sexta-feira, 5 de março de 2010

Carta ao Clero

Ao meu guia e amigo, Potentoso Cardeal Zatonio Laud.

Salve, salve, digníssimo primaz da Igreja Alfrediana Davoltense de Calçado e adjacências, mecenas resoluto e assíduo, patrocinador oficial e vitalício da Irmandade Itabiriana de Aproximação entre os Povos de todas as Raças, Sexos, Credos, Paixões Etílicas, Futebolísticas e Anexos, salve!

Antes de mais nada, deo gratia. A providência foi generosa em atender minhas inúmeras, incansáveis e recorrentes preces. Finalmente encontrei o bispo a quem posso me queixar.

Venho perante os olhos e coração de tão profíqua Eminência, na esperança de que, a vossa mente, purificada nos páramos da sublimidade, possa promover e derramar, sobre nós, pobres mortais, uma nesga da cintilante luz que aclara e elucida as mais cavilosas e inextricáveis questões.

Para tanto, passo a expor, nestas mal traçadas linhas, um pequeno exemplo da fuleiragem humana porém, monumentosa patada nos mais sagrados princípios norteadores da jornada épica e, porque não dizer, civilizatória da humanidade em busca de melhores dias, onde nos vejamos, finalmente, livres das frases de duplos sentidos.

Data Venia, trata de algo um tanto escabroso, fedegoso, sideral e esotérico, algo assaz perturbador que, para o meu desespero e desassossego, nos últimos dias, tem me impedido de desfrutar do venerável cochilo, de hora e meia, após o frugal almoço.

Até onde vai o cinismo humano, Santidade? Até onde pretendem chegar aqueles que, com suas mentes empocalhadas pelo instinto vil e sanitariamente deploráveis, nos incensam com suas cabalísticas loas na premeditada intenção de nos fazer desejar coisas as quais absolutamente prescindimos, às vezes e quase sempre apelando para as mais baixas e ignominiosas artimanhas.

Parenteses: Viu que lançaram uma cerveja com o injuriado nome de Devassa? Isto é lá nome de cerveja? No máximo, a gente aceita como nome de cachaça, daquelas bem xexelentas. Que aliás, já provei. A danada desceu que nem tropa de elite fazendo o maior furdunço no meu outrora aguerrido esôfago. Já avisei a todos os meus chegados que esqueçam, me incluam fora dessa, nem cogitem arrastar minha pessoa para festa onde essa indesejada esteja sendo servida. Ademais, já pensou, lá em casa, eu, refestelado no sofá, em dia de disputa pelotista, solicitar gentilmente à patroa: Linda, me trás aí uma Devassa? Pega mal. Ou, na costumeira rodada de toda sexta-feira, vociferar: solta aí uma Devassa estupidamente gelada! Vou criar uma antinomia capaz de paralisar o mais serelepe garçon. Para nosso regozijo, o comercial que a propagandeava foi retirado de circulação, claro que sob hordas de protestos da meia dúzia de celerados professadores do imperativo categórico “quanto pior melhor”, estribados no argumento de que se a Boa pode porque não a Devassa? Só porque era a Paris Hilton que mostrava os dotes pudengos e não a Juliana Paes? Num gesto de absoluto desprezo pela mais democrática das democracias do mundo, pediram a intervenção do Departamento de Estado Americano Nortista, acusando, injustamente, nossa gente de xenofaba.

Bem, voltemos à minha narrativa original, motivo de tão pia missiva. Assevero que serei breve no meu relato, para não atrapalhar os vossos elevadíssimos pensamentos, que os sei direcionados na boa intenção de registrar e divulgar os usos e feitos, homéricos e salutares, de verdadeiros heróis, próceres e pais fundadores da vossa e da nossa República.

Fidelíssimo e Magnânimo Mestre, o caso exige vossa atenção e quem sabe, intervenção maciça do baixo, mediano e elevado clero, para que possamos voltar a dormir sossegados e não sermos mais incomodados por tamanho desatino e, por que não dizer, acintosa afronta àquilo que este humilde discipulo considera como sendo o fundamento, a pedra angular, da nossa cultura judaíco-cristã, verdade seja dita.

Preparava-me eu, para atravessar a voluptuosa e empertigada Avenida Paulista, diante do vetusto e labiríntico Conjunto Nacional, logo após um dia estafante de egrégia e enobrecedora labuta, quando, assim sem mais nem menos, descortino na outra margem, uma figura deveras inusitada e curiosa. Um homem de cabeleira alva, fios despenteados ao vento, vestido em fatos asseados e de aparente boa procedência, agindo tal qual aqueles manjados homens sanduiches, propagandistas ambulantes, afinal carregava, penduradas nos ombros, duas placas, uma à frente e outra atrás, onde, a princípio, só pude notar os dizeres frontrais que, em caracteres garrafais e alta caixa, nos avisava: O Fim está Próximo.

Pensei tratar-se de mais uma paródia de certos filmes norte americanos, onde tais figuras sinistras e vexatórias são comuns, levada a cabo por alguma súcia de piadistas em momento de recreio e desocupação. Ledo engano. Em torno ao pretenso divulgador de tão fatídica hora, notei certo alvoroço de gentes, portando e manipulando cameras e microfones. Foi aí que percebi tratar-se de uma inocente e animada produção cinematográfica. Fiz um pequeno comentário silencioso acerca da indigência de alguns artistas que teinam em imitar e/ou macaquear tudo aquilo que nos vem no norte e do leste temperados porém, calou-me fundo a precipitada e preconceituosa impressão quando consegui enxergar na camiseta de um dos técnicos compenetradíssimos o logotipo da produtora Conspiração Filmes, tão badalada no circuito fílmico tupiniquim. Ora, ora, a menina dos olhos do cinema nacional, celeiro de craques, em mais uma de suas investidas em pról da nossa tão almejada conquista do Oscar, alvísseras! Vamos chegar mais perto, talvez possa aparecer, de relance, na cena, pensei com meus rotos botões, já que estavam indo na mesma direção que eu, ou seja, ao ponto do busão.

Mas o negócio ganhou ares de assombro quando, apressado, alcançei o outro lado da calçada. A placa das costas do homem grisalho, com cara de profeta, com semblante de anjo anunciador do apocalipse, arauto do acerto final de contas com o criador, exibia o distíco mais sacripanta da paróquia que este devotado seguidor alguma vez botou os olhos, e olha que já vi dizeres exibidos em camisetas capazes de arrepiar até cabelo do sovaco, mais este passou da conta alcançando o grau supremo de senvergonhice, safadeza, escrotidão e mequetrife: Compre um Ford.

Amado, responda-me do alto da vossa plácida e discricionária sapiência, se o fim está próximo, por que cargas d'água eu me entregaria à bestagem de comprar um carro?

Perdemos o rumo, Sereníssimo! Rogo que nos ajude, com a vossa iluminada, ponderada e multifacetada cultura. Hábil sois em trafegar nos obscuros meandros misteriosos e insondáveis da natureza humana. Venha em nosso socorro, eu imploro, antes que mui e deveramente seja tarde demais.

Insône, perturbado e à míngua, aceito a vossa benção.

Assinado
Laurindo, pré candidato a diácono.


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