quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Preciso de uma aspirina

Ops! Um açougue? Balcão alto, tampo de mármore, uma balança à esquerda. Junto a parede, à direita, uma pilha de papel pardo. Não vejo carnes expostas. Porque sei que é um açougue? Nada que diga: é um açougue. Mas eu sei, me foi dito. Ops de novo! Alguém, algo, me diz coisas que não são. Algo nomeia de antemão. Algo prejulga. Açougue ou não, digo agora: era um açougue.
Quatro pessoas estão diante de mim: duas mulheres, um homem e uma menina. Uma mulher loira, a outra morena. O homem é ruivo. A criança tem os cabelos negros mas a pele é bem alva. Fico no espaço entre a pilha de papel e a balança. O homem e a menina saem pela esquerda. Não sei para onde vão. Importa?
Decido encarar as mulheres: preciso de uma aspirina! Por que não fui a farmácia? Qual é o meu propósito? Elas estão esperando que eu justifique isso. Vamos por etapas: a) preciso de uma aspirina; b) se preciso de uma aspirina e porque sinto alguma dor, provavelmente de cabeça; c) o que açougue tem a ver com aspirina e dor? Acho que dá pra concluir: eu quero que cortem-me a cabeça?
Assumo todos os riscos desta eventual estupidez. Mas não temo o ridículo. As mulheres trocam olhares insuspeitos, foi um pedido normal, presumo. Então... homem certo, lugar certo, hora certa, não é?
Aspirina custa caro, diz a loira. Estarei lidando com algo inusual. Acho que preciso ser mais direto. Devo implorar? Enfio a mão no bolso da calça e sinto a existência de uma única nota. Seria injusto não apresenta-la. Ainda me resta um pouco de dignidade. Uma descarga de orgulho me aciona. Deposito a nota sobre a pilha de papel.
O que é isto?, pergunta a loira. Dinheiro, respondo eu. As duas olham em torno, cochicham algo enquanto caço bolhas no ar. Será que não tem valor? Não, não é o valor monetário que as intriga, é o símbolo impresso. Creio que identifica uma causa, evoca um motivo. Não temo o mundo novo em que me encontro.
Revolução Francesa?, questiona a morena. O que?, tento entender. O rosto, diz a loira. Ah, sim. Já leram sobre a...? Bem... entreolham-se as duas. Em livros?, insisto em saber. Não. Nunca tinham visto algo assim. Vale dez reais, acrescento. Aqui a frase me parece sem propósito. Tâo pouco?, sorri a morena. É relativo, penso eu. Excitei-a? Sinto o proibido, meus gestos tornam-se involuntários, minhas papilas exsudam um gosto agridoce. Leram sobre a Revolução Francesa?, digo e percebo que estou sendo inconveniente. Espere aqui, diz a morena. Que bom que meus problemas passaram a fazer parte de suas vidas. Identifiquei-me de maneira correta. O equivoco inicial pode, no futuro, vir a causar algum transtorno. A mulher loira apanha um jornal e vai para a extremidade oeste do balcão. O homem volta e atende um cliente. A menina retornou com ele e agora esta encostada na parede ao fundo. Sinto no seu olhar uma sombra de desconfiança. O que será que eles comercializam aqui?, tento disfarçar.
Belos desenhos, digo, referindo-me ao documentario sobre dinossauros que está sendo exibido na amplavisâo acima das nossas cabeças descobertas. Vigorosos, criativos.
O balcão avança em curva até a calçada, como se quisesse alcançar o ar livre da rua. A noite começa a descer. As imagens da pré-historia se sucedem, projetadas no éter. Tento ser simpático. Mas não sei se é o bastante. A noite formou-se em estrelas. Afasto-me do balcão. As ruas enchem-se de gente.
A mulher morena voltou, diferente, mais magra, menor, atraente, muito atraente. Veste um tubinho de malha com listras coloridas na horizontal. O vestidinho chega-lhe apenas até a altura das coxas. O cabelo longo, negro, cai-lhe majestoso pelas costas. Enlaço-lhe a cintura com o meu braço esquerdo, trazendo-a para perto de mim. Os olhos dela, meigos e doces, buscam, vez ou outra, a aprovação dos meus que, bobos, perdem-se na arquitetura bizarra das fachadas.Ops! O que significa isto? A saia dela desdobra-se, alcançando os tornozelos? Está questionando o meu desejo, por certo. Em homenagem ao seu pudor digo que sim, não é o lugar nem a hora. Indefesa arrasta-me até uma sala onde estão dispostos diversos andaimes. Um jovem loiro emerge do sub-solo por entre as tábuas do assoalho: voce encontrará a aspirina na... volta-se para ela que acena do outro lado da rua. Trocou de roupa, tão depressa? Mudou também o cabelo. Usa calça e camiseta, pretas. O cabelo agora é curto. Preciso corresponder as suas expectativas. Atravesso. Desconfio da praça. Tento evitar o embaraço causado por algumas pessoas que insistem em brincar no espaço entre eu e ela. Ha um banco de aço inoxidável. Sou convidado. Consigo me desvencilhar dos transeuntes e corro. Um raio me atinge, perco completamente a cabeça.

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