sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Comentário

Enlouqueceu! Não tira nunca aquele chapéu da cabeça. Já insisti tanto que abandonasse este hábito execrável. Ele diz que não irá abandonar os amigos. Passa o dia fora de casa. Seu lugar predileto é a entrada da barra. Ali tem uma pedra grande onde permanece horas a fio conversando, adivinhem com quem? Para R., ele já fez a passagem prá outro mundo. Prá mim ele enlouqueceu mesmo. Imagine, chamar um chapéu de amigo!

Este comentário li num pedaço de papel almaço, sem data nem assinatura. Mas pelo tom pareceu-me escrito por uma mulher. Caiu-me aos pés quando abri um volume de O Mundo como Vontade e Representação, no sebo Sagarana, na Rua Fradique Coutinho, em São Paulo, numa tarde chuviscosa de dezembro, terça-feira, alguns anos atrás.
Perambulava pelas vitrines, à espera de hora propicia para regressar ao apartamento, o trânsito estava, como sempre, horrível, o dia tinha sido exaustivo... súbito, dei-me conta de que não havia nenhum bom filme marcado para aquela noite na televisão tampouco algo novo para ler, por isso decidi entrar na livraria.
Ao vasculhar a primeira estante, a minha velha camarada sussurrou com aquele jeito peculiar e incorrigivel de me incentivar: Ler prejudica a vista. Vai acabar cego! Mas ela não lia! Porém enxergava como uma coruja. Não havia como esconder-lhe o que quer que seja. Quando comprava uma roupa, um sapato ou algo qualquer para a casa, vinha sempre com os mesmos comentários: Comprou o que??? Pagou quanto???... O material não é lá muito bom...! Para quem é, bacalhau basta! Sentiram? Então por favor, não me censurem quando eu digo que tudo que faço, faço o mais vazio possível de pensamentos. Claro que isto é um exagero. Afinal, vivendo com essa voz dentro de mim, 24 horas por dia, vocês hão de concordar que não e nada fácil despistá-la. Ainda mais quando se trata de livros. Essa minha inseparável amiga sempre dedicou uma especial aversão aos livros. O que me leva a concluir que é analfabeta de pai e mãe. Reconheço que o raciocínio é precipitado, por isto façamos de conta que não o pronunciei. Afinal o que importa aqui são as lembranças que aquele comentário anonimo me despertou.
Mais um filete da sua generosa paciência, por favor. Meu quarto parece um labirinto de livros, revistas, papeis velhos, velhas anotações em cadernos amarelados e uma infinidade de bugiganga que acumulo sem pestanejar. Para que serve tudo isto? Só para ocupar espaço e juntar poeira! é o que ouço quando sento na cama. Fazer o que? E um hábito de infância. Colecionei caixas de fósforos – algumas eu transformava em “máquinas fotográficas” (Sabe como fazer isto?). Guardava uma infinidade de embalagens de cigarros e fingia que era dinheiro! Tampinhas de garrafas, selos, botões, figurinhas... amontoava tudo em caixas de sapatos e escondia debaixo da minha cama ou no fundo do guarda roupa. Mas a minha coleçao favorita era a de gibis. Economizava centavos, deixava de comprar material escolar para investir em Tarzan, Zorro, Cavaleiro Negro, Flecha Ligeira, Dom Chicote, Reizinho, Os Sobrinhos do Capitão, Pinduca... um tesouro de fantasias. Um tesouro que, infelizmente, vi arder no quintal da minha casa. Uma perda lastimável! Eu não faria isto nem com o meu mais empedernido inimigo. Acho que foi ali que aprendi a mentir. Foi ali que eu comecei a conversar com o meu chapéu. Foi ali que eu comecei a enlouquecer. E tempos depois quando contemplei um poster ultrarealista do meu signo, compreendi qual era o meu destino. Tinha que me livrar daquela voz. Não iria mais permitir que ela controlasse meus pensamentos com aquela vigilância e censura implacáveis. Eu tinha que enclausurar aquela voz em algum lugar. Mas aonde? Um lugar onde... encontrasse... um lugar habitado... qual era o seu pior pesadelo, o que ela mais temia?
Será que aquele anonimo percebeu que escrever pequenos comentários em pedaços de papel e esconde-los dentro de livros em brechos literários era uma forma de libertação? Nunca saberemos. Resta a curiosidade: quem terá sido, qual sua verdadeira motivação?
E o que mais intriga e nunca podermos saber se ele conversava mesmo com seu chapéu e se conversava porque conversava. Tenho para mim que conversar com o chapéu não é sinal de loucura. Eram amigos, nao eram? Acredito mais numa especie de gratidão com aquele velho companheiro e protetor. Nada como um inanimado ombro amigo.
Hoje em dia não se usa mais chapéus porem as pessoas costumam conversar horas com o computador. Seria sensato da minha parte afirmar que enlouquecemos todos?
Para minha surpresa, a minha velha amiga, neste momento, adota um tom mais amigável e pontifica: De criança e louco todos nós temos um pouco! Como diria Vincent Price: Ah, ah, ah...!

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