sábado, 2 de abril de 2022

A viagem


Matched Marriage, Quentin Marsys, 1530



Dissemos um ao outro: vamos viajar, sem volta! Era um tempo duro, suado, nada de dinheiro fácil, havíamos de economizar. Ao contar tostões alcançamos suficiente para comprar a passagem mais barata num daquele ônibus pirata. Aí justifiquei: luxar pra quê, se desta vida não se leva nada? Além disso, é uma aventura, sem pressa para chegar a algum lugar, viagem de curtição, com paradas aqui e ali, tempo de sobra para curtir a paisagem.

Ficara bom nesse negócio de inventar desculpas para não fazer a coisa certa. Mas o que sabia eu da coisa certa? Naquela longa época tinha muito poucas ideias. Sobrava o que eu sentia e pronto…. apesar dos protestos e das advertências (que não ouvia e se ouvia não entendia).

Juntamos as trouxas… só não juntamos as escovas porque aí seria nojento e não estávamos a fim de ser chamados de hippie ou, pior, comunistas… e fomos para o ponto, aguardar a embarque.

Não invento: o local estava tomado de gente. E chegava mais e mais. Uma horda do tipo retirantes e nós iguais. Porém, apenas eu e ela havíamos combinado partir para aquele lugar algum.

Procurei-a para confirmar, mas envolta pela multidão começara a se afastar cada vez mais. E esta constatação jogou-me num abismo: sabia de fato o significado da partida?… qual o ônibus?… qual a companhia? Em meio a esse frenesi, percebi que havia começado a perder a noção e a lembrar que esquecera de perguntar ao vendedor se o ponto era aquele mesmo e o qual o horário de partida? 

Minha derrota foi presumir que ônibus, todos eles, passam pela mesma estrada, a estrada na qual me encontrava. E se era assim, melhor acalmar: o ônibus que me (nos) levaria apenas de ida a algum lugar, a qualquer momento pararia bem ali, no ponto em que estava, envolto por esta multidão que me desconfortava e aumentava a distância entre eu e aquela… mas, onde estaria agora?

Presumi além da conta. Minha esperteza deu chabú. Desesperado, procurei o número telefônico da empresa… queria alcançar o setor de informações… mas, nada, nada trazia nos bolsos além de um contrato manuscrito em chinês tradicional em quatro folhas de papel almaço. Traição!

Havia sido traído. Mas calma: fora eu meu próprio traidor. Qual o quê? Tentei abrir espaço entre as gentes, buscando alívio. Queria falar com ela, prometer em alto e bom som que iria ressarci-la mas meu esforço se mostrou vão e paradoxal: cada vez que buscava me aproximar, mais ela se afastava e mais eu me afastava do ponto em que deveria embarcar no ônibus que nos (me) levaria a algum lugar e a multidão em volta não dava a mínima para qualquer movimento que eu viesse a fazer, abarrotado de tralhas em louca disparada, através de ruas, vielas, becos, solos e subsolos – em busca de encontrar o guichê onde havia comprado a passagem mas desembocara num mundo onde a verdade ia ficando cada vez mais inacessível.

Impossibilitado de alcançar, quis gritar, xingar, maldizer… grimas ansiosas de liberdade vieram em meu socorro. Larguei mão, abri as comportas do desespero e do alívio. Busquei refúgio no primeiro templo que encontrei pela frente. O sacerdote não se deu ao trabalho de responder minha indagação convulsiva sobre o que estava acontecendo? Condescendente, me ofereceu um lenço branco que acabei por esquecê-lo no bolso de uma velha calça nos anos que se seguiram.

Reparem: esta é uma estória de fraqueza. Não lhes contei aquilo que escapa por não buscar os instrumentos que me permitissem entender o que precisava entender. Tudo que acabei de narrar foi uma pequena tentativa de contextualizar um mero sonus convulsus: pesadelo, que tem me torrado a paciência cada vez que lembro dele.



 

sábado, 26 de março de 2022

A guerra que nos vive

 

War, Marc Chagall, 1915



Partiria. Atenderia ao chamado, decidiu.

Que o esperasse, com uma torta de frango sobre a mesa, pediu e jurou, diante dos olhos tristes da mulher, que retornaria assim que o conflito terminasse.

A ela (enquanto ajudava na arrumação da mochila) ocorreu que o caos não duraria para sempre…

Até riu, e contentou-se, tudo passa, fixou!


Mas o esperado demorou…

E o tempo, implacável, se sucedeu em opressiva inutilidade.

Então, as mãos cansaram, os seios murcharam… os dentes caíram até


Numa desavisada manhã, sem que nenhum estrídulo de sirene arranhasse o ar, a própria esperança se extinguiu e o relógio cessou a vigília.


O que era vivo faleceu e o que tinha perecido insistia em viver.


Enfardado de cicatrizes e remorsos, o maltrapilho homem cruzou o vão da porta morta.

Automática, a vista perscrutou a sala fúnebre e ao sentar-se à mesa defunta sentiu que o abandono era sua única companhia.

E ali, habituado ao vazio conquistado, compreendeu que morrera no instante em que partira.


Lá fora, a guerra zurrava. 



        

sábado, 19 de março de 2022

era uma vez quando me fizeste feliz

 

The Dream, Henri Rousseau, 1910




aguarde amor que volto ali ao sonho

para seguir adiante dos fantasmas

a enfrentar meu mais profundo medo…


devo alcançar sejas tu quem sejas

 - brinquemos juntos

e que rias de mim

que rias comigo, que fujas

que não facilites, que não cedas

à minha ansiedade, minha despreparo

meu despropósito…


ah, o desafio de vir a ser…


se acaso, por bondade

(quem sabe prazer ou petulância)

vieres a me ofertar o teu amor

que seja por descompromisso

(amanhã não saberei de mim, quanto menos de nós)

e mesmo que digas espero te ver outra vez

sei da impossibilidade de um castelo

que te guarde à minha espera…

por isto, eis que parto, pois é preciso que eu parta

a carregar esta ilusão – tua lembrança, este sonho...

 

me resta presente

fazer o caminho de volta

a ti, que me deste um momento

 instante feliz

e no caminho, insisto: que tal 

entre tantos poemas possíveis, reviver amor?!