sábado, 23 de abril de 2022

hábito de mistério

 

Vertical-Horizontal I, Hedda Sterne, 1963




olho o horizonte…

apenas infinito e nada:

ambos sou eu

alheio


não fosse o oponente

tolher a passagem,

jamais perguntaria

pra onde vou ou o que sou…


tem muito o que explicar

esse vazio

cada vez que dói


uma, duas, “n” vezes

voltarei

a encarar o horizonte

preciso conhecer

tudo que desconheço


 

sábado, 16 de abril de 2022

odisseia

 

Tillia Durieux (atriz austríaca) interpreta Circe, óleo de Franz von Stuck, 1912




me amas assim?

preciso ao menos cinco doses!

minha razão não compreende

esse sentir (ah, teu tom, teu olhar além…)

diante da sede de alegria e prazer


a aguardente me permite

navegar a sedução

mas também conduz ao susto e ao sono:

inteiro à tua mercê

isto é desigual, mulher,

impossível te alcançar

– que há comigo que não controlo,

no delírio de te entender, este artifício?


e cisma minha imperfeição, melhor esquecer

sereia encantada: 

teu canto em meus ouvidos

este faz de conta

meu sonho

acessível a todo instante...

basta que me embriague a solidão



 

sábado, 9 de abril de 2022

tempus mortis

 

The Damned Soul, Michelangelo, 1525


em meio a pandemia

o papa caminha deserto pela praça de são pedro

em direção ao altar de sacrifício

uma bruxa dança solitária numa praça de sant’orozo

clamando tesão às forças telúricas

os pobres do mst distribuem toneladas de alimentos

        a outros pobres das cidades

os profissionais da saúde dormem no chão dos hospitais

exaustos de incharem estatísticas


mas nada disto funciona:

o mundo continua estúpido,

o mundo desconhece os tempos verbais além do eu

e não faz a menor ideia

de como sair da armadilha

do paradigma criado

em salas engravatadas

acondicionadas à aventura

irresponsável diante do espelho

onde faz a barba, passa rímel… narciso em si mesmo!


eis que hoje muitos irão às compras

eis que um tilt no sistema avisará em horário nobre

que tudo acabará numa coluna de sal…

mas aí cortam para os comerciais

e com a boca cheia de estupidificantes

seremos abordados pelos mercadores da fé

(os tais que matraqueiam em nome de um deus

cercado de advogados e policiais)

a nos oferecer a sobrevivência das baratas -

ora, se o comportamento único e oficial fosse a solução

as formigas, os cupins e as abelhas

seriam os soberanos do planeta…


em meio a pandemia

os danados caminham secos de lágrimas

não choram mortos, desconhecem a empatia,

apenas profanam

a linguagem, a beleza, o sagrado…

em meio a pandemia

assistimos a injúria impune dos danados -

escandaloso repúdio à vida e à consciência alheia