sábado, 13 de julho de 2013

O Homem que Ressuscitou a Morte



O Sétimo Selo, Dir. de Ingmar Bergman, 1956



Quinhentos anos. Já não lembrava da magia que usara. Teria sido mágica, a escolha? A motivação, esquecera. O motivo de aceitá-la. A imortalidade. Amor ou necessidade, ideal ou covardia, medo qual? Sabia que estava feito. Enquanto ele, cansado e eterno, entediado de partidas. Todavia. De acompanhar tudo e todos. Todas as lembranças. Sem exceção à regra. De possuir a si o tempo todo mesmo que ainda e apesar. A troco, tal poder de sobrevivida? Merecimento de que, burlar a própria morte? Eliminando-a. Não a extinguira, ele mesmo? Recorda. E volta cada instante. A cada vez que finge-se de morto volta-lhe lembrança e o tormento. Que nem cicatriz. Ali, esculpida. Na alma. O fato, o acontecido. Aquela primeira escolha.

Quinhentos anos. O forro da poltrona já mudara de cor e forma tantas vezes. Repetidas e incontáveis vezes. Quantos modos assumira, de quantos jeitos a dispusera até chegar àquele estado, relativo conforto? Havia sumido aquela ponta de mola incomoda, sim. Tão dura. A cutucar-lhe: tal lâmina, tal sangue, tal morte e coisa e tal. Enquanto permanece ali, sentado. Mais um tanto. Mais um pouco. Fica. Um pouco ainda tanto. Só. Uma eternidade.

Urgente encontrá-la. Ressuscitá-la. Oferecer à vida qualquer sentido. Mas qual? Além das baionetas, dos fuzis, das ogivas, dos morteiros, dos obuses, dos balaços da polícia, das guerras químicas, das prisões ilegais, das torturas, dos vírus artificiais, da fome, das rodas dos automóveis, da fumaça, das cidades asfixiantes, do gosto incerto da comida rápida, do desemprego, dos ambientes doentios, mas massas comandadas, das drogas, da violência gratuita, da banalização, da insensatez, da barbárie, da intolerância, das condições precárias, da miséria, das brigas de transito, das crises conjugais, das vinganças frias, dos genocídios, dos ciúmes, das paranoias, dos complexos psicológicos, das teorias conspiratórias, das escravidões, das servidões, do sadismo, da opressão, dos preconceitos, da arrogância dos juízes, da insolência dos burocratas, dos dogmas religiosos, das traições, das calúnias, da infâmia, da vergonha, do vexame, da injúria, da indignidade...

Em qual rumo seria a morte encontrada? Teria que cometer novamente o mesmo crime, quantas vezes? Teria que produzir a mesma desgraça, pecar novamente contra o sagrado, buscar a maior de todas as aviltações, envilecer, degradar e degradar-se a um outro ponto sem retorno? Humilhar-se-ia outra vez no mesmo sacrifício? Devolveria a César o que seria de César e à esperança vácuo? Mas qual, qual injúria inda não cometera? Para que a roda rodasse e um novo sinal fosse exposto às testas e dele não restasse outro que não fosse pó. De qual ultraje novamente surgiria? Profunda afronta virginal sentença, fecunda teoria, outro teorema, outra teologia... Que outra justiça nos permite nosso senso enviesado de justiça. Trazer luz à luz, fazer surgir dentro da noite um outro dia, um outro sol, outro poema acontecido para o não sempre amém.


Um poema sucedido de eras. Um inventado poema distante de toda rima. Por novo, de novamente, de outro. Modo. À maneira de um poema longo, longo quanto estes 500 vividos. Onde não existisse nenhuma alegria que não fosse morrer. Porém, uma morte decente, a morte que nos compete, a morte que desejamos, a morte que queremos. Não aquelas outras mortes, a legislativa, a judiciária ou a executiva. Estas mortes que nos impomos. Uma só morte apenas. Singela e natural morte. Tal qual um cair de folha em plena manhã de outono. Um cessar de tudo quanto os antigos artigos contam. Um sumiço. Um sumiço abrupto, sem remorso e sem censura. Sem choro nem vela. Simples, que nem palavra amável. Que ao dizê-la, acabe. Com tudo e embora. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário