dado,
na omissão das desvantagens, na clausula insignificante no
contrato, na ausência de recibo, na nota fria, no “vai que cola”
contínuo e assíduo que rege as relações onde o ônus destina-se
ao outro para que o santo bônus permaneça sempre no nosso bolso. É
a selva, dizem-me os cínicos, a lei da selva. Sobreviva. E nunca,
nunca deixe-se devorar. E se acaso fores devorado, devore na próxima.
Devorador e devorado é a minha condição desde que me entenda por
gente e quem é ingênuo? para deixar passar a
oportunidade de um ganho extra... Ainda mais quando vem assim fácil.
O que não
é fácil é explicar à família, aos colegas, aos professores, aos
amigos, o porquê de morte tão súbita. Tão jovem, retirada assim da vida... Ela que juraria não causar dano ou mal a alguém... Ela que vinha demonstrando notável virtude
em meio à grande revolta que atropela as ruas aos gritos corais de “abaixo
a corrupção”. Que fatalidade. Que deus permite tal coisa? alguns
conjecturaram sem obter resposta ou respaldo dos mais afastados.
Tantas foram as perguntas que faltou enredo para desfecho tão
mágico. E o autor aguarda um sorriso lhe nascer na face.
Belo e sensível conto sobre as vicissitudes da cidade grande.
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