quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pingo, o menino desalmado

PRÓLOGO
Paisagem do semi árido nordestino.
NARRADOR - Certas histórias são dificies de contar porém, toda história merece ser contada.
Agachado em cima de um morro um menino observa a região. Pequenino e magricela, veste apenas um surrado calção.
NARRADOR – O que vocês verão a partir de agora nunca aconteceu de fato. É pura invenção. Ocorreu-me da lembrança de uma remota leitura de um livreto de cordel.
O olhar do menino descansa sobre detalhes: a estrada que serpenteia o morro, um velho leito de rio seco, uma cerca e um casabre em ruínas.
NARRADOR - Para mim uma história só faz sentido se for provocante.
Menino olha pro céu, uma nuvem cinza aproxima-se. Desce em debandada manobrando, com um arame, uma roda de velocípede.
NARRADOR - E o que temos aqui é uma enorme provocação. A minha reação foi acrescentar-lhe um epílogo. Espero que a atitude de vocês, diante de qualquer provocação, seja mais criativa que a minha.

CENA 1
Menino aproxima-se da casa. Homem surge no umbral da porta.
HOMEM – Vai pra onde?
MENINO – Tomar agua!
HOMEM – Pode beber na cacimba mesmo.
MENINO – Cade mãe?
HOMEM – Ela tá ocupada!
Menino olha em volta e decide entrar. Homem barra-lhe a entrada.
HOMEM – Já não disse...!
MENINO – Eu quero minha mãe!
Homem empurra-o para o centro do terreiro.
HOMEM – Hoje ela é minha!
Menino acocora-se e fica rabiscando o chão com o dedo. Uma jovem mulher envelhecida, surge na porta. O garoto levanta-se esperançoso.
MULHER – Aproveita para buscar lenha. (Mais alto) E não esqueça de encher os potes!
MENINO – (Entre lágrimas, praqueja) Um dia ainda acabo com essa desgraça!

CENA 2
O garoto está catando gravetos, observado pela mira de uma arma. Tendo acumulado o bastante, limpa o suor da testa. Homem aproxima-se. Traja farda militar e carrega um rifle numa das mãos.
MILITAR – Mora aonde?
MENINO – Logo ali... depois da cacimba.
MILITAR – Viu este homem por aqui? (Mostra-lhe uma foto)
MENINO - Tá lá em casa!
MILITAR – Sozinho?
MENINO – Com minha mãe.
MILITAR – Me mostra o caminho.
MENINO – O senhor vai prender ele?
MILITAR – Prender dá muito trabalho.
MENINO – Que que ele fez de ruim?
MILITAR – Não interessa. Ele não presta e pronto.
Menino faz um feixe de gravetos e coloca sobre o ombro.
MILITAR – Faz de conta que não estou aqui. Vai, faz teu trabalho.
Menino toma a dianteira.

CENA 3
Aproximam-se da cerca.
MILITAR – Espera aqui. Agora é comigo. (Vai até o meio do terreiro. Grita) Eleutério! Saia vestido, sujeito!
HOMEM – (De dentro) Tô sempre pronto, macaco!
MILITAR – Então se ajeite, cabra safado. Vim te buscar.
HOMEM – Óia que eu vou dar trabalho!
MILITAR – Sou pago para isto.
HOMEM – Mas não o suficiente.
MILITAR – Homem, eu não vim parlamentar. Estamos gastando saliva. Saia logo dai, e desarmado.
HOMEM – (Saindo) Tu pensa que é mais homem que eu?
MILITAR – Eu não penso nada. To cumprindo com a minha obrigação.
HOMEM – (Abre os braços) Pronto! E só me levar.
MILITAR – Vai andando na direção da cerca e siga adiante. Eu vou logo atrás.
Homem inicia caminhada. Militar, acompanha. Ao passar pela cerca vê o garoto agachado.
HOMEM – Foi esse peste que te trouxe aqui?
MILITAR – Não bula com o menino.
HOMEM – (Encara o menino) Qual dos dois tu acha que é teu pai?
MENINO – Eu não tenho pai!
HOMEM – Todo mundo tem um pai, Pingo!
MILITAR – Sai daí, menino. Corre pra dentro.
HOMEM – (Agarra o menino. Aponta uma arma para sua cabeça) E agora, sargento... o que vai ser?
MILITAR – Eu vou te matar do mesmo jeito, Eleutério! Com ou sem o menino te servindo de escudo.
HOMEM – Qual de nós dois é pior, sargento?
MILITAR – Eu sou! (Dispara. Homem cai, garoto sai correndo em direção a casa) E isto não doeu nadinha.

CENA 4
Ao aproximar-se da chegar na porta é agarrado pela mãe.
MULHER – Cadê a lenha? Voltou de mãos vazias. E quem te ensinou a ser cagueta?! (Bate).
MILITAR – Larga ele!
MULHER – Sou a mãe dele, faço com ele o que me der na telha!
MILITAR – Não na minha frente, pustema!
MULHER – Que que é? Pensa que é dono do mundo? Pensa que manda em mim? (O militar retira o menino das mãos dela) Você não pode... Ele é meu filho.. Já sofri muito por ele... Eu conheço os meus direitos, sabia? Um filho tem que ficar com a sua mãe!
MILITAR – Tu quer ficar com ela?
MENINO – Até que gosto dela... quando não traz homem pra casa!
MULHER – É isto que eu ganho? Por te carregar nove meses na minha barriga, por te dar de comer todos estes anos, por ter me tornado este molambo, me vendendo a troco de tostões, só para te sustentar? Quer saber: dane-se, faz da tua vida o que bem entender.
MILITAR – Vai, pega o que e teu e vamos embora daqui.( Menino sai)
MULHER – E quanto ao defunto? Vai ficar ali... assombrando o meu terreiro?
MILITAR – Eu não sou coveiro! (Sai)
Garoto volta, manobrando sua roda da de velocípede. Segue o militar.
MULHER – Volta aqui, seu desgraçado! Vai deixar o serviço pela metade, meganha dos infernos. (Corre até ele e esmurra suas costas. Militar livra-se dela com um sopapo. Ela cai no chão) Pingo, meu filho, fica e defende tua mãe!
MENINO – Nunca tive pai e agora deixei de ter mãe.
MULHER – Eu sou tua mãe, ingrato. Sou e vou ser sempre. Por onde quer que tu vás, eu vou te perseguir. Como nuvem em dias de chuva, cheia de raios, eu sempre vou te perseguir. Tu nunca encontrarás paz.
MENINO – (Distante. Para si) Pra mim tanto faz. Eu nasci sem alma mesmo.
MULHER – (Sozinha) Vai, meu filho! Cumpra com a tua promessa. Que deus te ajude. Que você consiga acabar com esta sina. E quanto a mim, devo enterrar os mortos que nunca foram meus. (Levanta-se, olha em torno) O mundo é tão grande, são tantos os lugares... (Olha pra cima. A nuvem cinza paira) É... parece que vai chover. Preciso tirar a roupa do quarador!

EPÍLOGO
O menino segue pela estrada manobrando habilmente, com um arame, a roda de velocípede. O militar, a frente. Aos poucos, a figura austera começa a desvanecer até desaparecer por completo. Resta apenas, naquela estrada sem fim, um menino distraído com seu improvisado brinquedo. A tarde cai lentamente enquanto uma ansiosa voz feminina grita.
MULHER – Pingo! Cadê você, meu deus?
Finalmente o encontra desacordado à beira do barranco. Ela o anima. Limpa o seu rosto, alisa seus cabelos.
MENINO – Eu caí.
MULHER – (Ri e apruma-se) Vem, vamos para casa!
MENINO – (Tempo) Um dia vou conhecer meu pai?
MULHER – Esquece! Eu sou teu pai e mãe. (Saem)
MENINO – (Tempo) Meu carrinho! (Volta e pega o brinquedo)
Os dois seguem até o fim.

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