quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A Hora do Dragão

Todo dia ela fazia tudo igual. Assim vinha nos últimos quinze anos. Acordava às seis, banhava-se, preparava o café, levava as crianças à escola, passava no supermercado, pagava uma ou outra conta, telefonava para uma amiga, voltava para casa, ligava a televisão, preparava o almoço, trocava de roupa, telefonava para outra amiga, ligava o computador, lia os e-mail's, enviava os relatórios atrasados para a empresa de consultoria na qual trabalhava, dava um ou dois pitacos nos sites de relacionamento que participava, saía para pegar as crianças, passava no escritório do marido e lá iam todos de volta para casa para jantarem, trocarem algumas palavras, ajudar nas tarefas escolares das crianças, verem um filme na tv e depois cama, talvez um pouco de carícias e... dormir, que ninguém é de ferro. Nos finais de semana, uma saída pro restaurante, cinema ou teatro; uma visita, uma festa de aniversário, uma reunião de família, uma formatura, uma exposição... E assim Simone ia dando conta de seus dias sem uma reclamação que fosse, sem um muxoxo qualquer, fazendo das tripas coração para não pisar no tomate, afinal escrevera certo dia numa página do seu diário adolescente que aos vinte e cinco anos casaria com um cara legal, teria duas filhas e viveria feliz para sempre.
O que Simone esqueceu é que “para sempre” nunca é para sempre, é enquanto dura. Como tudo nesta vida tem seu prazo de validade é preciso estar atento para a hora do baque, para a hora do dragão. O que a gente não sabe é quando será, em qual momento acontecerá. Às vezes a gente nem percebe mas já houve o baque, o dragão já apareceu faz tempo e tornou-se comensal. Nesses casos, a pessoa pode ficar se perguntado o que está acontecendo, porque as coisas não estão do jeito que queremos, porque nada anda, porque essa rotina e coisa e tal. E pode acontecer que sejamos surpreendido. Para a maioria das pessoas a intuição nunca falha. Mas ela nunca nos dá a pista certa, é como um cachorro que late repentinamente sem nos dizer de pronto o que está acontecendo. Temos que ter a coragem de investigar. É nessas horas que podemos nos defrontar com surpresas, com o desconhecido.
Naquela manhã de sábado, Simone acordou na mesmíssima hora, banhou-se, preparou o café para o marido e as filhas, recolheu a roupa suja, dirigiu-se à àrea de serviço, colocou na máquina de lavar, primeiro as peças menos sensíveis, calculou uma quantidade de sabão e ligou. Olhou no relógio, já eram passados quase trinta minutos das sete, decidiu aguardar mais um pouco antes de acordar todo mundo – estava preocupada com o casamento de uma prima logo mais às quatro, ainda não havia comprado o presente mas já sabia mais ou menos o que iriam dar e decidiu sentar-se.
Com mãos cruzadas sob o queixo, fixou-se num ponto no ladrilho da parede, reparou num pingo de sujeira mas desviou o olhar ao sentir o corpo pesado. Algo oprimia-lhe os ombros e visualizou a imagem de um camelo. Emitiu um uh baixinho, quase irônico, no mesmo instante em que era arrancada da cadeira pela visão assustadora e brutal da máquina de lavar transformada num horrendo e singular dragão.
Singular porque não lhe pareceu comum um dragão sem cabeça. Todos os seres vivos possuem cabeça, pensou, porque este dragão está decapitado, foi a pergunta que surgiu enquanto era arremessada contra a parede por aqueles braços finos de fios, ardentes como brasas, a lhe queimarem a pele alva por debaixo do robe de seda. Debateu-se contra o amontoado de peças - cuecas, calcas, meias, blusas - cuspidas por aquele estomago dentado. Lutou contra a falta de ar que azulava seu rosto sem maquiagem. As teclas-presas, arreganhadas e famintas, buscaram o seu pescoço na tentativa de sugar-lhe o bem mais precioso, a sua vida, toda a sua vida. Tentou articular um grito, tentou chamar pelo marido mas guardou-se: aquele era seu momento, aquele monstro era o seu monstro, ela tinha o dever de vencê-lo e mesmo que lhe custasse a própria vida lutaria com unhas e dentes para derrotá-lo.
Uma onda de energia varreu-lhe as veias num relâmpago. Deu um potente chute no que considerou o centro baixo da máquina, sentiu o pé machucado e arrastou-se até o quartinho de despejo. Armou-se. De posse de uma vassoura e uma pá de lixo, partiu para dentro com tudo. Assemelhava uma ninja com anos de aprendizagem com o mestre de todos os mestres; Átemis, lutando ao lado do pai contra os Gigantes; Átena, ao lado de Odisseu, combatendo os pretendentes de Penépole. Com a vassoura como espada e a pá como escudo, o estrago não foi maior porque aquele barulho, aquela algazarra toda, finalmente despertou o esposo e as duas filhas que, assustados, correram para acalmá-la, abraçá-la, aconchegá-la e protegê-la. Sentaram-na numa das poltrona da sala, entre beijos e toque gentis no seu sedoso cabelo completamente desalinhado.
Quando Simone, finalmente, decidiu fitar nos olhos da família, sussurrou com um sorriso maroto: “Sabem aquela máquina de lavar que pensamos em presentear a priminha? Vamos comprar duas”.


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