domingo, 7 de março de 2010

A Tal Sincronicidade

Abelardo Mariano era um sujeitinho barrigudo e xexelento que costumava sair pelas esquinas alardeando grandeza pelo simples fato de um dia, lá pelos idos dos 60, ter apertado a mão do filólogo Jânio Quadros, então candidato a presidente da república, em campanha na hoje quase extinta Vitória da Conquista, numa tarde enquanto folgava na Confeitaria Gato Preto, na Praça XV de Novembro, descansando seus doloridos pés de mais um dia de andanças e contradanças na qualidade caixeiro viajante da Matos & Cairo, grande distribuidora nordestina de artigos para armarinhos, papelaria e conveniências domésticas.

Digo era, porque o nosso Abelardo tomou jeito, fez uma dieta, parou de fumar, de beber, mudou de emprego, de profissão, arrumou outra mulher, novas crenças e hoje mora num pedacinho de chão, lá prás bandas de Jacareí, comprado em 72 prestações, quitadas religiosa e regularmente com a ajuda da neopatroa, que diga-se de passagem, em comparação com a falecida, é um verdadeiro pitéu de pessoa. O sítio do Abelardo tem um quê de “eu-quero-uma-casa-no-campo” com cerquinha branca e coisa e tal. Dá gosto ver sua plantação de hortaliças, tubérculos, e dá mais gosto ainda ver sua criação de galinhas (Lembrei do Jeca Tatu de Lobato, nas páginas do Almanaque do Biotonico Fontoura, com suas galinhas e porcos todos calçados de botina, mas isto não vem ao caso). Faz um sucesso danado, por aquelas bandas e adjacências, o seu queijo de leite de cabra, sem falar nos seus licores e geléias de frutas e de flores e do incomparável pão de gergelim – iguaria de fazer a gente lamber o beiços de tão gostoso que é. Comprou um bicicleta de segunda mão, deu um trato na magrela, botou bagageiro, buzina e toca-fitas e pode ser visto pedalando, todo começo de manhã, com o cabelo ao vento (não estranhem, ele ainda tem cabelo e muito) pela pacata e progressista cidade, a entregar os seus produtos ecologicamente corretos, em lares e casas de comércio. Meio dia está de volta e aí haja rede e perfumes de flores vindo do jardim criado e cuidado por ele com um zelo digno de monge budista

Mas até chegar aí, Abelardo passou poucas e boas, pode-se dizer que comeu o pão que o demo amassou. Não que tivesse cometido algum crime hediondo ou que tivesse sido citado em algum processo cabeludo ou quem sabe sido vítima de algum despacho lançado numa encruzilhada a pedido de algum desafeto, nada disso, as poucas e boas pelas quais o Abelardo passou foi provocado por sua própria cabeça, mais precisamente por seu próprio modo de pensar. Um dia, não sei porque cargas d'água, fez um inocente comentário vingativo sobre alguém e a pessoa veio a falecer alguns dias depois. Abelardo embatucou. Deu uma geral na memória e viu que não era a primeira vez que provocava cataclismos. Janio havia renunciado, constatou. E recordou do dia e hora em que apertou, calorosamente, a mão do homem da vassoura e enxergou naqueles olhos, protegidos por óculos de grossa armação, uma certa dor despertada, um estalo, tipo quando a gente pressente que o céu está prestes a cair sobre as nossas cabeças. Daí para achar que tinha o poder de vida e morte sobre as pessoas foi um pulo. Seria mesmo? Tinha realmente aquele poder? Precisava, deus lhe perdõe, testar essa estranha capacidade. Só assim poderia, metodica e cientificamente, comprovar se, de fato, era possuidor de alguma especie de energia capaz de mudar o rumo das coisas. E partiu para encontrar a cobaia adequada para o seu jogo. Não foi dificil.

O chefe da regional leste da distribuidora estava de passagem pela cidade para averiguações e conferências. Abelardo que tinha por ele um nojento apreço, decidiu juntar o útil ao agradável. O homem não era lá muito bom do coração e vivia reclamando que sentia o seu fim se aproximando. Agia como se fosse uma caixinha de lamúrias e desaprovações, sempre de mau humor, dando tapinhas hipócritas no pobre, que continuava batendo, meio descompassado é verdade, mas ainda dando tempo e folga para que o maledeto continuasse pisando no cangote de todo mundo lá na firma. Abelardo pensou que poderia prestar um grande favor à humanidade se tal estrupício se mudasse para a terra dos pés juntos e, numa tarde, quando estavam fechando o balanço da semana, num gesto rápido e preciso, a pretexto de fazer graça com o coração do guengo, tocou-lhe nas caixas do peitos com a ponta do dedo indicador. O superior achou pouca graça e fechou a cara apesar do bajulatório abelardeano, que procurou disfarçar ao máximo sua verdadeira intenção. Três semanas depois veio a fatídica notícia: doutor Miguel Sacadura bateu com as botas, vítima de um infarto do coração, bem em frente ao Mercado Modelo, enquanto assistia à uma roda de capoeira soteropolitana e degustava, sofregamente, um suculento e afrodisíaco abará.

Podem imaginar como Abelardo se sentiu? Pois é, provada a sua tese, descabelou-se em desespero. Passou a usar luvas grossas e a nunca mais olhou nos olhos de ninguém, tampouco se atreveu a fazer qualquer comentário a respeito de nadica de nada, fosse sobre quem fosse, com um medo pavoroso de provocar uma catástrofe no curso da história. E se viessem a descobrir que era ele o culpado de tantas mortes e desastres, naturais e artificais, que vinham acontecendo pelo mundo e se alastrando como uma onda indicadora dos finais dos tempos? Passou a desconfiar que até o seu pensamento podia romper as linhas do destino e foi aí que, após esta epifânica e matemática constatação, decidiu isolar-se de tudo e de todos. Pediu as contas e sumiu no oco do mundo sem deixar um bilhete ou uma pista siquer. Sua peregrinação o levou a diversos lugares dito santos, na esperança de purgar-se e obter livramento de tão demoníaco poder. Passou pela India, pela Grécia, Montes Atos, Portugal, Espanha, São Luiz do Paraitinga, Cajamar, Aparecida do Norte, Ceilândia, São Tomé das Letras, Corumbá e Mossoró, até que numa dessas curvas e diagonais que o mundo faz, foi parar num piquenique que uma comunidade neo-ripe-pentecostal-do-reino-da-paz-now-e-agora realizava no Sesc Itaquera, na zona leste da capital paulista, e quando pensou que não, num ritual de franqueza abriu seu coração e soltou todo o verbo aprisionado nesses anos todos de medo, fuga, desesperança, busca e procura. A turma o fez sentir-se em casa, cada um (e eram muitos, uns treze, catorze no máximo) com uma história mais escabrosa para contar, porém imbuídos de uma única certeza a motivá-los nessa jornada de incertezas e caos, a de que só o amor constrói. Abelardo foi às lágrimas quando, um a um, se achegaram a ele e pediram, encarecida e alegremente, que lhes tocasse a testa, pois se tinha adquirido a consciência do seu poder de matar era chegada a hora de revertê-lo e transformá-lo num toque de vida, afinal para todo e qualquer mortal sempre é chegada a hora exata da ressurreição. É isso, é isso, Abelardo disse, porque não pensei nisto antes? E, não só tocou as frontes como abraçou-se com os seus novos pares num amplexo cósmico de redenção e retorno a tudo que há de bom e de positivo neste mundo. Aproveitou a onda e mandou ver um grande e cinematógrafico beijo na boca da santinha que hoje vive com ele e com quem acabou se casando de papel passado e tudo. Esta moça, experimentada e esperta que é nas artes bruxísticas, cabalísticas e sensuais, virou e mexeu meio mundo até encontrar as ervas e os encantamentos que propiciaram o expurgo do velho e o nascimento do novo Aberlardo. Evoé, Baco!

Só de fuleiragem, no último encontro que tive com ele, falei do raiva que me havia provocado o quase eterno ministro genérico da saúde e atual governador ausente, responsável pela sanção da fascista lei antifumo no estado. E sem nenhum pudor, confessei que, várias vezes, disse em alto e em bom som para quem quisesse ouvir, que o do Serra estava guardado. Abelardo me fuzilou com aqueles dois olhos em brasa de veterano em altas sapiências esótericas deixando-me avec une puce à l'oreille. Será que aquele tal poder nascia agora em mim? Fiz, ali mesmo, um rápido apanhado na memória e lembrei que em 1983, na única vez em que fui entrevistado por um canal de televisão, o repórter me pediu que dissesse, em pleno Viaduto do Chá, quem, na minha opinião, deveria ser o indicado por Franco Montoro para ocupar a prefeitura da cidade de São Paulo. De bate pronto, tascei Mario Covas e, para minha surpresa, alguns dias depois o homem estava empossado. Embora Abelardo tenha me assegurado que tudo isto é bobagem, é pura e mera coincidência, que eu devia limpar a alma destas bestagens, não pude deixar de ficar bastante e sentidamente preocupado. Sim, porque o sujeito está mal nas pesquisas, sua curva de tendência só tem declinado e, se as coisas continuarem no pé em que estão, com o Aécio dizendo não vou, não vou e pronto, inda mais agora que as Gerais inteira, em ovação, proclamaram seu voto, é quase certo que só lhe sobrará o janístico recurso antes mesmo de ter sido.

Um comentário:

  1. Amigo a lei fascista e inconstitucional, vigora aqui também. E que tal levarmos o Abelardo para uma boa temporada em Brasília?

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