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sábado, 14 de junho de 2025

filho bastardo de cowboy hollywoodiano

 

Imagem gerada pelo Google Gemini


descendente de bandeirantes

capitães do mato, milicos, jagunços

milicianos high-techs, políticos de bolso

(com um livro de phantasmagorias

debaixo do braço)

crentes pragmáticos na divindade,

na pátria e na liberdade de expressar

que todo dia é dia de branco

e na festa no ap

vai ter sofrência pop e petiscos

servidos em baixelas de prata

do que sobrou do lombo dos negros

índios, pobres e periféricos


traficantes da fé alheia, coaches e influencers,

a soldo de casas de apostas aliciam

nubentes veteranas movidas a botox

para acasalarem com bons meninos de chicago

e conceberem in vitro

mais uma receita para estufar o bolo


incensados por animadores de auditório

nas tardes entorpecidas de domingo

um terço da população, inflada de patriotismo,

bate continência à entidade que empreende

mais um inferno ultramoderno

importado do vale do cilício

criado sob medida para os outros


ai de mim,

ai de ti,

ai de nós!


 

sábado, 15 de março de 2025

está na hora

 

Imagem gerada pelo ChatGPT


está na hora

da democracia romper as algemas

abrir os armários, deixar o vento levar

o pó dos coturnos que inda pisam nossa história

está na hora

de apagar do currículo das academias

as lições de medo e silêncio

de plantar nas cabeças dos quartéis

as sementes da civilidade.

está na hora

de viver para além do golpe,

do autoritarismo que assombra

das torturas que ecoam

das mortes que clamam: nunca mais!


o brasil, com sua dança,

sob a brasa do olhar dos cachorros loucos,

quer transformar pendengas em passos

soberania em abraço

dialógo em ponte

cooperação em festa mas

surja alguém

trazendo nas mãos os impasses

e ameaças nos dentes

erga-se da justiça a clava forte

a luz que corta a escuridão…

não fugiremos pois

não tememos quem cultua a morte,

o brasil conhece seu direito de existir

junto e misturado

no carnaval em que somos inventados

onde a diversidade não é máscara

para esconder desigualdades

nem sombra para ignorar conflitos.


 

sábado, 28 de setembro de 2024

A história

 

History, Edvard Munch, 1915


Ouvi de Rigot. Fim de tarde plácida com promessa de noite fria. Cafezinho fumegante no sujinho do Largo do Paissandu (nem tchun para a hora). Era um estica conversa até que os afobados tivessem se enfurnado lá sabe-se onde e um lugarzinho pra sentar no coletivo pintasse pra nós a caminho de casa.

E disse mais. Que foi Chexa – alagoano falador, pleno de mumunhas e mungangas, lá pros idos dos 80, numa birosca à beira da Lagoa Mandaú – quem contou, sem fazer questão nenhuma de alardear autoria. Pelo contrário, deixou claro que ouvira tal fantasia diretamente da boca do mui admirado doutor Diógenes.

Bem podia ter sido produto do consumo de algo com alto poder alucinógeno, acrescentei quase queimando a língua. Assoprei. A gente sempre coloca algum tempero, uma pitadinha de não sei quê àquilo que, a troco de passar o tempo, acaba por chamar atenção por conta desta necessidade que temos de tornar uma boa história parte da nossa vida. Uma história bem contada nem precisa ser novata, basta que quem a conte consiga nos inundar de verossimilhança. A loucura mais improvável deve ter motivo e consequência o mais familiar possível. Senão como tirar proveito? No mais das vezes, a história pouco importa. Importa mesmo como é contada.

Minha observação não afetou em nada meu velho amigo, envolvido estava em afastar uma mosca que festejava migalhas no canto da sua boca. Mas a mosca era só um pretexto para justificar sua agonia ao falar de fogo fátuo, vento terral, lágrimas de fogo caindo do céu suave e lentamente numa noite memoravelmente tormentosa. Cada detalhe daquele conjunto me deixou desconjuntado.

Rigot não era do tipo de seguir uma lógica linear, da causa pra consequência… Ia aos pulos, de trás pra diante e quase sempre botando tudo de ponta cabeça. Eu tentava acompanhar mas, devido minhas limitações costumeiras, quase sempre perdia boa parte da sua narrativa. E como tinha me proposto a colocar no papel o que pudesse alcançar das suas digressões, andar com ele e tentar acompanhar suas aventuras narrativas era quase como mergulhar no mais profundo dos abismos, sem nenhuma garantia  de retorno. E lá me ia envolvido em embaraços, medos atávicos, assombrações e metáforas. 

Quem era esse tal de doutor Diógenes? Um mago, um bruxo, um curandeiro, um taumaturgo? Rigot disse, sossega, vamos andando que até o meio da Consolação... Vais compreender o ponto de chegada. Tinha investigado. E então? Continuou seu enviesado relato com visível esforço no sentido de tranquilizar-me: doutor Diógenes, disse Chexa, foi-me apresentado na praça do Mercado. Distribuía entre os mercadantes, toda segunda, quarta e sexta ouvidos, auscultações e receitas em troca de bacia de verduras, bandas de melancia, meia dúzia de ovos, meio litro de feijão, um capão… Não que precisasse, precisava não. Simplesmente aceitava e agradecia. Sabia que ninguém gosta de dever favor a ninguém e que a melhor recompensa é ver que os outros apreciam aquilo que temos para dar, de coração. Era assim, aquele catedrático ancião: não dispensava a passada na feira para falar com seus amigos e fazer novos. E como duma boa conversa ninguém escapa de abrir o peito, o doutor acabava cuidando também de almas, para desgosto da sua digníssima esposa, senhora de bons princípios mas ciosa de que nem tudo são flores neste vale de lágrimas e maledicências.

Um altruísta que sabia contar histórias. É só? O que quero saber é o porquê ele contava sempre o mesmo causo, disse-lhe tomado pela impaciência por não entender o fato de termos esquecido de pegar o ônibus e minhas panturrilhas estarem em petição de miséria ali por volta da Praça Roosevelt. Dava o que todos queriam, rangeu Rigot. E gostavam, ora! Tanto que repetiam sua história e ai daquele que tentasse mudar uma vírgula – caíam de pau no contador pelo atrevimento ou negligência: não foi daquele jeito que o doutor Diógenes contou, justiçavam. O que tem…? Tentei adiantar-me no que fui contido pela sentença: Desista de impedir-me à conclusão, agora que estamos perto do Belas Artes e cada um poderá seguir pro seu lado. Já no fim da vida, doutor Diógenes, preocupado 1) com aquela aceitação inconteste da sua única história contada e recontada em quantas idas à feira se fizesse por dever de ofício ou pura e simples alegria e, 2) com a multiplicidade de línguas contadoras nascidas como que por geração espontânea, sempre a divulgarem as mesmas frases, tornadas agora lugares comuns, clichês e cânones, decidiu mudar este estado de coisas. Dedicou seus últimos dias a contar individualmente a mesmíssima história só que para um, modificava uma frase, pra outro variação da paisagem, àqueloutro uma entonação, uma pausa… 

E assim, aos poucos, sua história, aquela história tornou-se múltiplas e a fazer com que cada ouvinte tomasse posse de algo inédito e repassasse até que restou difícil saber qual teria sido, de fato, a história original.


 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

a história do bem viver

 

O Mazzini Moribundo, Silvestro Lega, 1873



foi uma vez

pras bandas do oriente

era uma tribo de criadores de cabras

cujo pai de todos adoeceu…


sem esposa que lhe cuidasse

(se esquecera de casar outra vez)

à espera da hora final,

desaparecia sobre o leito


na sombra do meio dia fatal

os descendentes, reunidos em torno dele,

ansiosos para ouvir quem tomaria seu lugar

(cada um a querer pra si a honra

de comandar os destinos do clã)

e herdar uma montanha de bens

passíveis de serem trocados por prazeres


antes do último suspiro, o ancião

lembrou moribundo

que ao comunicar sua condição

a todos os filhos e filhas

recebeu a mesma resposta: se cuide!

mas apenas um devolveu:

posso ajudar em alguma coisa?


chamou pra si a mão daquele filho

a abraçou sobre o peito,

e antes que sumisse para sempre,

deu-lhe o anel da família

sussurrando o segredo

da história do bem viver e cuidar.


 

sábado, 28 de janeiro de 2023

a tragédia de um ninguém

 

I Can See the Whole Room and There's Nobody in It, Roy Richtenstein, 1961


incapaz de derramar uma lágrima

riu da agonia,

da dor,

tripudiou da miséria

e, alheio, sentiu-se ungido:

crente que teria sobrevida

além e acima do caos


ignorante da própria pequenez,

investiu contra tudo e todos

distraído da condição humana:

imperfeita, fraca, frágil… falível


eis que a munição acaba

e as mãos, unhas e dentes das vítimas

inscrevem na História

o patético fim de um arrogante


e esta pena assinala,

diante da eternidade,

a tragédia desse ninguém

condenado a viver atormentado

por seus delírios de grandeza


 

sábado, 27 de março de 2021

difícil humanidade

 

Hand of Fate, Achraf Baznani, séc.XX


não sei do amanhã

quem sabe?… aliás,

tenho medo do dia seguinte.

daí a ideia de escrever

notas urgentes

(súplicas de presença)

antes que a ausência me retire

para sempre

de perto dos meus amigos

e me jogue longe dos meus irmãos…


ah, palavras, preciso mostrar quem sou

além de toda manhã


quanto mais vivo, a cada instante,

o mecanismo de apagamento

não me quer nem morto

quer saber se desejo deletar ou não

a história, minha história...

por isto aplaino a lembrança

afio a memória

teço histórias impossíveis

e acordo todo dia

pronto para trabalhar

minha difícil e dolorida humanidade