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sábado, 22 de maio de 2021

o poeta, o político e o padre

 

The Uncertainty of the Poet, Giorgio de Chirico, 1913




já saí de mim faz tempo

ando a cumprir tabela

num corredor sem portas


acordo como e bebo

longe das utopias

ah, como invejo os que partem -

já não têm dúvidas nem dívidas


eis-me aqui, a assistir

conflitos amargos

e ácidas soluções


dessa minha impotência

cuidam as nutricionistas

embora me neguem o sal


sobrevivo, apesar do temor

dos médicos...

o medo deles é que eu baixe hospital

e acabe por colocar em risco

a performance do sus


entre milicianos e garotas de programa

alheios ao uso de máscara

acompanho o enterro de mais um político promissor:

a impressa fez de um tudo para atribuir-lhe virtudes

qualidades que, infelizmente, não resistem

a uma martelada do padre lancellotti









sábado, 15 de maio de 2021

segredos gozosos III

 

Os Amantes, Rene Magritte, 1928




- sob o luar

tua mão e tua boca

estremecem o céu


- a chama

na ponta dos dedos:

na língua a recusa

do verso final


- o êxtase beija a rosa

afogado num vulcão

eis que o amor vira fome


- a rosa de pétalas doces

esqueceu dos espinhos e gemeu

sob o aroma de mil jardins


- trêmulas, mãos adormecem

entre canteiros de plânctons

que sacralizam aquela alcova



sábado, 8 de maio de 2021

segredos gozosos II

 

King Pleasure, Jean-Michel Basquiat, 1987




- o beijo não devora:

apenas alcança

as bordas do arrepio


- após um banho de mar

o sal eriça a alma:

minha língua em teu corpo


- que teus seios me tirem o ar

pois hei de ressuscitar

na cava do teu umbigo


que ciências, aventuras

e mistérios te ensinaram

cavalgar, amazona?


- viro chuva e orvalho

na tua flor de laranjeira...

sereno, inundo tua varanda

sob o ciumento olho do luar



sábado, 1 de maio de 2021

segredos gozosos I

 

The Pleasure Principle, Rene Magritte, 1937


- a chama que me acende

é tua lembrança perene:

asas roçadas do desejo


- um anjo torto

me ensinou a rezar

tal qual um gozo


- na taça do teu umbigo

sorvo o vinho que me inicia

nos mistérios da criação


- mais tesão:

no teu corpo molhado

um vestido nu


- tuas coxas sob o vestido

na foto proclamam

meu desespero...



sábado, 24 de abril de 2021

humanidade humana

 

The Arte of Human Being, Laurel Burch, 1967




meus amigos

não vos percais em filigranas

tudo é acessório

quando a morte ronda e solapa

o que temos de mais precioso: uns aos outros;


quando a discórdia e a intriga

nos coloca armados diante de iguais;


quando a volúpia e a ânsia nos distancia

de coisas simples que nem um abraço

e nos enreda em detalhes

frívolos e insignificantes

tal qual um ocasional corte de cabelo


meus amigos, não permitais

que nossas provisórias diferenças

superem nossa frágil semelhança...


pois eis que o ódio

(com o qual às vezes alimentamos nossa alma)

lembrai

é sempre fruto do dissídio 

jamais daquilo que nos iguala



sábado, 17 de abril de 2021

todo choro é canto

 

Child Crying, Diane Arbus, 1967




é de longe que vem

longínquo

canto

esquecido

em meio a tantos ruídos

distraídas ruínas

transitórios cantares


ouça, criança,

o que te fez

o que te faz

sublime lamento

eco

vem fraco

tão forte canto

porque é ânimo

vida

lugar e voz neste mundo

alma, sou canto


- se cantar é choro

todo choro é canto



sábado, 10 de abril de 2021

saudade ácida

 

The Song of Love, Rene Magritte, 1948




teu cheiro permanece em mim…


(tanto te beijei

que nossas bactérias se fundiram)


não há banho ou álcool gel

que apague tua lembrança


e durmo toda noite

ninado

nos braços

desta saudade ácida



sábado, 3 de abril de 2021

o velho medo da rejeição

 

The Rejected Lower, Oskar Kokoschka, 1966




fiquei velho

corpo dolorido

músculos entrevados

(as articulações já não respondem que nem antes)…



tudo em mim busca repouso

e pior:

impossível dormir mais que 4 horas por noite


fiquei velho

e nesta corrida rumo ao esquecimento

me resta imaginar

fazer de conta

que nasci ontem

quando sonhei

com aquela paixão antiga

inalcançável

e, finalmente,

consegui me aproximar

e abraçá-la

com seu total consentimento


fiquei velho, mas creio que

ainda há tempo

para pedir uma dança

à mais bela do baile

sem medo da rejeição



sábado, 27 de março de 2021

difícil humanidade

 

Hand of Fate, Achraf Baznani, séc.XX


não sei do amanhã

quem sabe?… aliás,

tenho medo do dia seguinte.

daí a ideia de escrever

notas urgentes

(súplicas de presença)

antes que a ausência me retire

para sempre

de perto dos meus amigos

e me jogue longe dos meus irmãos…


ah, palavras, preciso mostrar quem sou

além de toda manhã


quanto mais vivo, a cada instante,

o mecanismo de apagamento

não me quer nem morto

quer saber se desejo deletar ou não

a história, minha história...

por isto aplaino a lembrança

afio a memória

teço histórias impossíveis

e acordo todo dia

pronto para trabalhar

minha difícil e dolorida humanidade



sábado, 20 de março de 2021

o poeta do castelo

 

Cena do filme, 1959



belo, belo, minha bela

tenho tudo que não quero

não tenho nada que quero”…


eis, Manuel, o poeta

na mercearia a comprar leite…


o prédio onde mora

        o Bandeira

é feio e frio


a rua

        por onde ele caminha

é solitária, feia e suja


é visível a condição do poeta

- triste

não fosse a música de fundo

que o homenageia…


Manoel Bandeira, o poeta do castelo

é um filme p&b de joaquim pedro de andrade

e tal qual o protagonista

inventa uma manhã possível

        de acontecer fora da arte...

- e quem prefere viver sem arte?


mas eis que o roteirista

coloca o poeta em pijamas

e o filma na cama

porém o poeta não dorme

(quem disse que consegue)

quem disse que o sonhador precisa dormir?

Bandeira não quer dormir

Manuel, o poeta, quer sonhar… e rir

a despeito

de toda solidão, tristeza e feiura…


e é justo aqui que o poeta ergue a bandeira

e Manoel decide partir

para Pasárgada

não sem antes

comprar um jornal

despedir-se de um conhecido

e atravessar a rua

a deixar para nós

um epitáfio em letras invisíveis:

- fiquem aí com minhas graças,

que me fui,

adeus...



sábado, 13 de março de 2021

a luz que abomino

 

Candles, Gerhard Richter, s/data


enquanto a luz (da vida) caminha

inexorável

à escuridão

prossigo minha busca

à poesia que esclarece…

e digo: não odeio

"a luz que começa a morrer

nesta noite serena”,

(oh, quanto desespero lírico, Dylan Thomas!)

antes, suspiro

meu pesar

e chego a chorar

todas as ausências que sofro

minuto a minuto

quando me entrego

por completo

aos raros momentos

em que me comovo

com um genuíno gesto de amor…


porque é disto que sentirei falta

se me lembrar!

durante toda a escuridão que me aguarda...


eis é a causa do sofrimento poético:

tal qual Dylan

considero a Morte injusta sim

mesmo sabendo que morrer é nossa condição

mas isto não esconde

o fato de que a Morte nos priva de tudo

que amamos

nos segrega do afeto, do gesto, do convívio

esta é a violência denunciada:

- o problema não é morrer

o problema é ficar sem o amor de quem amamos


nesse sim e não cósmico

compartilho com Dylan do mesmo horror

da mesma procura poética: luz!

não a evangélica

destruidora/construtora do mundo (interior/exterior)

segundo sua imagem e semelhança

habitada de infinita opressão

e corro para o lado de Ariano Suassuna

para compartilhar da sua simpatia pelos loucos:

porque eis que a loucura

nunca nos pediu um cordeiro no altar em holocausto

isto tem sido sempre tarefa da lucidez...

- a loucura tem nos levado

sim

a escapar da dualidade

da violência divina, violência de deuses dúbios

inseguros da própria divindade

esses tais que exigem sacrifícios

mas são absolutamente incapazes

de livrar da morte aqueles que amamos


eis a luz que também abomino


sábado, 6 de março de 2021

Oh, mal tão belo

 

Pandora, William-Adolphe Bouguereau, 18...




Oh, mal tão belo… quem te criou,

senão deuses ciumentos

e rancorosos

com a alegria e o bem estar dos homens?


Oh, mal tão belo…

ornada com as dádivas e as artimanhas divinas

foste destinada ao nosso meio

com a missão de espalhar mazelas

que nos atormentam desde sempre


Oh, mal tão belo…

adornada com flores primaveris,

cheirosa, irresistível, astuta,

cheia de ardis e fingimentos,

curiosa e cínica

vieste para nos atormentar a alma

e instaurar o reino do males sem fim,

onde nos sustenta apenas a frágil esperança


Oh, mal tão belo…

confundiste e enganaste nossa capacidade

de nos anteciparmos ao futuro,

de prevermos possibilidades

diante do Destino que nos assola implacável…


Oh, mal tão belo...

que corrompe e destrói nosso discernimento,

levando-nos a permanecer à deriva

neste oceano incerto que é a vida,

à mercê dos caprichos teus

e das divindades que te engendraram


Oh, mal tão belo”… disse o poeta

ao refletir sobre um dos seus infortúnios

enquanto admirava a beleza das mulheres,

que iam e vinham diante dos seus olhos

sem lhe dirigir sequer um olhar

quanto mais uma palavra (ou um gesto,

por mais insignificante que fosse),

completamente inacessíveis

aos seus membros túmidos de desejos e aflições.



sábado, 20 de fevereiro de 2021

verso e reverso

 

Hand with Reflecting Sphere, M.C.Escher, 1935



trago um juiz dentro de mim

severo e lúbrico…

irresponsável talvez por vingança

quem sabe medo

esse senhor austero

paranoico

metido a besta

(a despeito de todo tropeço)

simula um nascer eterno

e se diz independente

de mim…


repara:

- o demônio que me divina

é o mesmo deus que me demoniza


sábado, 13 de fevereiro de 2021

arquipélago

 

Voyages #55: Galapagos Islands, Joyce Kozloff, 2006




pobres

pretos pobres

brancos pretos pobres

índios pretos brancos pobres

todos pobres…


pobres pretos

índios

brancos

todos pobres…


índios

pretos

e até mesmo brancos

somos todos pobres



sábado, 6 de fevereiro de 2021

ode à tristeza

 

The Captive Slave, John Simpson, 1827




Tire seu sorriso do caminho

que quero passar com minha dor”

Nelson Cavaquinho, A Flor e o Espinho




ouça, amiga, a poesia é triste…

justifica, atenua 

legitima a dor... 

sente a causa

quem sente a tristeza do mundo


evoco Rubens Alves e sua epifania

(no conto “ensinando a tristeza”,

inspirado no Eclesiastes 7:3 e,

principalmente, pela observação

que lhe faz uma neta entendida de compaixão):

aquele alegrinho

que está o tempo todo esbanjando alegria

dizendo e querendo ouvir

coisas engraçadinhas

é um flagelo… perto deste

perdemos a liberdade de ser triste”


pois é, o alegrinho é um aleijão empático,

solidário apenas consigo mesmo...


desconhecido da compaixão,

resta a este alienado narciso

reivindicar

        atrevido e irresponsável,

que a sua alegria nos seja a prova dos nove:

        ilegítima pretensão.


é que faltou-lhe perceber que a alegria

não brota da vontade

de um movimento individual da vontade…


- a alegria, poetas

é filha dileta da dor!



sábado, 30 de janeiro de 2021

serena ansiedade

 

The Restless Hurry of Ghosts, Arthur Rackmam, s/data


quando

as coisas estão do jeito que desgosto

quando elas se apresentam fora de ordem

bagunçadas, esquisitas

reforço a certeza

de que nada é estático

tudo está em processo...

em constante movimento


assim

creio que haverá um instante

em que o técnico de informática

encontrará uma solução confiável

para fazer funcionar a placa de som

no meu computador

mesmo que isto dure a eternidade de um dia

e eu me flagre, durante essa longa agonia,

cutucando o universo com a minha ansiedade



sábado, 23 de janeiro de 2021

despedida

 

Farewell to the Red House, Alberto Sughi, 1992



esse tempo me obriga sumir

e leva junto a inspiração

o desejo, a vontade de sair, passear, olhar o mundo...

enquanto depressa me aparecem cabelos brancos

cresce a barriga 

inchaços aparecem

e dores, manias, cansaços e novatos medos…


ultimamente

(difícil sumir a sensação de que tudo é em vão)

tenho vivido de olhar

   entre quatro paredes

o que fiz de melhor

a tentar me convencer de que vali a pena


mas não estranhem: é que alcancei o instante 42

    aqui onde tenho resposta para tudo

e ao fazer das tripas coração,

me exercito na inventada expectativa

de alcançar seja o que houver além do hexagrama 64


ainda labuto… devagar, pequeno e fraco

e aguardo que a vida

(antes que algo se revele)

não se transforme numa enfadonha despedida



sábado, 16 de janeiro de 2021

felicidade

 

Encounter in the Dream, George Stefanescu, 1990




ah, o teu cheiro que me atiça

alecrim ou laranjeira?


que importa…


serás sempre tu

a surgir em meus sentidos


evoco tua presença

nestas quarentenas noites


e vens

inteira, composta de perfumes


e porque sei de tal toque?


por que mesmo em sonho

com a mão sobre meu peito

tens o olhar daquele jeito

ao cochichares que a vida é boa


isto para mim é felicidade:

merecer gostares