O Sétimo Selo, Dir. de Ingmar Bergman, 1956
Quinhentos
anos. Já não lembrava da magia que usara. Teria sido mágica, a
escolha? A motivação, esquecera. O motivo de aceitá-la. A
imortalidade. Amor ou necessidade, ideal ou covardia, medo qual?
Sabia que estava feito. Enquanto ele, cansado e eterno, entediado de
partidas. Todavia. De acompanhar tudo e todos. Todas as lembranças.
Sem exceção à regra. De possuir a si o tempo todo mesmo que ainda
e apesar. A troco, tal poder de sobrevivida? Merecimento de que,
burlar a própria morte? Eliminando-a. Não a extinguira, ele mesmo?
Recorda. E volta cada instante. A cada vez que finge-se de morto
volta-lhe lembrança e o tormento. Que nem cicatriz. Ali, esculpida.
Na alma. O fato, o acontecido. Aquela primeira escolha.
Quinhentos
anos. O forro da poltrona já mudara de cor e forma tantas vezes.
Repetidas e incontáveis vezes. Quantos modos assumira, de quantos
jeitos a dispusera até chegar àquele estado, relativo conforto?
Havia sumido aquela ponta de mola incomoda, sim. Tão dura. A
cutucar-lhe: tal lâmina, tal sangue, tal morte e coisa e tal.
Enquanto permanece ali, sentado. Mais um tanto. Mais um pouco. Fica.
Um pouco ainda tanto. Só. Uma eternidade.
Urgente
encontrá-la. Ressuscitá-la. Oferecer à vida qualquer sentido. Mas
qual? Além das baionetas, dos fuzis, das ogivas, dos morteiros, dos
obuses, dos balaços da polícia, das guerras químicas, das prisões
ilegais, das torturas, dos vírus artificiais, da fome, das rodas dos
automóveis, da fumaça, das cidades asfixiantes, do gosto incerto da
comida rápida, do desemprego, dos ambientes doentios, mas massas
comandadas, das drogas, da violência gratuita, da banalização, da
insensatez, da barbárie, da intolerância, das condições
precárias, da miséria, das brigas de transito, das crises
conjugais, das vinganças frias, dos genocídios, dos ciúmes, das
paranoias, dos complexos psicológicos, das teorias conspiratórias,
das escravidões, das servidões, do sadismo, da opressão, dos
preconceitos, da arrogância dos juízes, da insolência dos
burocratas, dos dogmas religiosos, das traições, das calúnias, da
infâmia, da vergonha, do vexame, da injúria, da indignidade...
Em qual
rumo seria a morte encontrada? Teria que cometer novamente o mesmo
crime, quantas vezes? Teria que produzir a mesma desgraça, pecar
novamente contra o sagrado, buscar a maior de todas as aviltações,
envilecer, degradar e degradar-se a um outro ponto sem retorno?
Humilhar-se-ia outra vez no mesmo sacrifício? Devolveria a César o
que seria de César e à esperança vácuo? Mas qual, qual injúria
inda não cometera? Para que a roda rodasse e um novo sinal fosse
exposto às testas e dele não restasse outro que não fosse pó. De
qual ultraje novamente surgiria? Profunda afronta virginal sentença,
fecunda teoria, outro teorema, outra teologia... Que outra justiça
nos permite nosso senso enviesado de justiça. Trazer luz à luz,
fazer surgir dentro da noite um outro dia, um outro sol, outro poema
acontecido para o não sempre amém.
Um poema
sucedido de eras. Um inventado poema distante de toda rima. Por novo,
de novamente, de outro. Modo. À maneira de um poema longo, longo
quanto estes 500 vividos. Onde não existisse nenhuma alegria que não
fosse morrer. Porém, uma morte decente, a morte que nos compete, a
morte que desejamos, a morte que queremos. Não aquelas outras
mortes, a legislativa, a judiciária ou a executiva. Estas mortes que
nos impomos. Uma só morte apenas. Singela e natural morte. Tal qual
um cair de folha em plena manhã de outono. Um cessar de tudo quanto
os antigos artigos contam. Um sumiço. Um sumiço abrupto, sem
remorso e sem censura. Sem choro nem vela. Simples, que nem palavra
amável. Que ao dizê-la, acabe. Com tudo e embora.
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